Confesso que estou escandalizado com a França. Três notícias dão azo a
este desconforto de soixante-huitard desiludido com a filha primogénita
da Igreja e a pátria por excelência de todas as revoluções. A saber: o
exílio de Gérard Depardieu, a entrada numa ordem religiosa de uma modelo
e a manifestação de um milhão de franceses a favor do casamento
natural. Mas vamos por partes.
Gérard Depardieu, se é que ainda não se chama Igor Ivanovitch ou coisa
que o valha, deu com os pés à sua terra natal para se instalar com armas
e bagagens na Rússia. Vladimir Putin, o actual czar, ofereceu-lhe a
nacionalidade e o passaporte russo e talvez, como brinde, uma datcha na
Crimeia.
Ora a França era a pátria da liberdade, pelo que parece um contra-senso
que um francês se exile precisamente por entender que já não há
liberdade no seu país. Aliás, a moda de princípios do século xx
era a inversa: os milionários perseguidos pela revolução bolchevique
procuravam nas margens do Sena a segurança e o conforto que lhes era
negado na sua terra. Se agora o movimento migratório é o inverso e até
um indefectível guerreiro gaulês como Obélix se vê obrigado a emigrar
antes que os impostos o esmaguem, forçoso é admitir que há algo de podre
no reino da Gália.
A revista “Marie-Claire”, ultrapassando todos os limites da decência
laica e republicana, publicita a entrada na vida religiosa de uma
ex-modelo, Lauren Falko, aliás Irmã Maria Teresa do Sagrado Coração.
Pior ainda: quase elogia o gesto da anacrónica beldade voluntariamente
enclausurada, em vez de vituperar o obscurantismo religioso, que impede
de brilhar nas passerelles este prodígio da beleza feminina.
Qualquer dia, por este andar, a Marianne, o ex-líbris da República Francesa, ver-se-á obrigada a ocultar o impudico seio e a cobrir o seu escandaloso decote com um modesto hábito religioso e, talvez até, a trocar o seu lendário barrete frígio pelas abas esvoaçantes do véu religioso. É caso para perguntar: onde pára a França laica de Voltaire e Rousseau? Onde paira o espírito de Simone de Beauvoir, precursora da revolucionária ideologia do género? Onde estão as femininistas e as suas revindicações de liberdade para as mulheres?
Mais grave ainda é que perto de um milhão de pessoas – a polícia
francesa, que sofre de miopia política quando se trata de manifestações
não alinhadas com o governo, só viu trezentas mil – se manifestou pelo
casamento natural e contra a outorga do estatuto matrimonial às uniões
de pessoas do mesmo sexo. Infelizmente, nem sequer foi um protesto
caricato de umas quantas velhotas piedosas empunhando terços, nem uma
procissão de padres e religiosas disfarçados, mas de milhares de
trabalhadores, de jovens, de famílias, de mulheres e homens de todas as
condições sociais e de todos os recantos da geografia francesa.
Que os clérigos ultramontanos e os fanáticos integristas se manifestem é
uma coisa que até tem a graça de uma marcha folclórica, mas que um
milhão de cidadãos saia à rua é outra muito diferente, sobretudo quando a
iniciativa parte nada mais nem nada menos que de uma humorista, que dá
pelo nome artístico de Frigide Barjot, e de Xavier Bongibault, um jovem
homossexual. Diga-se de passagem que tem o seu quê de curioso que sejam
uma artista e um gay a liderar um movimento de massas contra os
casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Os humoristas cá da terra não
têm essa graça, nem consta que os homossexuais lusitanos tenham tido o
bom senso de reconhecer que, por razões óbvias, às suas uniões não é
aplicável o regime matrimonial.
Quer isto dizer que a França já não é a pátria das revoluções e traiu a
sua vocação histórica? De modo nenhum! A França continua fiel à sua
gloriosa tradição e na vanguarda da revolução social, mas agora contra o
antigo regime libertário, socialista e laico. A nova revolução francesa
é um grito de mudança e de esperança, em nome da verdade, da liberdade e
da família. in jornal i
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