domingo, 11 de março de 2018

Deve a Missa Nova ser celebrada 'ad orientem'?

Algumas notas sobre a normativa mais recente em matéria de celebração ad orientem e a edificação dos altares:

Na Sacrosanctum Concilium (SC) lê-se:
«128. Revejam-se o mais depressa possível, juntamente com os livros litúrgicos, conforme dispõe o art. 25, os cânones e determinações eclesiásticas atinentes ao conjunto das coisas externas que se referem ao culto, sobretudo quanto a uma construção funcional e digna dos edifícios sagrados, erecção e forma dos altares, nobreza, disposição e segurança dos sacrários, dignidade e funcionalidade do baptistério, conveniente disposição das imagens, decoração e ornamentos. Corrijam-se ou desapareçam as normas que parecem menos de acordo com a reforma da Liturgia; mantenham-se e introduzam-se as que forem julgadas aptas a promovê-la.»

À partida, tal poderia indiciar que o Concílio quis uma revisão urgente da forma e erecção dos altares, no sentido de corresponderem a uma nova teologia do altar enquanto mensa populis, i.e., mesa do povo de Deus, à volta da qual este se reúne. Contudo, o n. 128 aqui destacado surge já no fim da SC, num conjunto de pontos com a epígrafe «Promoção da arte e formação dos artistas», por sua vez inserido no capítulo referente à «Arte Sacra e as Alfaias Litúrgicas»

Rapidamente o indício se transforma, e percebemos que a reforma dos "cânones e determinações eclesiásticas atinentes à erecção e forma dos altares" se refere tão só e apenas ao aspecto estético-funcional dos altares. Não se argumente que a própria SC ordena que os edifícios sagrados «permitam a participação activa dos fiéis», pois fica por provar que a participação activa dos fiéis dependa das transformações que se operaram nos altares (sobre este ponto, veja-se os n.os 11 e, especialmente, 30 da SC).


As Constituições conciliares foram sendo densificadas por vários documentos. A instrução Inter Oecumenici, dirigida à boa interpretação da SC, determina o seguinte (tradução nossa):

«91. O altar principal deve ser preferencialmente desencostado, de forma a permitir que se ande à sua volta e a celebração de face às pessoas.»
O principal é notar o tom de mera recomendação, ou seja, a instrução limita-se a dizer que o altar deve ser preferencialmente desencostado, e o advérbio de modo não é aqui empregado de forma leve. Primeiro, é patente que houve a preocupação de permitir a construção de altares na forma tradicional. Segundo, é evidente que tal prescrição só se aplica às novas igrejas, e não implicaria a destruição da arte dos altares a que se assistiu em várias igrejas, com a febre de "virar" os altares. 

Esta instrução é relevante para a segunda parte do "mito": em vários pontos fala da missa verus populum, mas apenas o permite, e não o manda. Aliás, nota-se a tentativa de esgotar as indicações sobre adaptações (p.ex., a supressão de beijar a mão do sacerdote; a supressão da cruz feita com a hóstia aquando da comunhão; etc), pelo que se tivesse havido verdadeiro desejo de impor a Missa versus populum tal estaria explícito.

No mesmo sentido, a IGMR diz, no n. 299, que «Onde for possível, o altar deve ser construído afastado da parede, de modo a permitir andar em volta dele e celebrar a Missa de frente para o povo.». Identicamente, apenas se recomenda uma possibilidade, que pode tanto ser física (ao nível do espaço do santuário), como do próprio povo de Deus (que pode não desejar a reorientação da celebração eucarística).

Quanto às igrejas já construídas, onde havia um ou vários altares, a IGMR (3.ª edição típica) diz expressamente no ponto 303«Na construção de novas igrejas deve erigir-se um só altar, que significa na assembleia dos fiéis que há um só Cristo e que a Eucaristia da Igreja é só uma. Nas igrejas já construídas, quando nelas existir um altar antigo situado de tal modo que torne difícil a participação do povo, e que não se possa transferir sem detrimento dos valores artísticos, construa-se com arte outro altar fixo, devidamente dedicado (…)». Daqui se depreende que a IGMR pretende que os altares antigos, adossados à parede, se mantenham erigidos, ainda que neles não se celebre a Eucaristia, especialmente quando revistam particular valor artístico.

necessidade ou possibilidade de existirem vários altares na mesma igreja justifica-se, ainda hoje, pelo ponto 199 da IGMR (3.ª edição típica), que a propósito da concelebração diz que «No entanto, é lícito a cada sacerdote celebrar a Eucaristia de modo individual, mas não ao mesmo tempo em que, na mesma igreja ou oratório, se realiza uma concelebração». Donde se depreende que, não estando a ocorrer concelebração, poderão existir vários sacerdotes a celebrar a Eucaristia individualmente na mesma igreja ou oratório, o que requer necessariamente a existência de vários altares, incluindo os tradicionais altares laterais.

Note-se também que as rúbricas do Missal de Paulo VI pressupõem que o sacerdote esteja ad orientem, e não virado (obrigatoriamente) para o povo. A IGMR concretiza essas rúbricas, que valem ainda hoje, de acordo com a 3.ª edição típica. Nas seguintes partes (a título de exemplo) manda-se que o sacerdote se vire para o povo; a contrario, significa que o sacerdote não estará virado para o povo e, portanto, esteja virado para a abside:

  1. Na saudação inicial. Veja-se o ponto 124 da IGMR, que diz: «Em seguida, o sacerdote, voltado para o povo e abrindo os braços, saúda-o, utilizando uma das fórmulas propostas.».
  2. "Orai, irmãos". Veja-se o ponto 146 da IGMR, que diz: «O sacerdote vem ao meio do altar e, voltado para o povo, abrindo e juntando as mãos, convida-o à oração, dizendo: Orai, irmãos, etc...».
  3. A seguir à consagração, às palavras "Eis o Cordeiro de Deus". Veja-se o ponto 157 da IGMR (com paralelo no ponto 243), que diz: «Terminada esta oração, o sacerdote genuflecte, toma a hóstia, levanta-a um pouco sobre a patena ou sobre o cálice e, voltado para o povo, diz: Felizes os convidados (...)».
  4. Na comunhão do sacerdote. Veja-se o ponto 158 da IGMR, que diz: «Depois, voltado para o altar, o sacerdote diz em silêncio: O Corpo de Cristo me guarde para a vida eterna(...)». Este ponto precisa de uma pequena explicação: não teria sentido que fosse mandado que o sacerdote se voltasse para o altar se ele estivesse virado para o povo, porque, necessariamente, quando o sacerdote está virado para o povo na Santa Missa versus populum o altar está sempre entre o sacerdote e a assembleia.

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