[Nota introdutória: Esta carta foi transcrita do livro "Vorazmente teu" (The Screwtape Letters), de C.S. Lewis. Trata-se duma troca de correspondência entre o experiente diabo, Escritorpe, e o seu sobrinho Absintox. Lewis dá-nos uma aula de como são as armadilhas e artimanhas e utilizadas pelo diabo para nos confundir]
Querido Absintox,
Espero que a minha última carta te tenha convencido de que a tribulação, o ponto baixo de "aridez" e embotamento que o teu paciente enfrenta no momento, não irá, por si só, dar-te a sua alma, mas sim que é algo que precisa ser devidamente explorado. A seguir discorrerei sobre como explorar essa fase.
Em primeiro lugar, sempre fui da opinião de que os períodos de baixa da ondulação humana nos dão uma excelente oportunidade para todas as tentações de cunho sensual, principalmente as do sexo. Talvez isso seja uma surpresa para ti, porque, afinal de contas, é nas fases de pico que existe mais energia física e, portanto, mais apetite em potencial; mas tens que te lembrar que o poder da resistência também está no seu nível máximo. A saúde e a disposição que queres usar para produzir a luxúria também podem — ai de nós — ser facilmente usadas para a labuta, a diversão, o pensamento ou a alegria inócua.
O ataque será mais bem-sucedido quando todo o mundo interior de um homem estiver frio, vazio, triste. Também é importante notar que a sexualidade nas fases de baixa difere subtilmente em qualidade da sexualidade nas fases de pico — está bem menos propensa àquele fenómeno insípido que os humanos chamam "apaixonar-se", mais propensa a ser atraída para as perversões e bem menos contaminada por aqueles acrescentos generosos, cheios de imaginação e até mesmo espirituais, que geralmente fazem com que a sexualidade humana seja tão decepcionante.
O mesmo acontece com os outros prazeres da carne. Terás mais probabilidade de tornar o teu homem um legítimo alcoólatra se lhe empurrares a bebida como solução para sua apatia e exaustão do que ao encorajá-lo a usar a bebida como forma de diversão entre amigos quando ele estiver feliz e expansivo. Nunca te esqueças que quando lidamos com qualquer prazer, na sua forma normal e gratificante, estamos, de certo modo, no campo do Inimigo. Eu sei que já ganhámos várias almas através do prazer. Ainda assim, o prazer é invenção d'Ele, não nossa. Ele concebeu os prazeres. A nossa pesquisa, até o momento, não permitiu que produzíssemos nem sequer um deles.
Tudo o que podemos fazer é encorajar os humanos a abordar os prazeres que o nosso Inimigo criou e usá-los de certas formas, ou em certos momentos, ou em certo grau que Ele tenha proibido. Sempre tentamos, portanto, trabalhar longe das condições naturais de qualquer prazer, e sim naquelas em que ele é menos natural, em que menos sugira o seu Criador, e menos gratificante. A fórmula, portanto, resume-se a uma ânsia cada vez maior por um prazer cada vez menor. É mais seguro e é mais elegante. Possuir a alma de um homem e não lhe dar nada em troca — é isso o que realmente alegra o coração do nosso pai. E as fases de baixa são a época em que devemos dar início a esse processo.
Mas existe um método ainda melhor para explorar os momentos de baixa, que é através dos próprios pensamentos do paciente sobre eles. Como sempre, o primeiro passo é afastá-lo do conhecimento. Não o deixes sequer suspeitar da existência da lei da ondulação. Deixa-o pensar que seria natural que o entusiasmo inicial da sua conversão durasse e que deveria ter durado para sempre, e que o seu actual estado de aridez é um estado igualmente permanente. Uma vez que essa crença errada estiver bem arraigada dentro dele, poderás avançar de diversas maneiras.
Tudo dependerá do seu homem ser do tipo fácil de desencorajar, aquele que pode ser tentado a cair em desespero, ou de ser do tipo adepto do auto-engano, aquele que pode ser levado a acreditar que está tudo bem. É cada vez mais raro o primeiro tipo entre os humanos. Se o teu paciente for desse tipo, tudo será mais fácil. Deverás apenas afastá-lo da influência dos Cristãos mais experientes (o que é fácil de conseguir nos dias de hoje), voltar s sua atenção para as passagens apropriadas nas Escrituras e guiá-lo para que fique totalmente determinado a recobrar os seus sentimentos anteriores através da pura força de vontade. Se fizeres isso, ele será nosso.
Se ele for do tipo mais esperançoso, o teu trabalho consistirá em fazê-lo resignar-se à actual frieza de sua alma e gradualmente contentar-se com ela, tentando convencer-se de que, afinal de contas, ela não está tão fria assim. Dentro de uma ou duas semanas, ele ficará em dúvida se os primeiros dias do seu Cristianismo não foram talvez um tanto exagerados. Converse com ele sobre "moderação em todas as coisas". Se conseguires fazê-lo chegar ao ponto de pensar que "a religião é benéfica só até certa medida", poderás então soltar fogos de artifício, pois a alma dele estará prestes a ser tua. Uma religião moderada é tão proveitosa para nós quanto religião nenhuma - e ainda mais divertida.
Existe também a possibilidade de atacar a sua fé directamente. Quando conseguires fazê-lo imaginar que o período de baixa é permanente, será que não poderias também persuadi-lo que a "sua fase religiosa" irá acabar, como todas as suas fases anteriores? É claro que não existe um modo concebível de ir, através da lógica, da afirmação "Estou gradualmente a perder o interesse por este assunto" até a afirmação "Tudo isso é falso". Mas, como eu disse anteriormente, deves contar com o jargão, não com a razão. A simples palavra "fase" certamente fará magia.
Suponho que a criatura já tenha passado por várias fases antes — todos eles passam — e que se sinta superior a todas as fases más das quais conseguiu sair; não porque as tenha realmente avaliado, mas apenas porque estão no passado. (Imagino que o alimentes sempre com ideias nebulosas sobre Progresso, Desenvolvimento e o Ponto de Vista Histórico, e que lhe dás muitas biografias modernas para ler, não é? Nesses livros, todas as pessoas estão sempre a sair de fases, não é mesmo?)
Percebeste a ideia? Distrai a atenção dele da simples antítese entre Verdadeiro e Falso. Põe na sua mente algumas expressões bem vagas - "foi só uma fase", "já passei por isso" — e nunca te esqueças desta bendita palavra: "adolescente".
Afectuosamente, o teu tio,
Escritorpe
E para contrapor os conselhos do demónio, nada melhor que os de Jsus, já Ressuscitado, como últimas advertências aos Apóstolos: "(...)Lembrai-vos sempre do quanto fostes fracos e de que, sem a ajuda de Deus não poderíeis permanecer em estado de Justiça nem uma hora. É aqui que vos aconselho a que vigieis, mesmo aos que pensavam ser mais fortes e que chegaram a pedir para beber do Meu Cálice, proclamando que, mesmo que tivessem de morrer, nunca Me negariam. E Eu os deixei, avisando-os que ORASSEM... E, mal Eu os deixei, logo pegaram no sono!
Lembrai-vos disso, e ensinai de que quem é deixado por Jesus, se não se mantiver em ORAÇÃO com ELE, cai no torpor e pode ser preso...Se Eu não os tivesse despertado, até poderiam ter sido mortos enquanto dormiam e, assim, comparecer diante do Juízo de Deus, sob a carga da sua Humanidade(...)"
"(...) Lembrai-vos disto! Se SEMPRE quiserdes fazer a Vontade de Deus e chega o ponto em que a criatura já não aguenta, mas persiste, tal como aconteceu Comigo, VEM O O SEU ANJO SOCORRER O HERÓI ESGOTADO. Quando estiverdes angustiados, NÃO TENHAIS MEDO de cair em vilezas ou renegar; se persistirdes em QUERER O QUE DEUS QUER, DEUS FARÁ DE VÓS GIGANTES DE HEROÍSMO, SE PERMANECERDES FIÉIS À SUA VONTADE! Lembrai-vos de que Eu também fui assistido por um Anjo, depois da Minha última tentação e, convosco, será igual e com TODOS os que Me forem fiéis, porque, em Verdade vos digo, TUDO o que Eu recebi de ajuda vós também recebereis..."
Da Obra: "O Evangelho como me foi revelado", de Maria Valtorta".