A grande alegria, com que se encontraram em Milão
famílias vindas de todo o mundo, mostrou que a família, não obstante as
múltiplas impressões em contrário, está forte e viva também hoje; mas é
incontestável – especialmente no mundo ocidental – a crise que a ameaça até nas
suas próprias bases. Impressionou-me que se tenha repetidamente sublinhado, no Sínodo,
a importância da família para a transmissão da fé como lugar autêntico onde se
transmitem as formas fundamentais de ser pessoa humana. É vivendo-as e
sofrendo-as, juntos, que as mesmas se aprendem. Assim se tornou evidente que,
na questão da família, não está em jogo meramente uma determinada forma social,
mas o próprio homem: está em questão o que é o homem e o que é preciso fazer
para ser justamente homem.
Os desafios, neste contexto, são complexos. Há,
antes de mais nada, a questão da capacidade que o homem tem de se vincular ou
então da sua falta de vínculos. Pode o homem vincular-se para toda a vida? Isto
está de acordo com a sua natureza? Ou não estará porventura em contraste com a
sua liberdade e com a auto-realização em toda a sua amplitude? Será que o ser
humano se torna-se ele próprio, permanecendo autónomo e entrando em contacto
com o outro apenas através de relações que pode interromper a qualquer momento?
Um vínculo por toda a vida está em contraste com a liberdade? Vale a pena
também sofrer por um vínculo? A recusa do vínculo humano, que se vai
generalizando cada vez mais por causa duma noção errada de liberdade e de
auto-realização e ainda devido à fuga da perspectiva duma paciente suportação
do sofrimento, significa que o homem permanece fechado em si mesmo e, em última
análise, conserva o próprio «eu» para si mesmo, não o supera verdadeiramente.
Mas, só no dom de si é que o homem se alcança a si mesmo, e só abrindo-se ao
outro, aos outros, aos filhos, à família, só deixando-se plasmar pelo
sofrimento é que ele descobre a grandeza de ser pessoa humana. Com a recusa de
tal vínculo, desaparecem também as figuras fundamentais da existência humana: o
pai, a mãe, o filho; caem dimensões essenciais da experiência de ser pessoa
humana.
Num tratado cuidadosamente documentado e profundamente comovente, o
rabino-chefe de França, Gilles Bernheim, mostrou que o ataque à forma autêntica
da família (constituída por pai, mãe e filho), ao qual nos encontramos hoje
expostos – um verdadeiro atentado –, atinge uma dimensão ainda mais profunda.
Se antes tínhamos visto como causa da crise da família um mal-entendido acerca
da essência da liberdade humana, agora torna-se claro que aqui está em jogo a
visão do próprio ser, do que significa realmente ser homem. Ele cita o célebre
aforismo de Simone de Beauvoir: «Não se nasce mulher; fazem-na mulher – On
ne naît pas femme, on le devient». Nestas palavras, manifesta-se o
fundamento daquilo que hoje, sob o vocábulo «gender - género», é
apresentado como nova filosofia da sexualidade. De acordo com tal filosofia, o
sexo já não é um dado originário da natureza que o homem deve aceitar e
preencher pessoalmente de significado, mas uma função social que cada qual
decide autonomamente, enquanto até agora era a sociedade quem a decidia. Salta
aos olhos a profunda falsidade desta teoria e da revolução antropológica que
lhe está subjacente.
O homem contesta o facto de possuir uma natureza
pré-constituída pela sua corporeidade, que caracteriza o ser humano. Nega a sua
própria natureza, decidindo que esta não lhe é dada como um facto
pré-constituído, mas é ele próprio quem a cria. De acordo com a narração
bíblica da criação, pertence à essência da criatura humana ter sido criada por
Deus como homem ou como mulher. Esta dualidade é essencial para o ser humano,
como Deus o fez. É precisamente esta dualidade como ponto de partida que é
contestada. Deixou de ser válido aquilo que se lê na narração da criação: «Ele
os criou homem e mulher» (Gn 1, 27). Isto deixou de ser válido, para
valer que não foi Ele que os criou homem e mulher; mas teria sido a sociedade a
determiná-lo até agora, ao passo que agora somos nós mesmos a decidir sobre
isto. Homem e mulher como realidade da criação, como natureza da pessoa humana,
já não existem. O homem contesta a sua própria natureza; agora, é só espírito e
vontade. A manipulação da natureza, que hoje deploramos relativamente ao meio
ambiente, torna-se aqui a escolha básica do homem a respeito de si mesmo. Agora
existe apenas o homem em abstracto, que em seguida escolhe para si,
autonomamente, qualquer coisa como sua natureza.
Homem e mulher são contestados
como exigência, ditada pela criação, de haver formas da pessoa humana que se
completam mutuamente. Se, porém, não há a dualidade de homem e mulher como um
dado da criação, então deixa de existir também a família como realidade
pré-estabelecida pela criação. Mas, em tal caso, também a prole perdeu o lugar
que até agora lhe competia, e a dignidade particular que lhe é própria;
Bernheim mostra como o filho, de sujeito jurídico que era com direito próprio,
passe agora necessariamente a objecto, ao qual se tem direito e que, como
objecto de um direito, se pode adquirir. Onde a liberdade do fazer se torna
liberdade de fazer-se por si mesmo, chega-se necessariamente a negar o próprio
Criador; e, consequentemente, o próprio homem como criatura de Deus, como
imagem de Deus, é degradado na essência do seu ser. Na luta pela família, está
em jogo o próprio homem. E torna-se evidente que, onde Deus é negado,
dissolve-se também a dignidade do homem. Quem defende Deus, defende o homem.
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