quinta-feira, 11 de março de 2021

O burro de Balaão e a mortificação corporal

A mortificação corporal ou exterior é o tema do vigésimo terceiro capítulo da terceira parte do clássico de espiritualidade Introdução à Vida Devota pelo Doutor da Caridade, S. Francisco de Sales. Um livro que vale a pena ler algumas duzentas ou mais vezes antes de morrer, a Introdução à Vida Devota é particularmente notável pelo seu balanço próprio em todas as coisas, enquanto guia a alma com um zelo verdadeiro para servir Deus com todo o coração, mente e fortaleza.

Ao entrarmos na época da Quaresma - um tempo particularmente dedicado à mortificação corporal e ao jejum - fazemos bem em considerar a sabedoria e conselhos do santo Bispo de Genebra que vai mostrar o verdadeiro caminho da devoção para aqueles de nós que vivem no mundo (e não na clausura de um mosteiro ou convento).

S. Francisco de Sales dá uma indicação importante no que toca à intenção da mortificação exterior através de um comentário espiritual à história do burro de Balaão, que se encontra no Antigo Testamento, em Números 22, 21-35.

Mortificação exterior no mundo

Os monges e as freiras, que são sustentadas pela vida comum do mosteiro ou convento e que são, para além disso, guiados tanto pela regra da sua Ordem como pela sabedoria do seu superior, devem praticar a mortificação exterior de uma maneira ligeiramente diversa daquela dada àquelas pessoas cuja vocação é viver fora no mundo.

Seguindo a Regra de S. Bento, os religiosos de clausura podem fazer jejum numa refeição por dia durante toda a Quaresma, e abster-se de qualquer carne (não durante a Quaresma, mas durante o ano). Muitas comunidades tradicionais adicionam mais austeridade (incluindo  a disciplina ou o cilício). Todas estas práticas são boas e bem ajustadas para a vida monástica, mas são dificilmente concretizáveis por aqueles que vivem no mundo.

Como é que um homem casado, que não só tem os deveres da sua ocupação (que podem envolver trabalho físico) mas também as tarefas da vida da casa, sustentar-se com uma dieta de uma refeição por dia sem carne? Poderá uma mãe que educa os filhos em casa praticar proveitosamente a disciplina a meio do dia de escola?

Seguindo S. Francisco de Sales, eu digo que (para os leigos) o diligente e alegre cumprimento dos deveres diários de cada um vale mais do que fazer jejum e mortificações. De facto, o trabalho de uma pessoa pode valer-lhe muito mais do que qualquer jejum. A tarefa de educar uma criança a ir à casa de banho sozinha é muitas vezes uma maior mortificação para uma mãe de cinco crianças do que qualquer cilício poderia ser.

Ainda assim, S. Francisco e eu não defendemos o pôr de parte todas as formas de jejum e mortificação  - não, nada disso! Antes, recomendamos apenas que a prática da mortificação corporal seja adaptada para servir a vocação do penitente.

Oiçam as palavras do Gentil Doutor, no que toca ao jejum e abstinência:

“Se conseguem aguentar o jejum, farão bem em jejuar em certos dias para além daqueles prescritos pela Igreja. [...] Mesmo que não façamos jejum muitas vezes, o inimigo tem grande medo de nós quando vê que conseguimos jejuar. Quartas, Sextas e Sábados são os dias em que os primeiros Cristãos observavam rigorosamente a abstinência e vós devíeis, portanto, escolher alguns deles para jejuar tanto quanto a vossa devoção e o julgamento do vosso director vos aconselhar.

Ao longo do ano, podem ter um bom proveito fazendo algum pequeno sacrifício em todas as Quartas, Sextas e Sábados - para além de se abster da carne em todas as Sextas do ano, de acordo com um costume antigo. Durante a Quaresma, pode ser bom aumentar a intensidade desta mortificação corporal ao abster-se da carne em cada um destes três dias.

Em vez de privar o corpo do sono, S. Francisco de Sales recomenda uma disciplina mais prudente:

“Devemos usar a noite para dormir, cada um de acordo com a sua disposição, para obter aquilo que é necessário para passar o dia com utilidade. Muitas passagens da Escritura, o exemplo dos santos e a razão natural recomendam-nos fortemente a manhã como a melhor e mais proveitosa parte do dia. [...] Assim, eu penso que é prudente para nós ir descansar cedo à noite para que possamos acordar cedo pela manhã."

Seria especialmente bom focar-nos em retirarmo-nos um pouco mais cedo durante a Quaresma (e não seria esta uma grande mortificação para muitos de nós?!), para nos podermos levantar mais cedo no dia para uma meia hora extra de oração.

Viremo-nos agora para o exemplo que o burro do profeta pagão Balaam nos dá no que toca à razão da mortificação corporal.

A história do burro que fala de Balaão

Lembrar-se-ão da história do burro de Balaão, que é dada em Números 22. O profeta pagão Balaão tinha sido chamado pelo rei pagão Balak para amaldiçõar os Israelitas. Eventualmente Balaão levanta-se e vai cumprir o pedido do rei e, porque o seu coração era mau, o Anjo do Senhor pôs-se no caminho, com uma espada em punho para o cortar para a morte. No entanto, Balaão não conseguia ver o Anjo, mas apenas o seu burro que voltava para trás e de nenhum modo ia para a frente.

Nessa altura, Balaão bateu três vezes no burro (com grande severidade) - e notamos que o burro fez uma ferida ao pé de Balaão no processo. Ainda assim, o burro não ia para a frente, pois temia o Anjo mais do que o profeta.

Depois, por um poder milagroso, a boca do burro abriu-se e falou para Balaão e o Anjo do Senhor revelou-se-lhe. Balaão caiu por terra e percebeu que o pobre burro não tinha feito nada de mal, mas que ele tinha acabado de ficar em falta - o burro não merecia as pancadas, mas ele merecia ser cortado pelo Anjo. Pelo seu arrependimento, o Anjo permitiu a Balaão continuar a sua viagem.

O comentário espiritual de S. Francisco de Sales

Lemos na Introdução à Vida Devota:

"Vês Filoteia, apesar de Balaão ser a causa do mal, ele bate e derrota uma pobre besta que não o podia evitar."

É o que se passa connosco muitas vezes. Uma mulher vê o seu marido ou a sua criança deitados doentes e de repente começa a jejuar, a usar cilício e disciplina, como David fez numa ocasião parecida. Infelizmente, minha amiga, também tu derrotaste a pobre besta, castigaste o corpo, mas isso não pôde remediar o mal, nem foi a razão pela qual a espada de Deus estava apontada a ti. Corrige o teu coração, que tem como ídolo o teu marido e que tolera as muitas falhas da criança, preparando-a para o orgulho, a vaidade e a ambição.

Um homem vê novamente que cai frequentemente bem dentro do pecado da pureza. Remorsos interiores assaltam a sua consciência como uma espada afiada a espetá-lo com um santo medo e, quando o seu coração ganha controlo sobre si mesmo, ele diz 'Ah, carne malvada, corpo traidor, traíste-me!' Imediatamente através do jejum sem moderação, do uso excessivo da disciplina e do cilício difícil de suportar, ele cria grandes golpes no seu corpo.

Oh pobre alma, se a tua carne pudesses falar como o burro de Balaão, dir-te-ia 'Homem infeliz, porque me atacas? É contra ti, oh minha alma, que Deus prepara vingança. És tu que és o criminoso. Porque usas os meus olhos, as minhas mãos e os meus lábios para a devassidão? Porque me incomodas com pensamentos impuros? Alimenta os bons pensamentos e eu não farei maus movimentos. Evita as más companhias e eu não serei estimulado para a luxúria. És tu, ai de mim! que me atiras para as chamas e depois não queres que me queime. Lanças fumo para os meus olhos mas não queres que se inflamem.

Em tais casos Deus dir-vos-à sem dúvida: Batei, quebrai, rasgai e esmaguei o vosso coração em pedaços, pois é especialmente contra ele que a minha ira se levante (cf. Joel 2, 13). Para curar a comichão não há tanta necessidade de limpar e lavar como de purificar o sangue e purificar o fígado. Por isso também, para ser curar dos vícios, é de facto bom mortificar a carne, mas é ainda mais necessário limpar os nossos afectos e purgar os nossos corações.

Mas, acima de tudo e em qualquer lugar, não devemos nunca começar austeridades corporais sem o conselho do nosso director espiritual.
in New Theological Movement

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