quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Interstellar e a humanidade de Christopher Nolan


A humanidade no Interstellar... num filme de ciência? Que coisa estranha.

Fui ver, logo na semana da estreia, o Interstellar do (grande) realizador Christopher Nolan.

Este era um filme que já andava há uns anos a criar água na boca de qualquer apreciador de bom cinema. Desde que conheci Christopher Nolan, com o filme Batman Begins, fiquei apaixonado pela qualidade dos seus filmes - altamente entretainers, capazes de nos fazerem descansar e, ao mesmo tempo, com um bom nível intelectual.

Lembro a trilogia do Batman mas não só: quem não se lembra de Prestige (O Terceiro Passo) ou de Inception (A Origem)? [1] São todos filmes em que Nolan deixa quem os vê a pensar bastante no argumento mas também a apreciá-lo muito, quase como se houvesse uma parte de nós que se identificasse com a história do filme.

Com Interstellar não foi diferente. Confesso que sou suspeito, dado que não é todos os dias que temos um dos maiores realizadores de Hollywood a fazer um filme sobre o nosso tema de tese de mestrado (fiz o curso de física no Técnico, com especialização precisamente em relatividade e cosmologia).

Para quem não sabe, um dos produtores executivos do filme foi o Kip Thorne, um dos maiores físicos vivos e um dos maiores especialistas do mundo na teoria da Relatividade do Einstein, a principal teoria da física para tudo o que tem a ver com gravidade. O filme é portanto um daqueles poucos filmes que tem a parte científica toda impecável. Sim, é verdade: há certas situações em que o tempo pode mesmo andar mais devagar para algumas pessoas. Vem da matemática.

Este filme tem muito que se lhe diga em vários aspectos, no entanto vou-me focar apenas nalguns que, a meu ver, fazem do Christopher Nolan um grande realizador. Mas atenção, no texto falo do fim do filme, por isso atenção aos spoilers!

Vamos pelo início. O filme ensina-nos muito bem para que serve a ciência e o conhecimento da realidade. Logo no início há umas cenas que mostram Cooper, o personagem principal, como pai de família e engenheiro. A sua formação em engenharia dá-lhe uma vantagem incrível sobre o mundo: a forma como ele tinha os seus campos agrícolas altamente desenvolvidos ou como consegue ficar rapidamente com aquele drone usando apenas a sua experiência e capacidade de raciocínio é simplesmente incrível. Os conhecimentos de Cooper fazem-no ter uma mente aberta, em particular porque ele usa-os para aquilo que eles servem: exercer um domínio próprio que o homem tem sobre o mundo e pô-lo ao seu serviço.

A ciência é usada por Cooper como um meio para atingir um fim e não como um fim em si mesmo, como muitos nos dias de hoje pretendem ensinar. Aliás, no filme há alguns cientistas que têm esta atitude errada, como a Dra. Brand e o seu pai. 


Estas pessoas que põem o coração todo na ciência, e quantos cientistas reais podemos nomear assim, como Stephen Hawking, Neil deGrasse Tyson, Peter Atkins ou Richard Dawkins, perdem a noção completa da realidade, da vida. Eles perdem-na ao seguirem as suas visões materialistas do mundo, isto é, pensarem que não existe mais nada a não ser matéria (esquecem a alma, o livre arbítrio, o amor, a beleza, ...). Tais visões levam as pessoas a tomar decisões pouco humanas e vemos isso muito bem no filme.

A maneira como Amelia Brand fica traumatizada com a morte do colega Doyle, no planeta das ondas gigantes, e como não consegue ultrapassar isso, é crasso. Diz ela assustada:
I thought I was prepared… I knew the theory… …reality is different.
Mais à frente vemos como ela nem sequer sabe bem o que é o amor e como começa a pôr as suas emoções à frente de tudo ao ponto de nem sequer conseguir raciocinar. As suas atitudes contrastam com as de Cooper, também formado em física, que sabe dominar-se diante das situações mais complicadas, para poder tomar as decisões de cabeça fria. Isto acontece inúmeras vezes ao longo do filme. No fundo, ao dar à ciência o valor que ela merece, Cooper conseguiu desenvolver outras virtudes humanas, como a temperança e a prudência, e aplica-as ao longo do filme.

Mais grave ainda é a decisão tomada pelo Dr. Brand (Michael Caine), de mentir ao longo do filme todo a propósito de uma equação. Como é que é possível chegar-se ao ponto de retirar o valor que cada ser humano tem para atribui-lo a algo totalmente generalista como a "espécie humana"? Brand acaba por tomar decisões que iam destruir a vida toda na terra, com a desculpa de "salvar a espécie humana".

Como explica Cooper no filme,
Because in his (...) arrogance, he [Dr. Brand] declared their [people on Earth] case hopeless.
Esta frase lembra mostra-nos a esperança de Cooper, uma esperança que o faz mover montanhas, se for preciso, ou... entrar dentro de um buraco negro. Fica bem patente ao longo do filme a certeza que Cooper tem de que todos os problemas têm solução. Mais ainda, o próprio ser humano foi feito para ir atrás dessas soluções e não desistir nunca. No filme, toda a sociedade tinha desistido, mas ele sabia que isso não podia ser assim:
It’s like we’ve forgotten who we are (...). Explorers, pioneers, not caretakers.
E, mais à frente, quando o velho Dr. Brand lhe explica que não há forma de a humanidade sobreviver ele responde:
We’ll find a way, Professor, we always have.
É esta certeza de que tudo tem solução que faz aparecer outra das virtudes de Cooper. A sua coragem, a maneira como a fortaleza, que o faz perseverar em decisões dificílimas, é também muito bem evidenciada no filme. Ainda que não ache totalmente simples deixar a família para trás como ele faz, a verdade é que ele parte para o espaço achando que é uma peça fundamental para salvar a vida na terra, quase como se essa fosse a sua vocação. Mas deixa-os com lágrimas nos olhos e um peso enorme no coração. Lágrimas estas que lhe voltam a cair várias vezes ao longo da viagem, fazendo-o sofrer - um sofrimento do qual ele não foge, ainda assim.

Por último, vale a pena referir "os seres" que conduzem os personagens do filme para outra galáxia. Confesso que esta ideia era uma das que me estava a fazer confusão ao longo do filme. Como é que um filme tão correcto a nível científico podia estar a sugerir a existência de aliens? Ainda que muito se fale sobre a "alta" probabilidade de haver aliens, esta ideia não tem grande cabimento científico pois, além de estar longe de ser provada (e sem evidências ou observações, não podemos falar de ciência propriamente dita), tem vindo a ser cada vez mais posta de lado pelas observações mais recentes dos mais de mil exoplanetas [2] já descobertos, em que nenhum deles apresenta condições suficientes para haver vida [3].

No entanto, Christopher Nolan não podia cometer esse erro e portanto esta foi mais uma das suas excelentes jogadas. Os "seres" que conduzem as personagens são afinal humanos do futuro, com um conhecimento científico mais avançado, que ajudam os humanos do passado!

E como não lembrar também a família numerosa da filha de Cooper, aquela que acaba por ser a melhor cientista do filme e que resolve os problemas mais complexos da física moderna, sobre a relação entre a teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica. Já alguém tinha visto um prémio Nóbel da física com uma família numerosa? Obrigado Christopher Nolan por trazeres isto para Hollywood.

Nuno CB

Nota posterior: Há um tema ético que não quis abordar propositadamente. No filme fala-se da colonização de novos planetas através de embriões congelados. Isto é algo eticamente errado. É sabido que, para termos estes embriões, o mais provável é terem sido gerados em fecundação in vitro. Nos dias de hoje a fecundação in vitro só é possível fazer matando uma série de embriões, logo matando uma série de pessoas. Sim, é verdade que na altura do filme provavelmente a tecnologia já estivesse desenvolvida ao ponto de ser necessário matar pessoas, no entanto o nascimento de uma pessoa é fruto directo do acto conjugal entre marido e mulher, portanto a produção de embriões fora deste contexto é também visto como eticamente incorrecto. Mas este é um tema que exige muito estudo (e, portanto, outro post) e não tem a ver com o que quis escrever neste texto [4]. Poderá também haver outro problema relacionado com a filosofia cristã do tempo e o livre-arbítrio, algo que também não foi abordado neste texto pelas mesmas razões.

[1] O blog Deus lo vult! tem uma boa crítica ao Inception, que recomendo: http://www.deuslovult.org/2010/08/24/inception/
[2] Exoplanetas são planetas que estão fora do Sistema Solar, noutros sistemas.
[3] Mais sobre isto pode ser encontrado no recente livro do departamento de Astrobiology da Columbia University, aqui: http://www.amazon.com/The-Copernicus-Complex-Significance-Probabilities/dp/0374129215
[5] Notem que no final se calhar nem foi necessário colonizar nada com embriões, dado que a humanidade já estava a caminho da nova galáxia, numa enorme estação especial perto de Saturno e do wormhole (onde Cooper vai ter).

2 comentários:

  1. Manel Albuquerque19 dezembro, 2014 16:02

    Faz falta uma reflexão sobre a Fertilização in Vitro

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  2. Manel,

    Obrigado! Já lá coloquei uma notinha. Era, de facto, importante comentar esse ponto, tendo em conta a missão do blog Senza também.

    Mas repara que no final se calhar nem foi necessário colonizar nada com embriões, dado que a humanidade já estava a caminho da nova galáxia, numa enorme estação especial perto de Saturno e do wormhole (onde Cooper vai ter)!

    Abraço,
    NunoCB

    ResponderEliminar

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