Quando o Concílio do Vaticano II estava a fazer os últimos retoques num dos
seus documentos-chave, a Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium),
o Papa Paulo VI propôs a inclusão de uma declaração que afirmava que o Papa “só
é responsável perante Deus”.
A sugestão submetida à Comissão Teológica do Concílio, para surpresa do
Papa, foi rejeitada: o Pontífice Romano, afirmou a Comissão Teológica, “está
sujeito à Revelação em si, à estrutura fundamental da Igreja, aos sacramentos,
às definições dadas por Concílios anteriores, e a outras obrigações demasiado
numerosas para mencionar”. O Papa não pode, por outras palavras, mudar a base da
fé da qual é guardião e não mestre. O Papa não pode decidir que a Igreja
funciona sem Bispos, que há onze sacramentos ou que Ário tinha razão ao
negar a divindade de Cristo.
Quanto às “outras obrigações demasiado numerosas pra mencionar”, estas
incluem a responsabilização do Papa no que concerne à maneira como as coisas
são, outro limite à autoridade do Papa. Lembro-me bem de uma conferência
académica na qual um filósofo sério (que se considerava um católico
extremamente ortodoxo e que se apresentou à nossa assembleia ecuménica dizendo:
“Sou o tipo de Católico que ainda se pode odiar”) anunciou, “Se o Papa dissesse
que ‘2+2=5’ eu acreditaria nele.” Outro filósofo, ainda mais distinto, deu a
resposta própria e católica a este ultramontanismo exagerado: “Se o Papa
dissesse que ‘2+2=5’, eu diria, publicamente, ‘Talvez não tenha compreendido o
que Sua Santidade pretendia dizer’. Em privado, eu rezaria pela sua sanidade.”
Estas duas vinhetas vieram-me à cabeça quando várias “máquinas” católicas
entraram em alta velocidade, cada uma tentando fazer interpretações sobre a
exortação apostólica do Papa Francisco para completar o trabalho
feito no Sínodo de 2014 e 2015.
Como de costume, o Cardeal Walter Kasper esteve no início, anunciando que a exortação apostólica seria um primeiro passo para defender a sua proposta para um “caminho penitencial” no qual o divórcio e a possibilidade de voltar a casar civilmente seriam aceites na santa comunhão, apesar do facto de a sua proposta ter sido criticada e rejeitada em ambos os Sínodos e em vários artigos académicos e livros.
A reviravolta de Kasper foi então aproveitada pelos habituais suspeitos da comunicação social que perguntaram aos típicos católicos que estão ao lado da Barca de Pedro, aqueles que falam dos assuntos mais por especulação do que por exortação apostólica abrindo caminhos revolucionários, envolvendo a Igreja numa eventual aceitação do casamento entre pessoas do mesmo sexo e de outros assuntos de interesse do lobby LGBT.
Isto, claro, iniciou uma contrarreação nos sectores tradicionais e
conservadores da blogosfera Católica, onde o isco foi mordido e começou um rol
de todas as maneiras de especulação obscura sobre
o que aconteceria se o Cardeal Kasper fosse seguido.
O que foi marcante sobre estes relações públicas no presente caso foi que
ambos, progressistas os conservadores/tradicionalistas, parecem ter um
entendimento errado sobre o que o Papa pode fazer.
Ao rejeitar a proposta do Papa Paulo VI sobre um pontificado “só
responsável perante Deus” o Vaticano II tornou claro que há limites à actuação
dos Papas. No que ficou decidido relativamente às matérias de fundo tratadas
nos dois Sínodos recentes, por exemplo, foi que nenhum Papa pode mudar o
ensinamento constante da Igreja sobre a indissolubilidade do casamento ou sobre
o grave perigo de receber a Santa comunhão indignamente porque estas são as
questões às quais a Comissão Teológica do Concílio chama “própria revelação”:
para ser específico, 'Mateus 19, 6' e '1Coríntios 11, 27-29'. O Papa Francisco também
nunca indicou, em nenhuma declaração pública, que pretende um desvio do que está
escrito por revelação para a constituição da Igreja.
Parece-me inevitável, infelizmente, a continuação da reviravolta
independentemente da forma como o Papa faça o seu apelo para o acompanhamento
pastoral dos divorciados e dos que voltaram a casar civilmente. Podemos esperar
que a articulação não seja tão ambígua que a batalha dos reformistas continue ad infinitum e ad nauseum. Mas, em toda esta tinta derramada e nestes pixéis
todos, lembremo-nos que há coisas na Igreja que não mudam, simplesmente porque não
podem.
in First Things
in First Things
Atenção: 1 Cor *11*, 27-29
ResponderEliminarMuito obrigado, caro Joao.
ResponderEliminar