segunda-feira, 10 de julho de 2017

Meditação do Cardeal Ratzinger sobre a importância do futebol

Há 1 ano, para surpresa de muitos, Portugal vencia o Campeonato Europeu de Futebol. Para comemorar este belo feito apresentamos uma reflexão sobre futebol feita pelo insuspeito Cardeal Ratzinger, em 1985.

Regularmente a cada quatro anos, o Campeonato do Mundo de Futebol demonstra ser um evento que atrai centenas de milhões de pessoas. Nenhum outro evento no mundo consegue ter um efeito tão grande, o que demonstra que este evento desportivo toca algum elemento primordial da Humanidade, e há que se perguntar sobre o que se fundamenta todo esse poder de um jogo. O pessimista vai dizer que é como na Roma Antiga.

A palavra de ordem da multidão era: panem et circenses, pão e circo. O pão e o jogo seriam, então, o conteúdo vital de uma sociedade decadente que não tem outros objectivos mais elevados. Mas, mesmo se fosse para aceitar essa explicação, ela não seria absolutamente suficiente. Deveríamos perguntar mais uma vez: no que reside o fascínio de um jogo que assume a mesma importância do pão? Poderíamos responder, mais uma vez fazendo referência a Roma Antiga, que a demanda por pão e  jogo era na verdade uma expressão do desejo por uma vida paradisíaca, uma vida de saciedade sem preocupações e liberdade desmedida. 

Porque é isto que se entende em última análise com o jogo: uma actividade totalmente livre, sem propósito e sem limitações, ao mesmo tempo que envolve e ocupa todas as forças do homem. Neste sentido, o jogo seria uma espécie de tentativa de retorno ao paraíso perdido: a fuga da seriedade escravizante da vida quotidiana e da necessidade de se ganhar o pão, para viver a livre seriedade de tudo que não é obrigatório e, portanto, belo.

Assim, o jogo vai muito além da vida quotidiana. Mas, sobretudo nas crianças, tem também o carácter de um exercício para a vida. Ele simboliza a própria vida, e a antecipa, por assim dizer, de um modo livremente estruturado. Parece-me que o fascínio pelo futebol está essencialmente no facto de que ele relaciona esses dois aspectos de uma forma muito convincente.

Ele força o homem a impor-se uma disciplina de modo a obter, mediante o treino, um controle sobre si próprio; com o auto-controle, a superioridade e com a superioridade, a liberdade. Além do mais, ensina-lhe uma harmonia disciplinada: como um jogo de equipa obriga a inserção do indivíduo na equipa. Une os jogadores em torno de um objectivo comum; o sucesso e o fracasso de cada um está directamente ligado ao sucesso e o fracasso do todo.

Além disso, ensina uma leal rivalidade, onde a regra comum que se impõe é o elemento que liga e une na oposição. Por fim, a liberdade do jogo, se este se desenvolve correctamente, anula a seriedade da rivalidade. Ao assisti-lo os homens se identificam com o jogo e com os jogadores, e participam de modo pessoal na harmonia e na rivalidade, na seriedade e  na liberdade: os jogadores tornam-se um símbolo da própria vida; que por sua vez tem um impacto sobre os demais. Eles sabem que os demais homens se representam neles e sentem-se confirmados. Claro que tudo isso pode ser contaminado por um espírito comercial, submetido à seriedade sombria do dinheiro, que converte o jogo numa indústria e cria um mundo fictício de proporções assustadoras.

Mas, nem mesmo este mundo fictício poderia existir sem o aspecto positivo que é a base do jogo: o exercício para a vida e a superação da vida em direcção ao paraíso perdido. Em ambos os casos, trata-se da busca por uma disciplina da liberdade; de exercitar em si próprio a harmonia, a rivalidade e o acordo na obediência à regra.

Talvez ao reflectirmos sobre essas coisas poderemos novamente aprender com o jogo uma lição de vida, porque nele está evidente algo fundamental: o homem não vive só de pão, o mundo do pão é apenas o prelúdio da verdadeira Humanidade no mundo da liberdade. A liberdade por sua vez nutre-se da regra, da disciplina, que ensina a harmonia e a rivalidade leal, a independência do sucesso exterior e da arbitrariedade, e torna-se assim realmente livre. O jogo, uma vida. Se formos mais fundo, o fenómeno de um mundo apaixonado por futebol pode-nos dar muito mais do que apenas um pouco de diversão.

in 'Il Tempo' com tradução de Gercione Lima (Fratres in Unum)

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