Continuação do artigo cuja primeira parte se encontra aqui: Primeira parte
Partindo do princípio de que quando a autoridade se põe a legislar deve considerar a situação histórica real e não apenas a lei natural e divina tomadas em abstracto, analisemos o caso histórico concreto em que se deu a constituição de uma inquisição católica.
No século XII a Igreja enfrentava fortes contestações de uma série de movimentos que defendiam a pobreza: uma marca comum de todos eles era a denúncia que a Igreja Católica era uma instituição muito rica e que tal riqueza, fruto de doações de terras feitas por reis, príncipes, senhores ao longo de séculos, contrastava com a pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo. O poder económico da Igreja permitia aos Bispos, Cardeais e também aos Papas o controle de vastas áreas feudais, e uma vida de certo luxo, uma corte principesca e diversos privilégios. É bem verdade que tal critica não carecia de um certo sentido: existiam clérigos que descuravam a vida espiritual e as obrigações pastorais para se dedicarem aos gozos da vida terrena e à procura das ambições transitórias. Contra isto mesmo já vários movimentos se tinham levantado, em épocas de crise semelhante, dentro da Igreja; cabe lembrar aqui o movimento de restauração do monaquismo iniciado em Cluny, França, num momento em que o monaquismo havia relaxado do ideal de oração e trabalho.
Mas além da crítica, esses movimentos passaram a defender a destruição da Igreja institucional, para no lugar dela criar uma nova igreja, puramente espiritual, guiada por profetas iluminados pelo Espírito Santo de modo directo. Uma igreja sem poder temporal, sem bens, sem clero, sem autoridade, sem padres, bispos e papas. Qual seria o efeito para a sociedade feudal se tais propostas tivessem vingado? O mundo feudal era baseado nas relações de solidariedade e nas relações de subordinação às autoridades naturais e espirituais. A sociedade era uma teia de inter-relações de confiança, daí a importância dos juramentos de fidelidade entre senhores e cavaleiros. As relações de dependência de todos para com todos era a base moral e jurídica do mundo medieval europeu. Destruir a instituição que garantia tais juramentos e que era a portadora máxima da confiança dos contractos e dos poderes a que os homens estavam sujeitos, pelo seu carácter sobrenatural e divino, era pôr em xeque a existência da sociedade; sem a autoridade da Igreja que sacralizava as relações sociais não haveria nada capaz de manter os laços entre os indivíduos e as ordens sociais (nobreza, povo, burgueses, cavaleiros, etc...) de pé permanentemente. Assim, os chamados movimentos heréticos eram não só ameaças à autoridade da Igreja ou aos dogmas católicos mas ameaçavam gravemente a continuidade da sociedade medieval.
As heresias do século XII agitavam multidões. Amauri defendeu teses que deram origens ao movimento dos irmãos do livre espírito, que pregavam a libertação de todas as regras morais, chegando a defender a partilha das esposas (poligamia). As doutrinas heréticas de Pedro de Bruys, que acusava a Igreja de ser uma imundície, estimularam o ataque aos feudos da Igreja; por onde passassem os seus seguidores as igrejas eram incendiadas, cruzes derrubadas e padres perseguidos. Já o padre que se tornou herético, Arnaldo de Brescia, formou um movimento revolucionário onde reunia multidões para atacar cidades e feudos em nome dos pobres, em nome da pilhagem dos bens da Igreja e da nobreza. Mas destes movimentos o mais violento era o catarismo (do grego καϑαρός katharós, "puro"): considerado herético pela Igreja Católica manifestou-se no sul da França e no norte da Itália do final do século XI até meados do séculos XIV.
As suas ideias tinham fortes ligações ao gnosticismo do início da era cristã. Os historiadores dizem que se terá formado a partir da expansão das crenças dos Bogomilos (Reino dos Búlgaros) e dos Paulicianos (Médio Oriente). Eles diziam ser os verdadeiros cristãos. Traziam na sua doutrina a assinatura da mensagem sincrética do iniciado persa Mani, que tinha espalhado pelo mundo antigo a sua doutrina gnóstica. A salvação para o catarismo era a libertação da alma do seu invólucro, isto é, o corpo material, impuro, portanto consideravam que Deus havia criado apenas o Céu. A Terra seria criação de um génio mau, o demiurgo. Negavam portanto a teologia da criação. Devido a essa concepção, viam com bons olhos o suicídio. Os "sacerdotes" cátaros, ou 'bons homens', como se auto-denominavam, levavam vidas simples, desprovidos de quaisquer posses materiais, procurando afastar-se ao máximo da corrupção do mundo. Isso fez desta seita uma perigosa concorrente da Igreja Católica, que na época tinha um clero em crise moral.
O exemplo de pobreza e desapego dos cátaros acabava convencendo muitos católicos a passarem para o seu lado; recebiam o consolamentum, um rito que representava de maneira simbólica a sua morte com relação ao mundo corrupto. O anti-cristianismo dos cátaros era total: se a terra era criação de Lucibel, o demiurgo mau que aprisionou as almas em corpos de matéria, nega-se a encarnação de Deus, a paixão e a ressurreição de Cristo perdem o valor e a vida humana deixa de ser santificada e exaltada. O ideal cátaro é de negação absoluta da vida. Os cátaros perfeitos viviam uma vida rigorosa: se tinham esposas recusavam manter vida sexual com elas, não comiam carne, viviam como faquires hindus, desprendidos de tudo que fosse material. Em suma, o catarismo era uma anarquia espiritual que, se tivesse vencido historicamente, significaria o fim da civilização humana tal como a conhecemos.
As suas ideias tinham fortes ligações ao gnosticismo do início da era cristã. Os historiadores dizem que se terá formado a partir da expansão das crenças dos Bogomilos (Reino dos Búlgaros) e dos Paulicianos (Médio Oriente). Eles diziam ser os verdadeiros cristãos. Traziam na sua doutrina a assinatura da mensagem sincrética do iniciado persa Mani, que tinha espalhado pelo mundo antigo a sua doutrina gnóstica. A salvação para o catarismo era a libertação da alma do seu invólucro, isto é, o corpo material, impuro, portanto consideravam que Deus havia criado apenas o Céu. A Terra seria criação de um génio mau, o demiurgo. Negavam portanto a teologia da criação. Devido a essa concepção, viam com bons olhos o suicídio. Os "sacerdotes" cátaros, ou 'bons homens', como se auto-denominavam, levavam vidas simples, desprovidos de quaisquer posses materiais, procurando afastar-se ao máximo da corrupção do mundo. Isso fez desta seita uma perigosa concorrente da Igreja Católica, que na época tinha um clero em crise moral.
O exemplo de pobreza e desapego dos cátaros acabava convencendo muitos católicos a passarem para o seu lado; recebiam o consolamentum, um rito que representava de maneira simbólica a sua morte com relação ao mundo corrupto. O anti-cristianismo dos cátaros era total: se a terra era criação de Lucibel, o demiurgo mau que aprisionou as almas em corpos de matéria, nega-se a encarnação de Deus, a paixão e a ressurreição de Cristo perdem o valor e a vida humana deixa de ser santificada e exaltada. O ideal cátaro é de negação absoluta da vida. Os cátaros perfeitos viviam uma vida rigorosa: se tinham esposas recusavam manter vida sexual com elas, não comiam carne, viviam como faquires hindus, desprendidos de tudo que fosse material. Em suma, o catarismo era uma anarquia espiritual que, se tivesse vencido historicamente, significaria o fim da civilização humana tal como a conhecemos.
O problema cátaro era grave, era uma heresia anti-cristã e anti-social. Defendia a derrocada de todas as leis, tradições, moral, instituições existentes .Segundo o líder cátaro, Limosus Negro, tudo que havia "debaixo da lua e do sol era corrupção e confusão", restando apenas destruir tudo o que a civilização havia conquistado. Mais grave ainda era a existência de autoridades coniventes com a expansão cátara: já haviam pessoas de alta estirpe que eram membros do movimento. Quase todas as famílias da nobreza do sul da França tinham filhos seus no movimento. Filhos da nobreza eram educados em escolas cátaras; as viúvas e muitos jovens retiravam-se para conventos cátaros. O desejo de uma vida mais pura que agitava a cristandade beneficiava a heresia. Mas para muitos, passar para o lado da heresia significava poder apoderar-se dos bens da Igreja, coisa que interessava a muitos nobres.
Apesar da gravidade do perigo, a Igreja durante meio século usou apenas das armas da caridade, da pregação e da discussão pública para trazer os cátaros de volta para o seu ao seio. Apenas quando já não era mais possível esperar, em vista de um gravíssimo risco de destruição da civilização, da sociedade, das leis, dos poderes religiosos e civis, a Igreja resolveu agir com mais rigor. Inocêncio III, que começou o seu pontificado em 1189, mandou excluir dos cargos públicos os hereges e confiscar os seus bens; ameaçou os nobres dizendo que se não combatessem a heresia permitiria que o rei da França lhes tomassem as terras. Em 1208 ordenou uma cruzada contra os hereges: os cavaleiros tinham o mesmo direito que os cruzados da Terra Santa de aprisionar os bens dos inimigos para si. O Papa proibiu aos cavaleiros massacres e roubos mas eles aconteceram com frequência. Em 1211 os cavaleiros católicos e os exércitos cátaros enfrentaram-se numa nova cruzada marcada, novamente por carnificinas.
Justamente para evitar mortes e condenações de hereges sem o devido processo legal é que se instaurou o Tribunal da Santa Inquisição. Foi instituído em 1231 por Gregório IX. Tal instituto tinha um fim: investigar e reprimir a anarquia espiritual e as acções dos heréticos, garantindo a solidez dos fundamentos da civilização cristã. Era um tribunal de defesa, de salvação pública, criado numa época de perturbações extremas.
A inquisição funcionava assim: numa região em que se suspeitava de actividades heréticas chegavam 4 inquisidores, no mínimo, normalmente frades franciscanos ou dominicanos. Convidavam a multidão para uma pregação na igreja, aconselhando os rebeldes a pedir perdão a Deus. No princípio a inquisição apresentava-se como um tribunal de penitência que tem primeiro a finalidade de reconciliar os pecadores com Deus e a Igreja através da confissão. Oferecia-se um prazo para a confissão da falta. No caso da sua heresia nunca ter causado escândalo público ser-lhe-ia imposta uma simples penitência secreta. Se tivesse sido pública, o confesso receberia uma indulgência e penas públicas, como por exemplo peregrinar a locais santos ou ficar algum tempo num convento. Os que não confessavam e tinham sido denunciados eram investigados e levados a um julgamento onde por regra não se permitia advogado; mas segundo fontes autorizadas muitos réus tiveram advogados; o Manual do Inquisidor de Bernardo Guy proíbe a intervenção de advogados sob a suspeita de que possam ser hereges como os réus ou pagos para encobrir os seus crimes; já no de Eymeric diz-se que “não se deve privar os réus do direito de defesa e de advogados”.
O Papa Inocêncio IV instituiu o júri para garantir a justiça da sentença pois considerava que numa matéria tão grave como a heresia devia-se proceder com muita prudência, garantindo o máximo de rigor no processo para que não resultasse numa condenação injusta. Em suma, graças à inquisição católica é que temos diversos mecanismos modernos de justiça que garantem o devido processo legal e os direitos básicos da pessoa no âmbito da aplicação da justiça. Embora excessos possam ter sido cometidos no uso dos instrumentos inquisitoriais, eles justificavam-se tendo em vista a grave situação social e histórica que vivia a comunidade medieval.
Ninguém em sã consciência poderia defender a abolição da polícia apenas por que abusos são cometidos por policias no exercício da sua função; assim também em termos gerais a função da inquisição foi positiva e necessária para abrandar o impacto social das heresias e permitir que os heréticos não fossem mortos sumariamente, como ocorria durante as cruzadas contra eles operadas pelos nobres, e que tivessem direitos mínimos, inclusive o de se arrepender e emendar-se, o que era afinal o objectivo da Igreja: a conversão e salvação das almas. As cruzadas não tinham sido capazes de sufocar a influência das heresias; apenas o braço jurídico da inquisição, associado ao trabalho religioso dos frades mendicantes (franciscanos e dominicanos), conseguiu refrear o acelerado crescimento das doutrinas heréticas, mantendo de pé a civilização católica.
Ninguém em sã consciência poderia defender a abolição da polícia apenas por que abusos são cometidos por policias no exercício da sua função; assim também em termos gerais a função da inquisição foi positiva e necessária para abrandar o impacto social das heresias e permitir que os heréticos não fossem mortos sumariamente, como ocorria durante as cruzadas contra eles operadas pelos nobres, e que tivessem direitos mínimos, inclusive o de se arrepender e emendar-se, o que era afinal o objectivo da Igreja: a conversão e salvação das almas. As cruzadas não tinham sido capazes de sufocar a influência das heresias; apenas o braço jurídico da inquisição, associado ao trabalho religioso dos frades mendicantes (franciscanos e dominicanos), conseguiu refrear o acelerado crescimento das doutrinas heréticas, mantendo de pé a civilização católica.
"A História é necessária, não apenas para tornar a vida agradável, mas também para lhe dar um significado moral. O que é mortal em si mesmo consegue a imortalidade através da História; o que é ausente torna-se presente; velhas coisas rejuvenescem, e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos. Se um homem de setenta anos é considerado sábio devido à sua experiência, quão mais sábio aquele cuja vida abrange o espaço de mil ou três mil anos! Pois, na verdade, pode-se dizer que um homem viveu tantos milénios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de História."
Marsílio Ficino (1433-1499), Carta a Giacomo Bracciolini
in catolicidadetradit.blogspot.pt
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