José Manuel Fernandes
O Papa defendeu a importância de conciliar razão e religião para o diálogo de culturas. Porque foi treslido?
Aparentemente muitos jornalistas desistiram de ler, quanto mais de pensar. Se uma frase de uma figura pública não contém o sound-bite evidente, ficam sem norte. Quando em vez de terem de ler um simples têm de ler um texto complexo, as coisas ficam ainda pior. Infelizmente o que se passou depois do discurso de Bento XVI na Universidade de Ratisbona tem muito a ver com esta forma de fazer (mau) jornalismo, porque sem as notícias parciais e incompletas (para não as classificar cruamente de especulativas ou maliciosas), muita da ira ateada por radicais muçulmanos (os moderados tiveram uma atitude completamente diferente) não teria existido.
Recordemos algumas passagens do seu longo e complexo discurso dirigido a uma plateia de académicos e que tinha como tema as relações entre a fé e a razão. Começando pelo último parágrafo onde começa por criticar os que entendem que só a "razão positivista" é válida, sublinhando que "as culturas profundamente religiosas do mundo vêem na exclusão do divino da universalidade da razão um ataque às suas convicções mais arreigadas". Ou seja, disse "culturas" e não "cultura" ou "cristandade", ou "catolicismo". Pelo que acrescentou que "uma razão que é surda e relega a religião para o âmbito de uma cultura de segundo grau é incapaz de se inserir no diálogo das culturas."
Esta ideia do "diálogo de culturas", que já sublinhara numa anterior homília em Ratisbona, implica contudo que a religião entenda a razão, certamente um dos motivos porque escolheu citar o último imperador bizantino: "Não agir racionalmente, não agir com o logos, é contrário à natureza de Deus", disse Manuel II (...). É a este grande logos, a esta amplitude da razão que convidamos os nossos parceiros no diálogo de culturas. Redescobri-la constantemente é o grande desafio da universidade".
Perguntar-se-á: mas não haveria outros teólogos que o Papa pudesse citar? Seguramente. E podemos mesmo discutir se ao optar por citar a frase que originou a controvérsia - mesmo distanciando-se dela - não terá cometido um passo imprudente. Contudo a verdade é que se a nossa leitura não se ficar por essas linhas e se não as retirarmos do contexto, temos de lhes acrescentar o que o Papa explicitamente considerou como central no diálogo citado: "A frase decisiva nesta argumentação contra a conversão pela violência é: "Agir de modo irracional é contrário à natureza de Deus"". Ora se esta é a "frase central", porque se centrou toda a discussão num extracto secundário? A resposta possível é que há muito jornalismo incendiário. Ou, no mínimo, irresponsável e preguiçoso.
Com efeito é muito mais fácil, muito mais atraente, um título "escandaloso" do que procurar interpretar o que Bento XVI disse sobre o que cristianismo foi beber à herança da filosofia grega (um tema que não deve ter surgido por acaso, pois é sabido que deseja melhorar as difíceis relações com as correntes ortodoxas do cristianismo). Ou tentar perceber porque critica um teólogo muçulmano, Ibn Hazn de Córdova, a par com outro cristão, João Duns Escoto. Tudo isto não cabe nuns segundos de telejornal - a frase "brusca" de Manuel II sobre Maomé cabe. Porém, se isso acontece devemos pedir ao Papa mais sound-bites ou exigir antes mecanismos de transmissão de informação mais rigorosos?
Por outro lado, mesmo admitindo que Bento XVI devia mutilar o seu raciocínio em nome do "momento sensível que se vive", como tantos escreveram, não será antes nossa obrigação subscrever, face às reacções violentas às suas palavras, as palavras do George Carey, ex-arcebispo de Cantuária, anglicano e portanto insuspeito de "papista": "os muçulmanos, tal como os cristãos, devem aprender a dialogar sem gritar histericamente"?
E também sem atacarem templos.
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