Num anedotário que ainda está por
inventar, encontraremos um pedaço de literatura apócrifa que narra de forma pouco
ortodoxa o episódio em que Jesus pergunta aos discípulos «Quem dizem os homens
que eu sou?». Um dos discípulos responde «És João Baptista»; um outro diz «És
Elias»; Pedro confessa a fé da Igreja proclamando «És o Cristo, o Filho do Deus
vivo»; e um quarto elemento, um teólogo liberal, estranho à literatura
canónica, toma palavra e declara: «És uma lenda». Este poderia muito bem ser um
trecho de um evangelho dos modernos.
Uma lenda é uma narrativa de
proporções épicas, com dotes de encantar ou de atemorizar, mas declaradamente
falsa. É um produto da imaginação humana, que encontra prazer em transpor os
limiares da realidade para se aventurar no mundo dos possíveis. Na raiz da
lenda pode estar um facto, um acontecimento real, narrado por sucessivas
gerações que o embelezaram e engrandeceram até assumir dimensões mitológicas. Estas
lendas são a seiva de muitas religiões – há mesmo quem afirme que são a fonte
de toda a religião. A religião do ocidente, o cristianismo, é para esses uma
mitologia não diferente das mitologias orientais, e a sua lenda é a lenda de
Jesus, o Homem-Deus.
Este ponto de vista, popularizado
por documentários como Zeitgeist e
apresentada de vez em quando por certos apologetas do ateísmo como a explicação
mais razoável da origem do fenómeno cristão[1], começou
a ser elaborado com alguma seriedade no último quartel do século dezanove nas
fileiras dos historiadores e teólogos protestantes, por aquela que é designada
como escola da História das Religiões[2]. A tese
principal desta escola consiste em negar que o cristianismo tenha alguma coisa
de único ou original, porque é antes uma amálgama de elementos originários de
mitologias da Babilónia, do Egipto e da Pérsia.
Um académico representativo desta
linha de pensamento é o alemão Otto Pfleiderer. O argumento de Pfleiderer é de
que existem muitas similitudes entre o relato evangélico e os mitos de várias
religiões antigas. Ele encontra, por exemplo, similaridades entre os milagres
de Jesus e lendas taumatúrgicas contidas em outras fontes antigas[3] ou entre
a história da ressurreição de Jesus e os mitos de deuses ressuscitados[4]. O
verdadeiro Jesus, pois, se se dignou a existir, está envolto por um véu de sombras
que a ciência histórica não consegue levantar.
O teólogo Rudolf Bultmann tem a
mesma opinião. O Novo Testamento é essencialmente mitológico, devedor dos mitos
da escatalogia judaica e dos mitos de redenção gnósticos[5]. Os
relatos de milagres de Jesus, diz Bultmann, têm significativos paralelos em
textos da mitologia antiga[6]. A
história da ressurreição é para ele definitivamente lendária, inspirada em uma
certa interpretação de alguns versículos proféticos das escrituras judaicas[7] e – a
julgar pelo que dela Paulo escreve – em doutrinas gnósticas[8]. A opinião de Bultmann em
relação aos evangelhos e particularmente a respeito dos eventos sobrenaturais
aí inscritos é a de que na idade da luz eléctrica e da telegrafia sem fios já não
podemos conferir crédito algum a essas fantasias do mundo antigo[9].
Se entrarmos no exame das narrativas da ressurreição de
Cristo, parece que as semelhanças com as mitologias pagãs se multiplicam.
Citemos de modo breve algumas dessas narrativas das religiões antigas.
A antiga deidade suméria Dumuzi, conhecida na Mesopotâmia como Tamuz, segundo as antigas religiões destes lugares, depois de ter
descido ao submundo, revive seis meses em cada ano[10].
Na mitologia egípcia, o rei Osíris é trazido de novo à vida por Ísis, sua irmã e sua mulher,
depois de ter sido assassinado pelo irmão Set[11].
O mito conta ainda que Osíris morre e ressuscita em cada ano[12].
Na mitologia helénica, são muitas as divindades que têm
uma história semelhante à de Jesus de Nazaré. Vejamos algumas. O mito diz do
deus Dionísio que teve uma morte
violenta e ressuscitou[13].
O escritor da Antiguidade, Macrobius, dá uma versão da história em que Dionísio
terá ressuscitado e ascendido aos céus[14].
A morte de Adónis
era celebrada em Biblos, no Egipto, e, no dia seguinte, a sua ressurreição e
ascensão aos céus[15].
A celebração da morte e ressurreição de Adónis era realizada na Síria já no
século V antes de Cristo[16].
Na Frígia, o deus Átis
era celebrado, ano a ano, no Equinócio da Primavera, durante quatro dias[17].
No primeiro dia, era lamentada a sua morte[18].
No quarto dia, na «Festa da Alegria», era celebrada a sua ressurreição[19].
Estes são apenas alguns dos exemplos de mitos de deuses
mortos e ressuscitados nas culturas circundantes da Palestina daqueles tempos.
Da semelhança da narrativa evangélica da vida de Jesus, e, em particular, do
relato da sua morte e ressurreição, com os mitos das religiões antigas, os
autores mencionados, e outros que aderem à mesma hipótese, concluem uma relação
de causa e efeito entre estas e aquela, ou, pelo menos, a atribuição à história
tradicional de Jesus do mesmo carácter mitológico.
Exposta com a síntese necessária e oportuna a hipótese do
Jesus lendário, acompanhada pelo breve sumário dos argumentos que a suportam,
passamos ao exame da mesma.
É conveniente referir que a teoria do Jesus lendário só
será verdadeira na presença de alguns requisitos. Estes seriam: i) que a
narrativa da vida de Jesus não correspondesse aos relatos das eventuais
testemunhas presentes no tempo e no local em que Cristo terá vivido; ii) que haja
um real paralelo e uma real influência das mitologias antigas na história de
Jesus. Ora, há algumas razões pelas quais a hipótese do Jesus lendário não é
credível.
A primeira razão é que a narrativa da vida de Jesus
corresponde à crença dos primeiros cristãos. O testemunho escrito mais precoce
dos principais factos da vida de Jesus é dado pelo Apóstolo Paulo na primeira
carta que escreveu à igreja de Corinto (15, 3-8). É consensual entre os
historiadores que Paulo está a citar uma tradição muito mais antiga[20].
Há duas razões para acreditar que esta tradição tem uma origem temporal muito
próxima à das aparições de Jesus ressuscitado[21].
A primeira razão é que Paulo quando escreve, referindo-se à tradição que cita,
«eu recebi»[22], está a recorrer
a jargão próprio do costume judaico para a transmissão de tradições antigas[23].
A segunda é que a formulação empregada não aparenta ser paulina, o que indica a
transcrição de uma tradição previamente formulada por outro[24].
É provável que Paulo tenha recebido esta tradição quando
visitou Pedro e Tiago em Jerusalém depois da sua conversão (1Gal 1, 18-19), o
que é confirmado pela menção às aparições particulares do ressuscitado a Pedro
e Tiago (1Cor 15, 5,7)[25].
Isto significa, portanto, que Paulo terá ouvido o testemunho da vida, morte e
ressurreição de Jesus dentro dos primeiros anos após os eventos, quando fez
aquela visita. Alguns apontam um limite de tempo de cinco anos[26],
outros de seis a oito anos[27].
Contudo, estas são datas de limite e a formulação do testemunho pode ter
cristalizado ainda antes.
A conclusão a tirar de tudo isto é que a pregação dos
principais factos sobre a vida, morte e ressurreição de Jesus foi feita desde o
princípio pelos discípulos cristãos. Além disso, confirmando esta conclusão,
Paulo dá a entender claramente que esta pregação se baseia no testemunho ocular
de grupos de primeiros discípulos de Jesus e não em qualquer lenda formada
posteriormente.
A segunda razão é a existência de pessoas que foram reputadas
como testemunhas oculares dos eventos descritos nos Evangelhos. Paulo, no mesmo
trecho da carta aos coríntios, afirma que a pregação da vida, morte e
ressurreição de Jesus que ele apresenta era também testemunhado pelos demais
apóstolos (1Cor 15, 11). Isto é, aqueles que terão convivido com Cristo antes e
depois da sua morte e ressurreição atestavam o mesmo relato. Paulo lembra ainda
que a maior parte de um grupo de quinhentas pessoas que viram Jesus vivo depois
da sua crucificação e morte ainda está viva (1Cor 15, 6).
Por outro lado, ainda que não se admita que os autores dos
quatro evangelhos canónicos tenham testemunhado por si mesmos os eventos que
narram, a maior parte dos académicos concorda que o conteúdo da sua pregação mergulha
as suas raízes no relato daqueles primeiros cristãos reputados como testemunhas
oculares[28]. Bultmann
admite que os primeiros discípulos de Jesus acreditavam verdadeiramente nos
factos respeitantes à sua vida, morte e ressurreição[29].
A terceira razão é que, ao contrário dos protagonistas dos
mitos antigos que já referimos, a vida de Jesus é descrita num tempo e lugar
determinados e aqueles que com ele terão convivido são pessoas históricas[30].
Também em sentido contrário ao daqueles mitos, a história da vida, morte e
ressurreição de Jesus foi divulgada desde o início com a pretensão de exprimir
a verdade histórica. Em particular, a crença na ressurreição de Cristo surgiu
num mundo que não estava predisposto a acreditar numa ressurreição real do
corpo[31].
Quando Paulo subiu a colina do Aerópago para anunciar a boa-nova da
Ressurreição, os gregos que a ouviram zombaram da ideia de que um morto pudesse
voltar à vida, porque, para os gregos, os mortos eram skiai (sombras), psychai
(espíritos), eidola (fantasmas) que
habitavam o Hades, mas que jamais poderiam esperar um retorno à vida do corpo.[32]
A quarta razão é que não existe um verdadeiro paralelo
entre a narrativa evangélica da Ressurreição e as lendas das religiões antigas.
Em primeiro lugar, na Palestina do primeiro século não há vestígios
significativos da influência dos cultos antigos a deuses ressuscitados[33].
Em segundo lugar, há que notar que os vários mitos dos deuses mortos e
revividos são, na verdade, metáforas para o ciclo anual de vida e morte da
vegetação[34]. Estes deuses morriam
e reviviam em cada ano no mesmo ritmo dos ciclos naturais, conforme atestam as
celebrações em sua honra[35].
Incluem-se neste padrão de morte e renascimento os já citados Dumuzi, Tamuz, Osíris,
Dionísio, Adónis e Átis. Ora, este padrão está totalmente ausente da história
de Jesus. Em terceiro lugar, há dúvidas que alguma espécie de reanimação tenha
existido no mito original destes deuses. Os manuscritos conhecidos sobre o mito
de Dumuzi não contêm qualquer relato de uma ressurreição; nos manuscritos sobre
Tamuz não há qualquer menção específica à ressurreição; de Adónis só é dito que
ressuscitou em manuscritos do segundo século depois de Cristo e a ressurreição
de Átis só é descrita depois da segunda metade do segundo século depois de
Cristo[36].
Osíris é expressamente tido como revivido, mas não para a vida terrena e sim
para o submundo[37]. A
ressurreição corpórea não tem sentido no sistema de crenças egípcio[38].
Ora, de tudo o que dissemos, podemos concluir que o
evangelho dos modernos é falso. E, se a verdade avança a passos, este é já um
passo importante. A teoria do Jesus lendário pertence ela mesma aos mitos e à
pior classe dos mitos, que são aqueles que se quer fazer passar por ciência. O
estudo diuturno da história revelará que, afinal, não passa de pseudociência.
Hugo Monteiro Dantas
[1]
Dou o exemplo recente, revelado no sítio Patheos,
do contra-apologeta Bob Seidensticker, que pode ser lido em http://www.patheos.com/blogs/crossexamined/2012/11/jesus-a-legend-a-dozen-reasons/.
[2]
Religionsgeschichtliche Schule. A
Universidade de Gottingën, na Alemanha, foi a sede desta corrente
historiográfica. Para mais desenvolvimentos sobre esta linha de pensamento, cf.
HABERMAS, pág. 146.
[3] Cf. PFLEIDERER, Otto, The Early Christian Conception of Christ,
Londres, Williams and Norgate, 1905, págs. 63-83, em que o autor
enumera as semelhanças existentes entre os milagres de Cristo e as narrativas
originadas em outras religiões antigas.
[4] Cf., e.g., PFLEIDERER, Primitive Christianity, vol.I, Londres,
Williams and Norgate, 1906, págs. 4-5, muito explicitamente.
[5] BULTMANN, Rudolf, Kerigma and Myth – A Theological Debate,
Nova Iorque, Harper and Row Publishers, pág. 15.
[6] BULTMANN, apud HABERMAS, idem, pág.
150.
[7]
BULTMANN, apud HABERMAS, pág. 151.
[8]
Idem.
[9] BULTMANN, Kerygma and Myth, págs. 4-5.
[10]
Cf. o verbete Tammuz da Enciclopédia
Britânica que pode ser lido em http://www.britannica.com/EBchecked/topic/582039/Tammuz.
PFLEIDERER, pág. 99.
[11]
Cf., para síntese do mito de Ísis e Osíris, Osiris
na Enciclopédia Britânica, verbete que pode ser lido em http://www.britannica.com/EBchecked/topic/433922/Osiris.
Cf. ainda FRAZER, ...;. Cf. PFLEIDERER pág. 93-94, sobre as semelhanças da
ressurreição de Osíris com a ressurreição de Cristo.
[12]
FRAZER, idem, pág.
[13]
Idem, pág. 322.
[14]
Idem.
[15]
PFLEIDERER, idem, pág. 94; FRAZER, idem, págs. 278 a 281.
[16]
FRAZER, idem.
[17]
PFLEIDERER, pág. 94 e segs.
[18]
Idem.
[19]
Idem.
[20]
HABERMAS, op.cit., pág. 154.
[21]
Idem.
[22]
1Cor 15:3.
[23]
HABERMAS, op.cit., pág. 155; cf. nota de rodapé 148 na mesma página.
[24]
FULLER, Reginald, citado em HABERMAS, ibid.
[25]
HABERMAS, ibid., 156.
[26]
FULLER, citado por HABERMAS, ibid.
[27]
PANNENBERG, citado por HABERMAS, ibid.
[28] HABERMAS, op. cit., pág. 159.
[29] BULTMANN, op.cit., pág. 42.
[30] HABERMAS, op.cit., pág. 161.
[31] WRIGHT, N.T., The Ressurrection of the Son of God, 2003,
Minneapolis, Fortress Press, pág. 35.
[32]
WRIGHT, op.cit., págs. 43-44.
[33]
PANNENBERG, Wholfhart, citado em HABERMAS, pág. 163.
[34]
WRIGHT, op.cit., pág. 80; FRAZER também admite isto, nos vários capítulos que
dedica ao estudo das deidades antigas, op.cit., pág. 278 e segs.
[35]
FRAZER, idem.
[36]
Cf. HABERMAS, op. cit., págs. 164-165.
[37] Idem. WRIGHT, op.cit., pág. 80-81.
[38]
WRIGHT, op. cit., pág. 47.
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