sábado, 2 de janeiro de 2021

Cardeal jesuíta: "Os católicos de hoje são tão abertos ao mundo que quase se afogam no secularismo"

O Cardeal Avery Dulles, SJ, foi criado presbiteriano, mas quando estudava em Harvard já era mais agnóstico que presbiteriano. As suas dúvidas religiosas foram diminuídas durante um momento pessoal profundo em que saiu para um dia chuvoso e notou uma árvore a começar a florescer próxima do Charles River; após esse momento nunca mais "duvidou da existência de um Deus omnipotente e bom". Ele notou como o seu teísmo depressa se tornou numa conversão ao catolicismo: "Quanto mais examinava, mais impressionado ficava com a consistência e sublimidade da doutrina Católica." Converteu-se ao catolicismo no Outono de 1940, tornando-se depois jesuíta e feito em 2001 Cardeal pelo Papa João Paulo II.

«Nos anos noventa os problemas mudaram novamente. Os católicos hoje têm menos razões para se sentirem sobrecarregados pela bagagem acumulada dos séculos passados. Deixaram de ser forçados a aderir aos rígidos padrões estabelecidos pelos seus antepassados. Em países como os Estados Unidos, a gente nova não pode sequer imaginar o que teria sido viver na Igreja Católica de há cinquenta anos atrás. Estes celebram normalmente em igrejas ou auditórios despojados, sem altares nem imagens. Não sabem nada sobre as respostas do catecismo que os seus pais e avós memorizavam. Praticamente não sabem orações de cor, e são, talvez, incapazes de rezar o Angelus ou o Terço. Eles são tão abertos ao mundo que quase se afogam no secularismo. Tudo o que lhes é familiar veio à existência ontem e vai provavelmente desaparecer amanhã. Nas suas vidas nada parece estável e seguro. Não surpreende que muitos deles tenham de novo fome da riqueza e estabilidade de uma tradição católica a que eles quase perderam o acesso.

A recuperação da tradição estável não será fácil, mas os sinais dos tempos nos anos noventa são, em alguns aspectos, mais favoráveis às “tradições” do que os dos anos sessenta. Quatro considerações podem ser aqui propostas: 

1. O historicismo do passado recente exagerou a transitoriedade de todas as coisas humanas. As estruturas profundas da natureza, incluindo a natureza humana, são surpreendentemente resistentes à mudança. Quando lemos Homero ou Sófocles, o Êxodo ou os Provérbios, somos surpreendidos pelo pouco que as coisas realmente mudam. As tradições religiosas fornecem símbolos que expressam, de forma viva e concreta, a situação permanente e universal do ser humano diante da alteridade transcendente de Deus. Gestos como curvar-se e ajoelhar-se, o uso de velas e incenso, água e óleo, e a manutenção de espaços sagrados em lugares de culto – estes e mil outros costumes põe os fiéis em contacto com as estruturas profundas da realidade e promovem uma autêntica experiência religiosa. Nada na situação contemporânea convida a que estas ajudas para a celebração da liturgia sejam abandonadas. 

2. As tradições religiosas, precisamente porque não seguem a última moda, prestam um importante serviço, dispondo os crentes à comunhão com o sagrado e com o divino. Não devemos esquecer a importância do canto, dos ícones e das antigas línguas sacrais – como são para os cristãos, o hebraico, o grego e o latim. Mesmo o vernáculo usado no culto, se se quer evocar reverência para com o divino, deve ser distinto do jargão usado habitualmente no mercado. 

3. Nas religiões históricas, tal como o cristianismo, a tradição tem ainda outra função. Esta liga o crente contemporâneo aos eventos fundadores nos quais se alicerça a comunidade. Os dias de festa tradicionais, as leituras e rituais reactualizam de uma forma poderosa as experiências do Êxodo, do Sinai, da conquista da Terra Santa, do retorno do exílio babilónico e, para os cristãos, as acções redentoras de Jesus Cristo. Os actos comuns, tal como a bênção e efusão da água, ou a consagração do pão e do vinho, ultrapassam as próprias potencialidades simbólicas da natureza. Estes permitem-nos participar nos acontecimentos salvíficos que se encontram nas próprias fontes da nossa existência religiosa. 

4. As tradições são necessárias para iniciar e integrar os indivíduos em qualquer comunidade que exija lealdade e compromisso por parte dos seus membros. Para uma nação, a bandeira, feriados nacionais, hinos, e promessas de lealdade, são uma grande ajuda para estabelecer solidariedade entre os cidadãos. A Igreja precisa de tradições semelhantes. Sem o uso de crucifixos, de dias de festa, de hinos e profissões de fé, o Catolicismo dificilmente se poderia manter como uma sociedade mundial duradoura. Muitas dessas tradições foram severamente abaladas nos anos que se seguiram ao Vaticano II. Hoje precisam de ser reconstituídas e reforçadas. Sem uma integração mais efectiva na Igreja, pode acontecer que os fiéis deixem de ter a possibilidade de aceitar ou de interpretar correctamente as Escrituras, os símbolos normativos, e as afirmações de fé que vêm do passado.» 

Avery Dulles, The Craft of Theology. From Symbol to System, (1992), 101-103

1 comentário:

  1. Maria José Martins02 janeiro, 2021 17:44

    Muito atual este comentário, com a agravante de, hoje, a crise apontada à Juventude Americana, nos anos noventa, ter chegado à Europa!
    E nós, que pertencemos a uma geração, onde as duas fações estão bem presentes, ainda sentimos mais essa discrepância, chegando a ter medo de acabar por ir, também, na enxurrada, tal é a confusão, em que nos sentimos mergulhados.
    E a frustração é a mesma: "nada nos parece estável e seguro"...porque Aquilo que nos ENSINARAM ser IMUTÁVEL, hoje, muda, e se banaliza de dia para dia...", criando-nos uma sensação de angústia com sérios problemas de consciência, provocados pelo receio de estarmos a JULGAR injustificadamente. E isso CRIA DESÂNIMO E SOFRIMENTO, para não dizer revolta, porque nem sempre encontramos alguém que nos entenda. Daí, bem dizer como D. Schneider: "ABENÇOADOS BLOGUEIROS", que ainda nos vão mostrando, QUE NÃO ESTAMOS SOZINHOS!!

    ResponderEliminar

Muito obrigado por comentarem os nossos posts!
Para assegurar o mínimo de educação e bom senso, os moderadores do blog guardam a possibilidade de não aceitar qualquer comentário que pareça menos indicado para o blog. Para evitar que isso aconteça recomendamos que:
- não ofendam ninguém
- não utilizem palavras rudes ou de baixo nível
- não ponham publicidade tipo spam
- não se dirijam a ninguém pessoalmente sem se identificarem na mesma mensagem

Esta lista poderá ser actualizada.
Atenção: os comentários podem perfeitamente expressar opiniões contrárias às do post em questão.

+ infos, contactem-nos para:
senzapagareblog@gmail.com