Face à aparente corrupção e má gestão das autoridades eclesiais e do papado, a ideia aparentemente inspirada dos primeiros “reformadores” protestantes, era simplesmente de regressar às Escrituras para encontrar orientação. No Verão de 1519 Martinho Lutero, por exemplo, tinha chegado à conclusão que só nas escrituras é que se podia encontrar a única verdadeira e inquestionável fundação da fé e vivência cristãs. Sola scriptura.
Mas quais escrituras? Devin Rose começou a sua busca com a pressuposição de que a única autoridade infalível é a Bíblia protestante, composta de sessenta e seis livros. Mas poderia ter a certeza de que os restantes sete livros – Tobit, Judite, Sabedoria, Ben Sirá, Baruc, 1 e 2 Macabeus – da Bíblia católica não são fiáveis? Fossem quais fossem as escrituras aceites, nenhuma afirma que deve ser recebida como autoridade final. Na verdade os sessenta e seis livros incluídos na Bíblia Protestante foram inicialmente considerados “canónicos” com base na autoridade da Igreja Católica – uma fonte suspeita, aos olhos dos reformadores.
Mas mesmo partindo do princípio de que a Bíblia protestante é definitiva, qual dos reformadores devemos seguir? Tal como Devin Rose, Brad Gregory deparou-se com inúmeras discussões entre os principais reformadores, precisamente na altura em que procuravam lançar as fundações da restauração do Cristianismo:
«Lutero e Melanchthon discordaram de Zwingli e dos seus aliados sobre a natureza da presença de Cristo na Ceia do Senhor... Perante o testemunho de Zwingli: “Tenho por certo que Deus me ensina, porque o experimentei”, Lutero contrapõe: “Tenham atenção a Zwingly e evitem os seus livros como se fossem o veneno infernal de Satanás...”. Muitos cristãos anti-romanos discordaram suficientemente de Lutero, Zwingly, Bucer, João Calvino e todos os outros líderes luteranos ou da reforma protestante sobre verdade de Deus ao ponto de se recusarem a prestar culto ou estar em comunhão com eles.»
Mas é preciso interpretar correctamente a Bíblia. Gregory demonstra como os princípios tradicionais de interpretação foram descartados à medida que os vários reformadores, certos da sua inspiração, deixaram de se considerar obrigados a respeitar a tradição:
«Os reformadores rejeitaram as interpretações e afirmações patrísticas sobre a Escritura, tal como rejeitaram a exegese medieval, os decretos papais, o direito canónico, os decretos conciliares e as práticas eclesiais em tudo quanto contradizia as suas próprias interpretações da Bíblia... Discordaram sobre o significado e a prioridade dos textos bíblicos e da relação entre esses textos e as doutrinas sobre os sacramentos, culto, graça, Igreja e por aí fora. Discordaram sobre os princípios interpretativas que deviam orientar a compreensão das Escrituras, como por exemplo a relação entre o Antigo e o Novo Testamento, ou a permissibilidade de práticas religiosas que não tinham sido explicitamente proibidas ou sancionadas na Bíblia.»
Sem surpresas, a disseminação de diferentes interpretações por denominações protestantes ao longo dos séculos tem perturbado muitos dos nossos contemporâneos que procuram a mais plena expressão da verdade cristã. Devin Rose comenta:
«O espectro protestante cobre agora uma grande variedade de crenças contraditórias: baptismo infantil contra baptismo de crentes, a presença, de alguma forma ou apenas simbólica, de Cristo na Eucaristia, a indissolubilidade do casamento ou a aceitação do divórcio, a condenação do aborto enquanto homicídio ou a permissibilidade do aborto, a ordenação de mulheres ou só de homens, a trindade enquanto Deus em três Pessoas ou enquanto um Deus com três propósitos.
Há diferenças sobre a predestinação e o livre arbítrio, sobre se é possível perder-se a salvação, sobre a validade do “casamento” homossexual, e por aí fora... O casamento já foi, em tempos, considerado uma união indissolúvel por todos os cristãos mas, tal como a contracepção, a esterilização e o aborto, a maioria das comunidades protestantes já inverteu os seus ensinamentos sobre a impossibilidade do divórcio e recasamento, permitindo agora aos seus membros que se casem, desde que tenham obtido primeiro do seu anterior esposo um divórcio civil.»
Perante uma disparidade tal de interpretações vem-nos à mente 1 Coríntios 14,8: “E, se a trombeta só emitir sons confusos, quem é que se prepara para a guerra?” A World Christian Encyclopedia afirma que existem mais de 33 mil denominações cristãs. A escolha difícil, enfrentada muitas vezes por protestantes sérios, é entre a Igreja e “igrejas”.
De acordo com Devin Rose, a consequência última e inevitável de se basear a religião num livro, mesmo um livro sagrado e inspirado como a Bíblia, foi uma variedade de interpretações contraditórias, sem que exista qualquer critério fiável de escolha para o crente. Rose foi coerente com a sua própria proposição, “se o Protestantismo é verdade”, e encontrou... a Igreja.
Brad Gregory vai ainda mais longe, traçando a origem da hegemonia actual do secularismo às discórdias incessantes e intratáveis entre protestantes e entre católicos e protestantes. Sem outra solução para harmonizar a dissensão, a Holanda foi pioneira na condução do mundo Ocidental à “liberdade de religião”. Os juízes holandeses:
«Romperam com mais de um milénio de Cristianismo... ao transformar a fé “numa questão privada de preferência individual”. A liberdade de religião protegeu a sociedade da religião e, por isso, secularizou a sociedade e a religião...»
No meio desta secularização, “os cristãos americanos estão divididos em relação a todas as questões polémicas políticas e morais, do divórcio ao aborto, ao sistema de saúde e à ecologia.”
Como lidamos, então, com as “Questões de Vida” tão prementes? Gregory explica que nos voltámos para as ciências empíricas e o cientismo materialista como fonte de verdade por defeito. Depositamos a nossa confiança em ciências como a física que, depois de oitenta anos, ainda não faz a menor ideia como conciliar a teoria quântica com a teoria da relatividade; ou ciências como a psicologia evolucionária, que nos apresenta uma longa lista de comportamentos contraditórios que alegadamente têm a sua origem na evolução biológica: o Ser Humano enquanto ferozmente competitivo ou naturalmente cooperativo; essencialmente monogâmico ou polígamo; genocida ou pacífico; que cuida dos pobres ou os ignora.
Não obstante aderimos, religiosamente, à ciência como juiz supremo. Deus nos valha.
Howard Kainz in The Catholic Thing via Actualidade Religiosa
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