terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

50 anos da Humanae Vitae: contestação de sempre vs Magistério de sempre (2ª parte)

Aqui continuo e concluo o artigo já saído sob o mesmo título, maioritária e propositadamente constituído por extensas transcrições de excertos do Magistério da Igreja na sequência das contestações à encíclica Humanae Vitae, publicada pelo Papa Paulo VI, há 50 anos.

A 12 de Novembro de 1988, João Paulo II, discursava aos participantes no II Congresso Internacional de Teologia Moral (9), que se debruçou justamente sobre o tema da encíclica Humanae Vitae. Este seu forte discurso permanece de uma actualidade impressionante. Alguns excertos (tradução do italiano e sublinhados meus):

Tal testemunho [oferecido pelos Bispos, no Sínodo de 1980] recolhi então eu mesmo na exortação pós-sinodal Familiaris Comsortio, propondo de novo, no contexto mais amplo da vocação e da missão da família, a perspectiva antropológica e moral da Humanae Vitae, e também a consequente norma ética que dela se tira para a vida dos esposos. (nº 2).

Não se trata, efectivamente, de uma doutrina inventada pelo homem: ela foi inscrita pela mão criadora de Deus na própria natureza da pessoa humana e foi por Ele confirmada na Revelação. Colocá-la em discussão, portanto, equivale a negar a Deus mesmo, a obediência da nossa inteligência. Equivale a preferir a luz da nossa razão à luz da sapiência divina, caindo assim na obscuridade do erro e acabando por afectar outros princípios fundamentais da doutrina cristã.

É necessário, a tal respeito, recordar que o conjunto da verdade, confiado ao ministério de pregação da Igreja, constitui um todo unitário, quase uma espécie de sinfonia, na qual cada verdade se integra harmoniosamente com as outras. Os passados vinte anos demonstraram, ao contrário, esta íntima consonância: a hesitação ou a dúvida acerca da norma moral, ensinada na Humanae Vitae, envolveu também outras verdades fundamentais da razão e da fé. (nº 3).

Durante estes anos, na continuação da contestação da Humanae Vitae, foi colocada em discussão a própria doutrina cristã da consciência moral, aceitando a ideia da consciência criativa da norma moral. Desse modo, foi radicalmente quebrado aquele vínculo de obediência à santa vontade do Criador, em que consiste a mesma dignidade do homem. A consciência, de facto, é o “lugar” em que o homem é iluminado por uma luz que não deriva da sua razão criada e sempre falível, mas da sabedoria mesma do Verbo, no qual tudo foi criado. “A consciência” – escreve ainda admiravelmente o Vaticano II – “A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Gaudium et Spes, 16).

Daqui, brotam algumas consequências, que vale a pena sublinhar.

Dado que o Magistério da Igreja foi instituído por Cristo para iluminar a consciência, reportar-se a esta consciência precisamente para contestar a verdade de quanto é ensinado pelo Magistério comporta a recusa da concepção católica seja do Magistério seja da consciência moral. Falar da dignidade intangível da consciência, sem especificações ulteriores, expõe ao risco de graves erros. Bem diversa, efectivamente, é a situação em que cai a pessoa que, depois de ter posto em acto todos os meios à sua disposição na busca da verdade, incorre em erro e aquela, ao invés, de quem, ou por mera aquiescência à opinião da maioria, frequentemente criada pelos poderes do mundo, ou por negligência, pouco se importa com descobrir a verdade

Entre os meios que o amor redentor de Cristo preestabeleceu a fim de evitar este perigo, coloca-se o Magistério da Igreja: em Seu nome, aquele possui uma verdadeira e própria autoridade de ensino. Não se pode, portanto, dizer que um fiel pôs em acto uma diligente busca do verdadeiro, se não tem em conta o que o Magistério ensina; se, equiparando-o a qualquer outra fonte de conhecimento, se constituísse seu juiz; se, na dúvida, persegue mais a própria opinião ou aquela de teólogos, preferindo-a ao ensinamento certo do Magistério. (nº 4).

Paulo VI, qualificando o acto contraceptivo como intrinsecamente ilícito, visou ensinar que a norma moral é tal que não admite excepções: nenhuma circunstância pessoal ou social pôde, pode e poderá jamais, tornar em si mesmo ordenado um tal acto. A existência de normas particulares em ordem ao agir intramundano do homem, dotadas de uma tal força obrigatória que exclui sempre e de qualquer maneira a possibilidade de excepções, é um ensinamento persistente da Tradição e do Magistério da Igreja que não pode ser posto em discussão pelo teólogo católico. (nº 5).

A responsabilidade que cai sobre vós neste campo, caros docentes de teologia moral, é grande. Quem pode medir o influxo que o vosso ensino exerce, seja na formação da consciência dos fieis, seja na formação dos futuros pastores da Igreja? No decurso destes vinte anos não faltaram, infelizmente, da parte de um certo número de docentes, formas de aberto dissenso ao confrontarem quanto ensinou Paulo VI na sua encíclica. (nº 6).

Em tal admirável aventura do vosso espirito, a Igreja não é um obstáculo para vós: ao contrário, é uma ajuda. Afastando-vos do seu Magistério, expor-vos-ia à vaidade do erro e à escravidão das opiniões: aparentemente fortes, mas em realidade frágeis, pois que só a verdade do Senhor permanece eterna. (nº 8).

A 16 de Fevereiro de 1989, era a vez do jornal L’Osservatore Romano se manifestar na defesa da encíclica, com um texto intitulado La norma morale di Humanae Vitae e il compito pastorale / A norma moral da Humanae Vitae e a tarefa pastoral (10) - eu diria de forte sabor “ratzingeriano” - onde se dizia (tradução do italiano e sublinhados meus, com os itálicos do original):

Como os evangelhos testemunham, a verdade e a misericórdia compenetram-se e formam a única e indivisa atitude do Senhor Jesus. De uma transparência particularmente significativa e paradigmática da sua atitude pastoral é a palavra que Jesus dirige à mulher pecadora: «Ninguém te condenou? … Nem eu te condeno; vai e de agora em diante não peques mais» (Jo 8,10-11). Chamando pelo nome o bem e o mal, Jesus não falsifica a verdade moral, antes atesta-a de modo inequívoco; e oferecendo o seu amor misericordioso à mulher pecadora, ele leva-a de novo à verdade e à salvação.

Deste modo, relativamente aos cônjuges em dificuldade, se verdadeiramente se quer levar-se-lhes uma ajuda real, o amor e a solicitude pastoral não podem jamais serem separados da verdade, não podem jamais eliminar ou atenuar o dever de chamar pelo nome o bem e o mal. Como felizmente se expressou Paulo VI na sua encíclica: «Não minimizar em nada a salutar doutrina de Cristo é uma eminente forma de caridade para com as almas» (HV 29).

O dever de chamar pelo nome o bem e o mal, no âmbito da procriação responsável, foi cumprido, com fidelíssimo amor a Cristo e às almas, por Paulo VI, em particular com a sua encíclica Humanae vitae. O mesmo dever, em plena coerência com o Concílio Vaticano II e com a encíclica agora recordada, cumpriu e continua a cumprir o Santo Padre João Paulo II. (nº 1).

Insere-se neste preciso dever a afirmação da norma moral da Humanae vitae acerca da contracepção, enquanto proíbe um acto intrinsecamente desordenado, não admite excepções: uma tal afirmação não é de modo nenhum uma interpretação rígida e intransigente da norma moral. É, simplesmente, o claro e explícito ensinamento de Paulo VI, várias vezes retomado e reproposto pelo actual Sumo Pontífice.

«Na verdade, – lemos na encíclica Humanae vitae (n. 14) – se é lícito, algumas vezes, tolerar o mal menor para evitar um mal maior, ou para promover um bem superior, nunca é lícito, nem sequer por razões gravíssimas, fazer o mal, para que daí provenha o bem; isto é, ter como objecto de um acto positivo da vontade aquilo que é intrinsecamente desordenado do ponto de vista moral e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais».

Esta não é de modo nenhum uma opinião teológica passível de livre discussão; mas, como disse com extrema clareza João Paulo II no dia 5 de Junho de 1987, «quanto é ensinado pela Igreja sobre a contracepção não pertence à matéria livremente discutida entre os teólogos. Ensinar o contrário equivale a induzir no erro a consciência moral dos esposos» (nº 2).

A tradição moral cristã distinguiu sempre entre normas «positivas» (que ordenam fazer) e normas «negativas» (que proíbem fazer). Além disso, a tradição afirmou constantemente e claramente que, entre aquelas negativas, as normas que proíbem actos intrinsecamente desordenados não admitem excepções: tais actos, efectivamente, são «desordenados» sob o perfil moral, pela sua própria estrutura íntima, por conseguinte em si mesmos e por si mesmos, ou seja, contradizem a pessoa na sua dignidade específica de pessoa. Precisamente por esta exacta razão, tais actos não se podem tornar «ordenados», sob o perfil moral de nenhuma intenção e de nenhuma circunstância subjectiva, as quais não valem para mudar a sua estrutura.

Entre tais actos coloca-se também a contracepção: em si mesma e por si mesma é sempre uma desordem moral, porque objectivamente e de modo intrínseco, (independentemente das intenções, motivações e situações subjectivas) aquela contradiz «a linguagem nativa que exprime a recíproca doação total dos cônjuges» (Exortação apostólica Familiaris consortio, n. 32).

A mesma tradição moral cristã, agora recordada, também sempre afirmou a distinção – não a separação e ainda menos a contraposição – entre a desordem objectiva e a culpa subjectiva. Por isto, quando se trata de julgar o comportamento moral subjectivo, na imprescindível referência à norma que proíbe a desordem intrínseca da contracepção, é totalmente legítimo tomar na devida consideração os diversos factores e aspectos do agir concreto da pessoa, não apenas as suas intenções e motivações, mas também as várias circunstâncias da sua vida, em primeiro lugar todas as causas que possam afectar a sua consciência e a sua livre vontade. E esta situação subjectiva, enquanto não pode jamais mudar em «ordem» aquilo que é intrínseca «desordem», pode incidir em grau variável sobre a responsabilidade da pessoa que age. Como é sabido, este é um princípio geral, que se aplica a toda a desordem moral, mesmo intrínseca: aplica-se, consequentemente, também à contracepção.

Nesta linha desenvolveu-se justamente, não apenas na teologia moral e pastoral, mas também no âmbito das mesmas intervenções do Magistério, o discurso sobre a «lei da gradualidade». Tal lei, porém, não pode ser minimamente confundida com a inaceitável «gradualidade da lei», como precisou de modo explícito a citada exortação Familiaris consortio (cf. n. 34).

Na avaliação da responsabilidade pessoal não se pode não fazer referência à consciência do sujeito. Em conformidade com a sua mesma natureza e finalidade, a consciência deve ser «pura» (2 Tm 1,3), chamada como é a «manifestar claramente a verdade» (2 Co 4,2). A consciência moral do cristão, além disso, ou seja, de um membro da Igreja, possui uma íntima configuração eclesial que a abre à escuta do ensinamento do Magistério da Igreja. Dirigindo-se aos cônjuges, o Concilio Vaticano II escreve: «Mas, no seu modo de proceder, tenham os esposos consciência de que não podem agir arbitrariamente, mas que sempre se devem guiar pela consciência, que se deve conformar com a lei divina, e ser dóceis ao magistério da Igreja, que autenticamente a interpreta à luz do Evangelho» (GS 50). (nº 3).

Graves confusões e equívocos são provocados nos fieis quando, também mesmo da parte de alguns teólogos, se fala dos pronunciamentos do Magistério silenciando ou deformando a sua natureza específica e a sua função original. Como todo o fiel deveria saber, o Magistério da Igreja não pode ser interpretado correctamente com recurso aos mesmos critérios que se usam para as ciências humanas e com recurso ao simples critério sociocultural da maior ou menor adesão a ele. Ao contrário, enquanto dom do Espírito de Jesus Cristo à sua Igreja para o serviço autêntico, ou seja, por força da autoridade de Cristo; [e enquanto dom do Espírito de Jesus Cristo] à fé «que se deve crer e aplicar na vida prática» (LG 25), o Magistério pode encontrar adequada compreensão e pleno acolhimento apenas na fé.

Merecem ser aqui recordadas as palavras que Paulo VI dirigiu aos sacerdotes: «A vossa primeira tarefa - especialmente para os que ensinam a teologia moral - é expor, sem ambiguidades, os ensinamentos da Igreja acerca do matrimónio. Sede, pois, os primeiros a dar, no exercício do vosso ministério, o exemplo de um leal obséquio, interno e externo, ao Magistério da Igreja. Tal atitude obsequiosa, bem o sabeis, é obrigatória não só em virtude das razões aduzidas, mas sobretudo por motivo da luz do Espírito Santo, da qual estão particularmente dotados os Pastores da Igreja, para ilustrarem a verdade (cf. LG 25).» (HV 28) (nº 4).

Termino, recordando mais uma vez uma passagem do Commonitorium de São Vicente de Lérins (século V), ainda não há muito citada – ainda que parcialmente - pelo Santo Padre Francisco:

XXIII  1. Mas talvez alguém pergunte: Não haverá progresso algum dos conhecimentos religiosos na Igreja de Cristo, nenhum progresso na religião? Certamente, é necessário que ele haja e considerável! Quem seria tão inimigo da humanidade, tão hostil a Deus, para tentar opor-se a isso?
2. Mas isso, na condição que seja verdadeiramente um progresso para a fé e não uma mudança, sendo que o que constitui o progresso é que cada coisa/realidade seja aumentada permanecendo ela mesma, enquanto que a mudança é quando se acrescente a ela qualquer coisa vinda de fora. […].
9. Estas leis do progresso devem normalmente aplicar-se ao dogma cristão; [de modo] que ele seja consolidado pelos anos, desenvolvido pelo tempo, tornando-se mais augusto/sublime/venerável pela idade, mas que ele permaneça sem corrupção e incontaminado, que ele esteja completo e perfeito em todas as dimensões das suas partes e, por assim dizer, em todos os seus membros e em todos os sentidos que lhe são próprios, que ele não admita demasiadamente tarde, nenhuma alteração, nenhuma perda das suas características específicas, nenhuma variação no que ele tem de definido.

- São Vicente de Lérins ora pro nobis!

4 de Fevereiro de 2018

João Duarte Bleck, médico e leigo Católico



Notas:

9. Ler em:


1 comentário:

  1. Vatican denied, now admits papal commission is re-examining Humanae Vitae:

    https://www.lifesitenews.com/news/vatican-official-admits-that-papal-commission-exists-to-do-historical-revie

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