Era uma vez um homem, um touro e uma árvore. O indivíduo estava bêbado. O animal, em liberdade. E o sobreiro no seu sítio, imóvel, como lhe compete. Ora o sujeito, à conta do álcool, não via um bicho, mas dois, um que era e outro que não era. E via duas árvores: uma que era e outra que não era. Vai daí, investiu contra ele o touro que era, escondeu-se o sujeito atrás do tronco que não era e ficou a criatura, como é fácil de imaginar, desfeita.
Esta história vem a propósito das manifestações que são e que não são notícia. Entenda-se: a que se projecta realizar na ponte 25 de Abril e a Caminhada pela Vida, no passado 5 de Outubro, respectivamente.
Era de supor que uma marcha, que reuniu cerca de três mil pessoas, que se concentrou na Praça Marquês de Pombal, que desceu depois a Avenida da Liberdade e que finalmente se concentrou no Rossio, fosse notícia. Mas não foi. Pelo contrário, os quatro gatos-pingados – mais não eram – que, nesse mesmo dia, foram aos Paços do Concelho insultar o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, foram notícia. Como também foi notícia o ajuntamento dos pouquíssimos militares que, na rotunda, homenagearam os que aí, pela força das armas, implantaram a República, no mesmo dia de 1910. Por ironia do destino, a fotografia que, de esta efeméride, algum jornal publicou, veio a revelar, ao longe e de forma obviamente inadvertida, a manifestação ostensivamente ignorada pela imprensa, até pelo diário que, para fotografar a ordeira multidão que lhe passou mesmo por debaixo das janelas, nem sequer precisava de se dar ao incómodo de sair à rua.
Mas há manifestações que, mesmo não existindo, são notícia. Delas é exemplo a que uma central sindical se propõe realizar, percorrendo o tabuleiro da ponte ex-Salazar e que já mereceu múltiplas manchetes nos jornais, inúmeros tempos de antena nas rádios e incontáveis reportagens nas televisões.
Moral da história: a manifestação que não existe tem mais importância, para alguns meios de comunicação social, do que a que existiu e integrou aproximadamente três mil pessoas, percorrendo demoradamente as principais artérias da capital.
Outra originalidade de alguns jornais é a sua aritmética criativa. Ou seja, em função dos protagonistas e da temática, dois, mais dois, podem ser seis, podem ser três, ou até zero. Mas, em princípio, quatro não são.
Exemplos: uns compinchas sindicais ocupam alegremente um cantinho do Terreiro do Paço e são logo trezentos mil. Mas a mesma praça, cheia até mais não poder, como na festiva Eucaristia celebrada por Bento XVI, em 2010, não tem mais do que oitenta mil fiéis.
Estão quatrocentos mil, ou meio milhão de fiéis numa celebração litúrgica na esplanada do santuário de Fátima? Contabilizem-se, para efeitos mediáticos, apenas umas «dezenas de milhares de peregrinos», incluindo carteiristas, mirones e turistas, pois tudo serve para diminuir a importância de um evento religioso, sobretudo se for católico. Mas se meia-dúzia de sócios da patriótica Associação de Amizade Portugal - Coreia do Norte, se manifestar no Martinho da Arcada, é certo e sabido que não faltará quem, certamente inebriado por algumas bebidas espirituosas, intua alguns milhares de apoiantes da nobilíssima causa.
Quando a realidade não é notícia e a notícia não é realidade, a informação decai em ficção, uma inverosímil mentira que, por isso, não poderá resistir, por muito tempo, à evidência da verdade. Não se sabe qual foi a causa da extinção dos dinossauros, mas a do previsível desaparecimento de uma certa imprensa é óbvia: o suicídio.
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