Já desde há muitos anos se tem falado e escrito sobre o Concilio Vaticano II (1962-1965) (CV II): sobre os seus antecedentes próximos e até remotos; as suas virtudes; as suas ambiguidades; as deficiências e dificuldades na sua aceitação; enfim, as suas sequelas e, the last but not the least, o modo correcto de o interpretar, ou seja, a sua hermenêutica.
Ficou já para os anais da história conciliar, o discurso à Cúria romana que o Papa Bento XVI fez a 22 de Dezembro de 2005 (1), com a tipificação da hermenêutica conciliar em dois modos contrários: a da «hermenêutica da descontinuidade e da rotura» e a da «hermenêutica da reforma, da renovação na continuidade»; assim como a “lição” proferida ao Clero de Roma, sobre alguns dos mais significativos documentos do Concílio, no seu último encontro com eles, enquanto Papa, no dia 14 de Fevereiro 2013 (2), apenas a duas semanas da sua resignação efectiva.
Um dos temas maiores, entre tantos outros, sobre o qual o CV II se debruçou, foi o da «Constituição Hierárquica da Igreja e Em Especial o Episcopado», no qual, é sabido, trabalhou então como teólogo perito, o Padre Joseph Ratzinger. Tema esse que constitui o Capitulo III da «Constituição dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium» (LG). Neste Capítulo III da LG, ficaram promulgados para além dos aspectos relacionados com a sucessão dos doze Apóstolos; o pensamento da Igreja sobre o Colégio dos Bispos, sucessores dos Apóstolos, e a sua Cabeça (o Papa); os poderes do Romano Pontífice; os poderes e as relações entre os próprios Bispos; as relações do Papa no e com o Colégio dos Bispos; a reafirmação da infalibilidade «na definição de doutrinas de fé ou costumes» de que goza o Papa, enquanto Cabeça do Colégio dos Bispos, assim como daquela de que é também possuidor o «colégio episcopal, quando este exerce o supremo magistério em união com o sucessor de Pedro» (LG, 25).
Da maior relevância para a história da redacção e correcta interpretação daquele Capítulo III da LG, há que referir que todo ele, foi objecto de uma célebre «Nota Explicativa Prévia», da Comissão Doutrinal do Concílio, comunicada «por autoridade superior» (sic, leia-se a mando de Paulo VI), em meados de Novembro de 1964, a dias da votação final da Constituição LG, onde se declarava que «é segundo o espírito e o sentido desta nota que se deve explicar e entender a doutrina exposta nesse capítulo terceiro» (3).
É nesta Nota que se detalha, «por autoridade superior» (sic), o entendimento a fazer sobre o que é o Colégio dos Bispos; como uma pessoa se torna seu membro; e qual a relação dos poderes do Sumo Pontífice «só» e em união com o próprio Colégio dos Bispos do qual é a Cabeça (4).
Em suma: a Nota de facto pretendeu enfraquecer uma interpretação demasiado generosa do alcance da noção de colegialidade e destacava a plenitude de poder de que sempre goza o Papa sozinho, enquanto Sucessor de Pedro.
Passados vinte anos - ia o Papa João Paulo II a cerca de um quarto do que seria o seu longo pontificado - realizou-se o segundo Sínodo Extraordinário dos Bispos, em Outubro de 1985, para «celebrar, verificar, [e] promover o Vaticano II». No final, os Bispos elaboraram o «Relatório Final» (RF), do qual só agora eu vim a tomar conhecimento, através de uma versão em Inglês (5).
Constatei que nenhuma versão deste Relatório, em que língua seja, consta do sítio internet do Vaticano, nem mesmo do sítio institucional específico dedicado ao Sínodo dos Bispos. Ao que me parece, naquele tempo era essa a regra: o Relatório Final dos Bispos, assim como as propostas a fazer ao Papa, eram endereçados exclusivamente ao Santo Padre, não sendo dado a conhecer ao público, ao contrário do que tem acontecido já desde Bento XVI. Para já, recordemo-nos de que foi decorrente do expresso pedido dos Bispos neste Sínodo Extraordinário de 1985, que se deveu a redacção do Catecismo da Igreja Católica, promulgado por João Paulo II em 1992, assim como o respectivo Compêndio, aprovado e publicado por Bento XVI em 2005.
Trinta anos depois daquele Sínodo Extraordinário de 85, ao comemorar o cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos pelo Papa Paulo VI – de facto, a relevante expressão institucional perpétua da Colegialidade dos Bispos – o Papa Francisco fez um importante Discurso, em Outubro de 2015, no decurso do segundo Sínodo sobre a família, onde se deteve sobre a sinodalidade, isto é, nas suas palavras, o «caminhar juntos – leigos, pastores, Bispo de Roma»; sendo o Papa muito claro na sua intenção:
«Devemos continuar por esta estrada. O mundo, em que vivemos e que somos chamados a amar e servir mesmo nas suas contradições, exige da Igreja o reforço das sinergias em todas as áreas da sua missão. O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio» (6).
Não tardaram recensões deste discurso de Francisco, algo triunfantes, onde se louvavam os benefícios do «caminhar juntos» e da similitude entre a Igreja e o Sínodo e onde se revigora a implementação da colegialidade, como, por exemplo, a de um site brasileiro (7), no qual, dias depois, até se ousou, abusivamente, proclamar o seguinte grito que mais parece de vingança:
«Pois bem, o Papa Francisco pôs fim, em um único discurso, à Nota explicativa praevia de 1964 e às conclusões do Sínodo de 1985» (8) (negritos no original).
Quanto à referida Nota, já vimos atrás o que Paulo VI, com a sua autoridade, pretendeu explicar e sublinhar; e veremos mais adiante que o seu teor foi claramente reafirmado no RF de 1985. Numa 2ª parte deste meu artigo (9), veremos algumas das conclusões do Sínodo de 1985, às quais, segundo aquele articulista, o Papa Francisco terá alegadamente posto fim, o que não é verdade.
E com esta e outras atitudes tendenciosamente “iconoclastas” podemos confrontar as acusações que - numa outra perspectiva bem diversa, ainda que também de rotura, se têm intensificado mais recentemente em artigos e blogs - produzidos também contra uma correcta interpretação do Concílio e em desfavor dos Papas que o receberam, nomeadamente João Paulo II e Bento XVI, acusando-os de influências modernistas e por aí fora; sem terem em conta o que João Paulo II pretendeu com o Sínodo Extraordinário de 85, como é patente no RF respectivo, nem muito presente a documentada mudança de perspectivas que Joseph Ratzinger foi de facto assumindo desde que foi teólogo perito no Concílio até ao seu actual estatuto inédito de Papa Emérito. Quanto a este, basta ler o modo como o próprio Bento XVI se refere à sua participação no Concílio e aos seus efeitos, no recente livro-entrevista Últimas conversas com Peter Seewald, particularmente o capítulo da segunda parte intitulado justamente O Concílio: entre sonho e traumatismo (10.).
De facto, a referida contraposição de perspectivas e interpretações da história e dos documentos do Concilio Vaticano II, só vem acentuar (ou, finalmente clarificar?, só o futuro o dirá) a cada vez mais notória confusão que cresce actualmente na Igreja e que só não é vista ou admitida por quem tem dificuldades em lidar com graves situações de conflito; mas também por medo ou, porventura, devido a uma “prudente” gestão das relações de poder clerical...
Efectivamente, o Sínodo Extraordinário de 1985, já por aqueles anos, colocava-se numa posição de justo equilíbrio na análise do Concílio e dos primeiros vinte anos dos efeitos que se lhe seguiram, percorrendo um processo de recepção que João Paulo II procurou, digamos, regularizar numa «perspectiva interpretativa oficial, autorizada e normalizante» (sic) - como escreveu, num longo e clarificador artigo, um Professor da Universidade Católica de Minas Gerais, cuja leitura me permito recomendar (11).
Avancemos então para algumas significativas passagens do Relatório Final (RF) de 1985. Ele é constituído por duas partes fundamentais: na I, afirma-se o Tema Central deste Sínodo – Celebração, Verificação, Promoção do Vaticano II; na II, debruça-se sobre alguns Temas Particulares do Sínodo – o Mistério da Igreja, as Fontes da vida para a Igreja, a Igreja como Comunhão (e neste, particularmente sobre o tema quente da Colegialidade), a Missão da Igreja no Mundo (e aqui, detém-se sobre o significado da célebre noção de “Aggiornamento” (12), assim como da Inculturação).
Como é costume nos Relatórios finais, ao final de cada uma das diversas partes e temas, surgem as propostas dos Bispos ao Papa. Tanto quanto me foi possível investigar, deste Sínodo não resultou nenhuma Exortação Apostólica Pós-sinodal de João Paulo II; os frutos mais notórios e de maior impacto foram, como já atrás referi, o Catecismo e o respectivo Compêndio. E não é certamente pouco: penso até que podemos dizer, hoje, que a sua necessidade e oportunidade se têm manifestado autenticamente proféticas.
Aqui vão então e sem comentários, nesta 1ª parte do meu artigo, já alguns excertos do RF de 1985 que efectivamente me parecem muito oportunos divulgar, perante o contexto eclesial actual (com tradução para português da minha responsabilidade, a partir da referida versão em inglês):
I. O Tema Central deste Sínodo: Celebração, Verificação, Promoção do Vaticano II
«Celebrámos em unanimidade o Concílio Vaticano II como uma graça de Deus e um dom do Espírito Santo, ao qual se seguiram muitos frutos espirituais para a Igreja universal e para as Igrejas Particulares, assim como para o homem do nosso tempo. Também verificámos unanimemente e com alegria que o Concílio é uma expressão legítima e válida; e uma interpretação do depósito da fé, tal como se encontra na Sagrada Escritura e na tradição viva da Igreja» (RF, I,2).
«A larga maioria dos fieis recebeu o Concílio Vaticano II com zelo; uns poucos aqui e além, mostraram resistência ao mesmo» (RF, I,3).
«Seja como for, embora grandes frutos tivessem brotado do Concílio, ao mesmo tempo reconhecemos, com grande sinceridade, deficiências e dificuldades na aceitação do mesmo. Na verdade, certamente também houve sombras no período pós-conciliar, em parte devido a uma incompleta compreensão e aplicação do Concílio, em parte devido a outras causas. Todavia, de maneira nenhuma pode ser afirmado que tudo o que aconteceu depois do Concílio foi por este causado» (RF, I,3).
«Entre as causas internas [das dificuldades] devem-se notar uma leitura parcial e selectiva do Concílio, assim como uma interpretação superficial da sua doutrina num sentido ou outro. Por um lado, houve decepções porque fomos muito hesitantes na aplicação da verdadeira doutrina do Concílio. Por outro lado, devido a uma leitura parcial do Concílio, foi feita uma apresentação unilateral da Igreja, como uma estrutura puramente institucional, esvaziada do seu Mistério» (RF, I,4).
«De quando em quando, também houve um descuido no discernimento dos espíritos, faltando distinguir correctamente entre uma legítima abertura do Concílio ao mundo e a aceitação da secularização de uma mentalidade mundana e da ordem dos valores» (RF, I,4).
«A interpretação teológica da doutrina conciliar deve prestar atenção a todos os documentos, em si mesmos e nas suas inter-relações, de tal modo que o significado das afirmações do Concílio – frequentemente muito complexos – possa ser entendido e expresso. Uma especial atenção deve ser prestada às quatro Constituições do Concílio, as quais contêm a chave interpretativa dos outros Decretos e Declarações. Não é lícito separar o carácter pastoral do vigor doutrinário dos documentos. Da mesma maneira, não é legítimo separar o espírito da letra do Concílio. Além do mais, o Concílio deve ser compreendido em continuidade com a grande tradição da Igreja e ao mesmo tempo nós devemos receber a luz da doutrina do próprio Concílio para a Igreja de hoje e para o homem do nosso tempo. A Igreja é uma e a mesma através de todos os Concílios» (RF, I,5).
18 de Janeiro de 2018, 1º dia da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos
João Duarte Bleck, médico e leigo Católico
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Referências (da 1ª parte)
3. cf. pp. 114-116, Concílio Ecuménico Vaticano II – Constituições, Decretos, Declarações e Documentos Pontifícios, 10ª edição, Editorial AO, Braga, 1987.
4. cf. Idem.
9. A 2ª parte será publicada em breve tempo.
10. A edição que li deste livro, foi a seguinte tradução em Francês: Benoît XVI, Dernières conversations avec Peter Seewald, traduit de l’allemand par Odile Demange, Librairie Arthème Fayard, septembre 2016, pp 143-167. Muito reveladora é a longa e documentada pergunta de Seewald onde este começa por afirmar: «A sua posição sobre o tema Concílio evoluiu progressivamente» (p 165), à qual o Papa Emérito começa por responder: «Eu teria tendência a responder que sim» (p 166). Livro a ler obrigatoriamente por quem pretenda perceber melhor este génio da Igreja das últimas décadas, assim como o que foi o desenrolar do Concílio e o período posterior da sua recepção e aplicação.
11. Rodrigo Coppe Caldeira, O pontificado de João Paulo II e a herança do Concílio Vaticano II: em busca de uma interpretação normalizante, in Revista Brasileira de História das Religiões, ANPUH, Maringá (PR) v. V, Edição Especial, Janeiro 2013, pp 155-173.
Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdfespecial_2013/9.pdf
12. Aggiornaménto: esta palavra italiana, significa actualização, modernização, o processo de pôr em dia (cf. Dicionário de Italiano-Português, 3ª edição, Porto Editora, 2009).
Faz falta uma humilde reflexão, reflicta-se nos 6 pontos indicados pelo Papa São João XXIII como «Fim principal do Concílio» e como se encontram entre nós:
ResponderEliminarV. Fim principal do Concílio: defesa e difusão da doutrina
1. O que mais importa ao Concílio Ecumênico é o seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz.
2. Essa doutrina abarca o homem inteiro, composto de alma e corpo, e a nós, peregrinos nesta terra, manda-nos tender para a pátria celeste.
3. Isto mostra como é preciso ordenar a nossa vida mortal, de maneira que cumpramos os nossos deveres de cidadãos da terra e do céu, e consigamos deste modo o fim estabelecido por Deus. Quer dizer que todos os homens, tanto considerados individualmente como reunidos em sociedade, têm o dever de tender sem descanso, durante toda a vida, para a consecução dos bens celestiais, e de usarem só para este fim os bens terrenos sem que seu uso prejudique a eterna felicidade.
4. O Senhor disse: « Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça » (Mt 6, 33). Esta palavra « primeiro » exprime, antes de mais, em que direção devem mover-se os nossos pensamentos e as nossas forças; não devemos esquecer, porém, as outras palavras desta exortação do Senhor, isto é: « e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo » (Mt 6, 33). Na realidade, sempre existiram e existem ainda, na Igreja, os que, embora procurem com todas as forças praticar a perfeição evangélica, não se esquecem de ser úteis à sociedade. De fato, do seu exemplo de vida, constantemente praticado, e das suas iniciativas de caridade toma vigor e incremento o que há de mais alto e mais nobre na sociedade humana.
5. Mas, para que esta doutrina atinja os múltiplos níveis da atividade humana, que se referem aos indivíduos, às famílias e à vida social, é necessário primeiramente que a Igreja não se aparte do patrimônio sagrado da verdade, recebido dos seus maiores; e, ao mesmo tempo, deve também olhar para o presente, para as novas condições e formas de vida introduzidas no mundo hodierno, que abriram novos caminhos ao apostolado católico.
6. Por esta razão, a Igreja não assistiu indiferente ao admirável progresso das descobertas do gênero humano, e não lhes negou o justo apreço, mas, seguindo estes progressos, não deixa de avisar os homens para que, bem acima das coisas sensíveis, elevem os olhares para Deus, fonte de toda a sabedoria e beleza; e eles, aos quais foi dito: « Submetei a terra e dominai-a » (Gn 1, 28), não esqueçam o mandamento gravíssimo: « Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás » (Mt 4, 10; Lc 4, 8), para que não suceda que a fascinação efêmera das coisas visíveis impeça o verdadeiro progresso.
http://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621011_opening-council.html