Porquê, cem anos depois, atender a Fátima? Não estará irremediavelmente presa no passado, tão obsoleta quanto a Primeira República ou a Revolução de Outubro, suas contemporâneas? No tempo das apps e do Facebook, que interesse pode ter? Responder a esta questão exige entender o fenómeno. Sem lhe penetrar o significado, não se compreendem as multidões que aí se concentram.
Fátima inclui duas coisas, uma para quem quiser ouvir, a outra só para os crentes. Antes de mais, trata-se de um aviso; um aviso de catástrofe planetária. A aparição fala de questões político-militares com relevância global: a Grande Guerra, a "outra guerra ainda pior", a influência da Rússia, a perseguição à Igreja e ao Papa. Os factos são incontornáveis; a sua importância indiscutível. Qualquer pessoa, mesmo não crente, interessa-se por isto, considerando relevantes as advertências.
No entanto, é mesmo aí que a mensagem parece esgotada, pois os dramas de que fala já aconteceram. O próprio documento da Congregação para a Doutrina da Fé sobre "A Mensagem de Fátima", interpretação autorizada do ano 2000, considera "as predições infelizmente cumpridas". Será a atenção a Fátima meramente nostálgica?
A resposta só é afirmativa se considerarmos resolvidos os males que geraram os horrores do século XX. Apenas quem pense viver hoje sem riscos globais pode descartar os recados. Mas a ingenuidade do início dos anos 1990, quando a queda dos muros gerou uns tempos de alívio e optimismo, há muito se esgotou. Considerando o panorama mundial, dificilmente se fica descansado quanto a tais desgraças. Aliás, os sinais de alarme vêm consistentemente a aumentar de volume nos últimos tempos. Em certos aspectos estamos já pior do que em 1917.
Terrorismo, poluição e armas de destruição maciça estão cada vez mais presentes, como as novas formas de exploração, precariedade, marginalização e agressão. Mesmo em nossa casa, encontramos dimensões onde os avisos da Senhora são hoje ainda mais urgentes. Em 1917, por muito mal que estivesse, Portugal era dos poucos países do mundo onde não se usavam dinheiros públicos para matar pessoas, desde a abolição da pena de morte, onde fomos pioneiros.
Noventa anos depois, com a liberalização e a subsidiação do aborto em 2007, os recursos do Estado voltaram a ser aplicados para matar. Com a agravante de que agora as vítimas são inocentes e o número de execuções milhares de vezes superior ao antigo. Pior, o governo que hoje, sorridente, recebe o Papa prepara-se hipocritamente para, assim que o vir pelas costas, aprovar a lei da eutanásia, que alargará a prática de morte assistida pelo Estado. Fátima não perdeu actualidade.
O ser humano conseguiu avanços espantosos na modernidade. A técnica, a política, a medicina, a economia e a diplomacia fizeram desaparecer velhas misérias e permitiram um controle sobre o mundo e a vida que antes nem se imaginava. Os nossos problemas materiais estão resolvidos, desaparecendo grande parte das razões da zanga e do sofrimento humanos. Podemos dizer que a humanidade tem já recursos suficientes para dar a todos uma vida cómoda e pacífica. Mas o ser humano não anda mais feliz e está mesmo mais frágil e assustado do que antes.
A desigualdade global subiu com a prosperidade, pelo que a miséria permanece. Muitos até acusam o desenvolvimento de ser a causa. Mesmo nas zonas de abundância, ressurge a velha indigência em novas formas, no divórcio, na droga, na solidão, na perversão. ^As razões são frequentemente fúteis e incompreensíveis. Acaba de surgir um jogo na internet que leva os nossos filhos a mutilar-se e suicidar-se. Nesta fulgurante cavalgada do progresso devemos ter perdido algo de muito importante.
Não é difícil saber o quê. Os grandes ganhos materiais mudaram o sentido da vida do homem moderno. O domínio sobre o mundo é sedutor, até para os crentes. Criámos uma realidade à nossa dimensão, perdendo de vista o transcendente. Colocámos a nossa fé em nós mesmos, deixando de considerar Aquele que sempre foi a razão de ser. Não admira que a vida hoje seja só humana. Demasiado humana.
A Senhora, na conclusão das aparições, disse: "Não ofendam mais a Nosso Senhor, que já está muito ofendido!" Mesmo aqueles que não acreditam compreendem que o recado hoje não é irrelevante. Até achando que Deus não existe se percebe a ofensa. As consequências afectam todos, crentes e não crentes.
Reduzir Fátima a este elemento, como tantos fazem, torna a mensagem tenebrosa e patética. Mas a finalidade da Senhora não é fazer anúncios aterradores, mas apresentar a salvação. Infelizmente, a esta segunda dimensão apenas os crentes têm acesso: "Rezai o terço todos os dias", "sacrificai-vos pelos pecadores", "consagrai ao meu Imaculado Coração". Esta é a appde Fátima. São receitas estranhas no mundo pragmático do Facebook, mas já tentámos tudo o resto e os problemas só aumentaram. E esta app, naquelas vezes em que a aplicámos nestes cem anos, funcionou perfeitamente.
João César das Neves in Diário de Notícias
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