quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O Purgatório

by José Manuel Pimenta | 14.04.2014

Faleceu em Paris, há poucos dias, o historiador francês Jacques Le Goff. A sua obra revolucionou toda a historiografia moderna e revalorizou a imagem da Idade Média revelando-a como um período bastante luminoso e dinâmico, contrariando a tese do humanismo renascentista que afirmava o contrário. Além de centenas de artigos, tinha mais de 40 livros publicados, desde Os Intelectuais na Idade Média e Mercadores e Banqueiros na Idade Média, ambos de 1957, até ao recente À la recherche du temps sacré, Jacques de Voragine et la Légende Dorée, de 2011 (1).

Recentemente, uma das suas obras que foi abundantemente revisitada, intitula-se: O Nascimento do Purgatório. Nesta obra o autor analisa a criação ou invenção (naissance), do Purgatório, sobretudo a partir do século XII, como lugar intermédio entre o Céu e o Inferno.
Aquilo que Le Goff parece entender como “naissance” do Purgatório é, na verdade, a definição doutrinal relativamente ao Purgatório e que se dá sobretudo nos Concílios de Florença (2) e de Trento (3). Referências ao Purgatório podemos encontrá-las muito antes das referidas definições conciliares e sempre fundamentadas na Sagrada Escritura e na Tradição, porque qualquer definição doutrinal tem que ser garantia da pureza doutrinal (ortodoxia) e o seu conteúdo tem que expressar e estar em conformidade com a Palavra de Deus e a Tradição.

Um dos fundamentos bíblicos para este dado de fé encontra-se quando se fala em certos textos da Sagrada Escritura dum fogo purificador, como por exemplo: «mas, se a obra de alguém se queimar, perdê-la-á; ele, porém, será salvo, como se atravessasse o fogo» 1 Cor 3, 15; ou ainda: «deste modo, a qualidade genuína da vossa fé - muito mais preciosa do que o ouro perecível, por certo também provado pelo fogo - será achada digna de louvor, de glória e de honra, na altura da manifestação de Jesus Cristo» 1 Pe 1, 7; no Segundo Livro dos Macabeus (12, 43-46) pode ler-se que com as ofertas em favor dos mortos estes ficam livres dos seus pecados. O qual confirma a existência e presença deste dado de fé na Tradição Vetero-Testamentária.
Passando agora para a época patrística, percebe-se claramente a presença desta doutrina. E na própria obra do professor Jacques Le Goff, encontrar-se a consciência da existência deste dado de fé nessa época: « (…) a opinião dos grandes Padres da Igreja do século IV, Ambrósio, Jerónimo e Agostinho - que as almas de certos pecadores poderiam talvez ser salvas durante esse período, sofrendo provavelmente uma provação» (4). Mesmo apresentando um posicionamento claramente incoerente, o professor Le Goff, ele mesmo, torna-se voz da presença clara desta doutrina no período patrístico. Um dos melhores exemplos dessa clara consciência da existência deste dado de fé, se bem que em fase de aprofundamento, é a vigorosa síntese sobre esta doutrina que se pode ler nos Dialogi de São Gregório Magno (a.540-604):

«Pelo que diz respeito a certas faltas leves, deve crer-se que existe, antes do julgamento, um fogo purificador, conforme afirma Aquele que é a verdade, quando diz que, se alguém proferir uma blasfémia contra o Espírito Santo, isso não lhe será perdoado nem neste século nem no século futuro (Mt 12, 32). Desta afirmação podemos deduzir que certas faltas podem ser perdoadas neste mundo e outras no mundo que há-de vir».

De facto, um dos primeiros textos do Magistério onde aparece o termo «Purgatório», como modernamente é conhecido, surge no pontificado do Papa Inocêncio IV (a.1243-1245), mais concretamente na sua carta apostólica Sub catholicae profissione (DZ. 838, 23 § 18). Esta, que no seu conteúdo materializa de forma bastante precisa e ortodoxa, toda a Tradição Bíblica e toda a Tradição da Igreja, assume e integra distintamente a anterior reflexão de São Gregório Magno presente nos seus Dialogi. No seu conteúdo encontra-se uma frase de grande importância para este debate e que pode ser o elemento desconstrutor da tese do professor Le Goff; «Nós, que em consonância com a tradição e autoridade dos santos Padres [o] denominamos “purgatório”». Junto a citação completa:

«No evangelho, enfim, a Verdade afirma que, se alguém tiver proferido blasfêmia contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado nem neste século nem no futuro [cf. Mt 12,32]: por estas palavras se dá a entender que algumas culpas são perdoadas no século presente, outras, ao contrário, no século futuro; o Apóstolo diz que “a qualidade da obra de cada um será provada pelo fogo” e “aquele cuja obra for queimada receberá a punição, mas ele mesmo será salvo como que através do fogo” [1Cor 3,13.15]; também os próprios gregos, segundo o que se diz, segundo a verdade e sem nenhuma dúvida crêem e afirmam que as almas daqueles que receberam, mas não cumpriram a penitência, ou então os que morreram sem pecado mortal, mas com pecados veniais ou de pouca monta, são purificados depois da morte e podem ser ajudados com as orações de sufrágio da Igreja. Ora, porque dizem que o lugar de tal purificação não lhes foi indicado com nome preciso e peculiar pelos seus doutores, Nós, que em consonância com a tradição e autoridade dos santos Padres [o] denominamos “purgatório”, queremos que, de agora em diante, seja por eles chamado com este nome. Com aquele fogo transitório, de fato, certamente são purificados os pecados, não todavia os delituosos ou mortais que não foram perdoados antes mediante a penitência, mas os pequenos e de pouca monta que ainda pesarem depois da morte, mesmo tendo sido perdoados durante a vida».

Afirmar que a definição doutrinal do Purgatório foi inventada e que se começou a falar-se de Purgatório apenas no século XII é completamente desajustado e incorrecto, quer no termo, quer na fundamentação da tese. Em toda a tradição da Igreja, os conceitos desenvolvem-se e amadurecem ao longo dos séculos, por isso, o termo correcto será definição doutrinal e não “naissance”, isto é, nascimento. A doutrina do Purgatório não nasceu na Idade Média. Nesse período deu-se, antes, um aprofundamento da sua definição doutrinal. E isto não é apenas uma questão de palavras…

Notas:

(1) Cf. http://www.publico.pt/cultura/noticia/morreu-o-historiador-jacques-le-goff-1630555

(2) Concílio de Florença - Decreto para os gregos, 6 jul. 1439 - Dz. 1304 - Igualmente, se os verdadeiros penitentes falecerem no amor de Deus, antes de ter satisfeito com frutos dignos de penitência o que cometeram ou deixaram de fazer, suas almas são purificadas depois da morte com as penas do purgatório; e para que recebam um alívio destas penas ajudam-nos os sufrágios dos fiéis viventes, como o sacrifício da missa, as orações, as esmolas e as outras práticas de piedade que os fiéis costumam oferecer pelos outros fiéis, segundo as disposições da Igreja.

(3) Concílio de Trento - Sessão 25ª - Decreto sobre o purgatório, 3 dez. 1563 – Dz. 1820 - Já que a Igreja católica, instruída pelo Espírito Santo, a partir das sagradas Escrituras e da antiga tradição dos Padres, nos sagrados concílios e mais recentemente neste Sínodo ecuménico, ensinou que o purgatório existe [cf. *1580] e que as almas aí retidas podem ser ajudadas pelos sufrágios dos fiéis e sobretudo pelo santo sacrifício do altar [cf. *1743-1753], o santo Sínodo prescreve aos bispos que se empenhem diligentemente para que a sã doutrina sobre o purgatório, transmitida pelos santos Padres e pelos sagrados Concílios, seja acreditada, mantida, ensinada e pregada por toda parte.

(4) LE GOFF, Jacques – O Nascimento do Purgatório, 1995, p.17

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