terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O Papa Francisco de 2014 - Todo o ano num discurso

Estamos naquela altura do ano em que todos os blogs, jornais e canais de televisão põem o ano que passou em revista. 

Aqui no Senza, para rever o ano, iremos olhar para um dos discursos do Papa Francisco de 2014 que irá marcar definitivamente o próximo 2015.

Refiro-me ao discurso que o Papa Francisco fez no final do Sínodo pela Família. Este discurso foi muito importante não só pelos seus conteúdos, mas também pela forma e contexto em que foi feito.

Poucos dias depois do Sínodo, o Sr. Patriarca de Lisboa deu uma conferência no Oratório de S. Josemaria para contar como tinha sido a sua experiência naqueles dias em Roma. Uma das coisas que disse foi que, ao contrário de Bento XVI, o Papa Francisco quase não falou durante o Sínodo e raramente manifestou qualquer expressão que indicasse o que pensava.

Por isso foi como se o Santo Padre se estivesse a guardar para este discurso. O discurso completo do Papa pode ser encontrado aqui.

Há uns dias o Papa Francisco falou nas doenças da cúria. Pois bem, já há uns meses, nesse discurso, tinha falado nas tentações dos Bispos, no Sínodo. No seu texto, o Papa referiu quatro tentações:
1. A tentação "de querer fechar-se dentro do escrito (a letra) e não deixar-se surpreender por Deus (...) é a tentação dos zelosos, dos escrupulosos, dos cuidadosos e dos assim chamados – hoje – “tradicionalistas”."
Das quatro, esta é a única tentação que se pode aplicar ao que a imprensa chama "lado conservador". Todas as outras foram um aviso ao chamado "lado liberal" do Sínodo. Mas esta é uma nomenclatura perigosa e, diga-se, pouco Católica.

Mas a tentação em si é justíssima. É verdade que a doutrina da Igreja em relação à Comunhão dos recasados não pode ser alterada. Mas não podemos ficar de braços cansados a pensar que já está tudo feito, diz o Papa. É preciso que os Cristãos trabalhem para melhorar e procurem novas soluções que ajudem quem mais precisa, neste caso os cristãos com "segundos casamentos" ou a família num sentido mais geral.
2. "A tentação do “bonismo” destrutivo, que em nome de uma misericórdia enganadora, enfaixa as feridas sem antes curá-las e medicá-las (...)"
Segundo esta tentação, seria muito fácil pegar na misericórdia de Deus e usá-la para fechar os olhos a problemas concretos. Não foi isso que Jesus fez com a mulher adúltera. Nesse episódio, a misericórdia de Deus implicou uma mudança de vida real: "Vai e não voltes a pecar." Há uns meses cinco eminentes Cardeais escreveram um livro em que explicam que seria prejudicial permitir a Comunhão às pessoas recasadas.
Papa Francisco com o Cardeal Muller, Prefeito da Doutrina da Fé e um dos cinco autores do livro sobre os recasados.
3. "A tentação de descer da cruz, para contentar as pessoas, e não permanecer lá, para realizar a vontade do Pai."
Esta tentação é parecida com a anterior. Às vezes, como cristãos, esquecemo-nos que a Cruz foi o caminho escolhido por Deus para nos salvar. Mas o sofrimento é uma auto-estrada para o Céu: ou aprendemos isto ou ficamos no mesmo ponto. Temos que reaprender sempre que, para ser Santos, devemos enfrentar o sofrimento e passar por ele em vez de fugir. Há uns meses, um psicólogo dinamarquês, Católico converso e especialista em aconselhamento matrimonial, esteve a falar em Lisboa. Ele explicou que a união dos casais com problemas passa precisamente por aqui, pois os conflitos surgem quando cada cônjuge está à procura de fugir das suas dificuldades e começa a meter as culpas no outro, em vez de as enfrentar.

É importante perceber que, neste discurso, o Papa não se referia apenas à questão da Comunhão dos recasados, nem era esse o objectivo principal do Sínodo. Mas foi sem dúvida nesse tema que houve mais polémica, por isso como se pode aplicar esta tentação aqui? Bem, percebendo que fechar os olhos para passar por cima do que custa (ou seja, fugir do não poder comungar) é errado.
4. "A tentação de negligenciar o “depositum fidei”, considerando-se não custódios, mas proprietários ou donos (...)"
Ao ler isto não podemos deixar de nos alegrar! Estamos fartos de ouvir dizer que o Papa Francisco quer mudar a lei e a doutrina da Igreja, mas aqui o Papa diz explicitamente que não é isso que ele quer fazer. Mais ainda, se o fizesse estaria a cair numa tentação.

Mais uma vez se prova que não é intenção do Papa Francisco alterar a doutrina da Igreja no que toca à Comunhão de pessoas recasadas mas também em relação à aceitação dos actos homossexuais, por exemplo.

Reparem, não sou eu que digo isto, mas o próprio Papa:
"(...) senti que [no Sínodo] foi colocado diante dos próprios olhos o bem da Igreja, das famílias e a “suprema Lex”, a “salus animarum”. E isto sempre (...) sem colocar nunca em discussão as verdades fundamentais do Sacramento do Matrimônio: a indissolubilidade, a unidade, a fidelidade e a ‘procriatividade’, ou seja, a abertura à vida."
Por fim, quase como resposta a tudo o que se houve na imprensa sobre a Igreja nos dias de hoje, o Papa Francisco explicou que não faz sentido falar em divisões numa Igreja guiada pelo Espírito Santo:
"Muitos comentaristas, ou pessoas que falam, imaginaram ver uma Igreja em atrito, onde uma parte está contra a outra, duvidando até mesmo do Espírito Santo, o verdadeiro promotor e garante da unidade e da harmonia na Igreja. O Espírito Santo que ao longo da história sempre conduziu a barca através dos seus Ministros, mesmo quando o mar era contrário e agitado e os Ministros infiéis e pecadores."
E o Papa reforça esta ideia de unidade na Igreja com o seu poder petrino:
"(...) como vos ousei dizer no início do Sínodo, era necessário viver tudo isto com tranquilidade, com paz interior, porque o Sínodo se desenvolve cum Petro et sub Petro, e a presença do Papa é garantia para todos."
E, não podia faltar, termina esta ideia citando o grande Papa Bento XVI:
"(...) como explicou com clareza o Papa Bento XVI, com palavras que cito textualmente: “(...) o Senhor Jesus, Pastor Supremo das nossas almas, quis que o Colégio Apostólico, hoje os Bispos, em comunhão com o sucessor de Pedro... participassem desta missão de cuidar do Povo de Deus, de serem educadores na fé (...)"
No final do discurso, o Papa Francisco voltou a reforçar a fidelidade à tradição da Igreja.
"O Papa, neste contexto, não é o senhor supremo, mas sim um supremo servidor – o “servus servorum Dei”; o garante da obediência e da conformidade da Igreja à vontade de Deus, ao Evangelho de Cristo e à Tradição da Igreja, deixando de lado todo arbítrio pessoal"
Ou seja, o Papa tem a função de guardar a tradição, independentemente do que acha.

Depois disto é fácil pensar que este foi um discurso único, diferente de tudo o que o Papa tem dito. Mas eu pergunto, será mesmo?

A verdade é que no fim-de-semana de conclusão do Sínodo, o Papa Francisco beatificou o Papa Paulo VI, famoso por ter escrito a encíclica Humanæ Vitæ onde explica que não se deve usar contracepção no acto conjugal. E, poucos dias depois, no encontro com o movimento de Schoenstatt, o Papa Francisco disse que a família e o matrimónio nunca sofreram tantos ataques como nos dias de hoje. Em Novembro, num congresso sobre a complementaridade entre o homem e a mulher, o Papa afirmou que "as crianças têm o direito a nascer com um pai e uma mãe"E ainda esta semana o Papa Francisco disse que as famílias numerosas são a esperança da sociedade.

Nuno CB


Papa Francisco e o Papa Bento XVI na Santa Missa de Beatificação do Papa Paulo VI

2 comentários:

  1. Que pedaço de literatura desconchavado... felizmente as pessoas ainda sabem ler por si e interpretar as palavras do Papa pelo seu juízo e critério, sem precisar de amálgamas com cortes e recortes, ao serviço de um ponto de vista apenas.
    Mas a fonte que cita também não é brilhante. Recomendo esta:
    http://en.radiovaticana.va/news/2014/10/18/pope_francis_speech_at_the_conclusion_of_the_synod/1108944

    Mais completa e correcta. Se quisermos ser realmente fiéis, veremos que o Papa se referiu aos ditos "conservadores" no 1o ponto e aos "liberais" no 2o. As restantes interpretações do Nuno CB já me parecem além do espírito do texto..
    Caminhemos enquanto há luz!

    Cordialmente
    João Martel

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  2. Referia-me ao "primeiro" e "segundo" pontos.

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