Não conheci Maria José Nogueira Pinto, mas admirava-a pela frontalidade, pela dedicação às causas em que acreditava, pela coragem. Deu testemunho de alegria e entrega, com uma elegância absolutamente invulgar, até ao último dia da sua vida. As últimas palavras da sua derradeira crónica para o Diário de Notícias, publicada já depois da sua morte, foram estas: «o Senhor é meu pastor, nada me faltará».
Creio que as terá escrito sobretudo para consolar aqueles que mais amava e que mais a amavam – para os certificar de que ficaria bem e para os animar a viverem com a veemência com que ela mesma viveu. O dom da fé não nos é dado a todos do mesmo modo nem se esgota no formato de um Deus mais ou menos escanhoado; cada um de nós tem a possibilidade de escolher entre o amor que acende o mundo e o ódio que o apaga.
Dir-me-ão que nada é tão simples – e não é, de facto, porque escolher o amor significa perder o direito ao conforto da cobardia, prescindir da segurança dos caminhos previamente traçados, estar disponível para merecer a felicidade, isto é, enfrentar de olhos abertos os obstáculos, a dor, a mudança. O texto de Jaime Nogueira Pinto sobre a mulher da sua vida, publicado no Sol da passada semana explica exactamente de que é feito o amor autêntico – e faz desabar as teorias pseudo-científicas sobre a duração da paixão (dois anos, dizem os sábios infelizes), responsáveis pela grande catástrofe do século XXI, que é a da descrença na perenidade do enamoramento. Os divórcios são apenas um iceberg de valentes – quantos casamentos não conhecemos feitos de mentiras consensuais e contabilidades amparadas, tristemente sustentados por crianças que, por isso mesmo, crescem desiludidas quanto à graça do amor?
Jaime Nogueira Pinto recorda o livro único do escritor francês Jean René Huguenin, com um título belíssimo (La Côte Sauvage), para citar uma frase que ambos amavam desde a adolescência, e que definia o amor como «uma extrema atenção». Num mundo que celebra e louva a desatenção, a corrida bárbara para lugar nenhum, eles souberam sempre cultivar essa atenção extrema – extremosa, extremista, radical, absoluta. Porque tiveram a sorte de se encontrar cedo e de cedo compreender, para lá da química e da física (que são essenciais, mas nunca bastam) , que pertenciam um ao outro – que podiam rever-se nos olhos um do outro como em espelhos límpidos. Porque liam os mesmos livros e conversavam sobre eles, porque tinham os mesmos ideais e lutavam por eles, porque atravessaram tempestades e não se deixaram levar pela ventania, porque nunca amputaram os sonhos um do outro nem perderam de vista o sonho maior que queriam construir juntos, porque souberam ser a casa um do outro quando a vida os empurrou para longe da casa e do país que tinham.
Assim viveram um amor intenso durante mais de quarenta anos. Assim, Maria José morreu sem medo. Escreve Jaime Nogueira Pinto: «Foi estóica e heróica, mas a sorrir, lúcida, sem ressentimento nem revolta, aceitando o que achava que agora lhe era exigido». Aceitação é outra palavra caída em desuso, porque na voragem em que escolhemos des-existir a confundimos com resignação ou desistência – e é rigorosamente o seu contrário: só pode aceitar o que a vida lhe apresenta quem sabe quem é e o que quer.
Graças a Maria José Nogueira Pinto, que nunca cheguei a conhecer, acordarei feliz nas mais árduas manhãs, dizendo: o amor é meu pastor, nada me faltará.
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