Foi como filósofo político e teólogo filosófico que Joseph Ratzinger, no período anterior à sua eleição como Papa, reflectiu sobre os conceitos políticos mais importantes do mundo ocidental: democracia, liberdade, governo e Estado, entre outros. Fê-lo em múltiplas obras e intervenções, durante dezenas de anos, revelando uma coerência notável, que se reflecte na sua actuação como Papa, sobretudo na Carta Encíclica “Deus é Amor”, de 2005.
Não é contudo correcto classificar o percurso do actual Papa como político, porque ele nunca formulou um programa de acção política nem agiu politicamente. Foi como homem de fé e de pensamento que procurou determinar o significado da política e da democracia, e, por essa via, do direito, circunscrevendo a sua reflexão aos fundamentos da convivência humana.
À semelhança de João Paulo II, o actual Papa vê a democracia como a forma mais adequada de organizar a política, mas assinala-lhe contradições e limitações graves no tempo presente, provocadas pela falta de conhecimento e observação, pelos agentes políticos, de fundamentos morais sólidos, que ele identifica como os valores absolutos do cristianismo. Segundo ele, tanto a organização como a actividade política devem fundamentar-se nos valores cristãos, porque foram eles que permitiram criar os laços sociais das sociedades ocidentais.
A sua reflexão é actual e pertinente, não se afastando, no domínio dos factos, do que é aceite pela maioria dos filósofos políticos contemporâneos. Mas Ratzinger acrescenta um elemento, que decorre da sua condição de homem de fé, embora sempre numa atitude filosófica. A moralidade social tem como postulado, desde Kant, a existência de Deus, e este é um elemento que não pode ser ignorado.
As democracias puramente formais vigentes, baseadas na regra da maioria e da minoria, criam “um direito governado pela estatística”. Mas a maioria não tem o direito de, só porque é maioria, definir o que é verdadeiro e justo, de acordo com os valores do momento e muito menos contra o sentimento verdadeiro das pessoas. Mas é isso que acontece realmente, e por isso denuncia aquilo a que chama “idolatria da democracia”, em que a legitimidade invocada pelos agentes políticos para as suas decisões é apenas a da maioria, sem qualquer vínculo externo ou conteúdo moral.
Bento XVI perspectiva a relação entre a democracia e o cristianismo do seguinte modo: não existe verdadeira democracia sem fundamentos morais consensuais que permitam uma determinação livre da vontade das pessoas. Os fundamentos morais do cristianismo são, no plano racional, o que possibilita a harmonia social, pois são absolutos, pelo que devem ser assumidos explicitamente pelos ordenamentos político-jurídicos. De resto, a política é o reino do relativo, justificando-se a existência de diversidade de opiniões sobre a maior parte das matérias.
Bento XVI duvida da existência de uma efectiva liberdade de escolha nos Estados democráticos contemporâneos, porque, segundo ele, a vontade dos eleitores é manipulada através da propaganda veiculada pela comunicação social, que faz parte de uma oligarquia que determina o que é moderno e progressista, o que devem pensar as pessoas. Essa oligarquia engloba a comunicação social, assim como grandes empresas e associações de interesses – os poderes fácticos da sociedade –, cujas actividades, ao contrário do que aconteceu em séculos precedentes, não são controladas pelas pessoas e põem em causa a representação democrática.
Diante dos interesses organizados, o bem comum é hoje uma miragem, o que leva Ratzinger, hoje Papa, a perguntar se o sistema da maioria e da minoria será verdadeiramente um sistema de liberdade. A democracia funda-se na liberdade, que não é no entanto o direito de fazer o que se deseja mas o pressuposto de uma racional auto-determinação da vontade. O Papa é contra a “tirania da irracionalidade”, ao mesmo tempo que nega que o homem saiba sempre o que quer. O que vale para a liberdade vale, segundo ele, também para a democracia. Não existe democracia sem uma sentida e compreendida relação de interdependência entre os membros da colectividade política, o que explica o conceito de autoridade e lhe confere conteúdo, por exemplo em matéria social.
Segundo o Papa, não é conforme à natureza humana uma acção ou decisão fundada no egoísmo e que separa o indivíduo, nas suas relações, da vontade dos outros. O homem em sociedade quer mais do que pode e nem sempre quer bem. Sob pena de se autodestruir, o homem deve aprender a harmonizar a sua vontade com a sua natureza racional. Ora a vontade da maioria não expressa sempre a vontade individual, por força da referida manipulação das consciências e das modas ou da própria pressão do mercado, sofrendo o homem contemporâneo que se julga livre “a influência da multidão”. “A subtil voz da consciência – escreveu Ratzinger quando era cardeal – é sufocada pelos gritos da multidão. A indecisão, o respeito humano conferem força ao mal”. Existe uma “ditadura da aparência”, que se manifesta na actividade política, “na qual em muitos casos o que realmente conta é o que “aparece” dos factos – aquilo que é afirmado, escrito, mostrado –, mais do que os factos em si mesmos”. Não existe hoje uma transferência do poder das pessoas para as instituições políticas, que não passam de “um poder indeterminado e sem rosto”. Diante da dissolução dos laços consolidados nas sociedades políticas, ao longo de milénios, por influência do cristianismo, as democracias são hoje “grandes sistemas anónimos” que capturaram a liberdade de auto-determinação das pessoas. A democracia baseada na maioria é uma “forma de relativismo moral”, que desemboca “na anarquia ou no totalitarismo”, se não houver uma sólida formação da consciência moral das pessoas.
Este é o desafio que Bento XVI, como Papa que pensa, de modo inovador, a organização política, nos deixa para já, esperando-se mais desenvolvimentos no futuro.
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