Depois de termos analisado o novo missal sob um prisma cerimonial (ler aqui), consagraremos agora a presente carta e ainda a seguinte ao próprio conteúdo do missal promulgado a 3 de Abril de 1969 bem como às suas deficiências do ponto de vista doutrinal e espiritual. Deficiências que, desde há 50 anos, vêm conduzindo a uma autêntica hemorragia do sagrado.
I – Um pano de fundo ecuménico, mas tão-só na direcção do protestantismo
O ecumenismo, que foi a palavra-chave do Vaticano II, em matéria litúrgica tão teve em vista senão o protestantismo. O Consilium para a aplicação da reforma litúrgica, de que Mons. Annibale Bugnini era secretário, afastou desde logo a veleidade, que havia sido anunciada, de convidar observadores ortodoxos. Em vez disso, logo desde a sessão de Outubro de 1966, cinco observadores protestantes assistiam às assembleias daquele órgão: dois designados pela Comunhão Anglicana, um pelo Conselho Ecuménico das Igrejas, um pela Federação Luterana Mundial, e um pela Comunidade de Taizé (Max Thurian), que assistiram depois a todas as reuniões. Colocar a revisão global da liturgia romana sob a observação de representantes das comunidades mais críticas do culto “papista” era então uma revolução.
De facto, eles foram consultados em diversas ocasiões. Assim, por exemplo, na instrução Eucharisticum mysterium, de 25 de Maio de 1967, tudo o que diz respeito à eucaristia numa perspectiva ecuménica foi redigido «tendo em conta as observações dos irmãos não católicos» (Jean-Marie Roger TILLARD, La Maison-Dieu, 3º trimestre/1967, p. 55). Mais em geral, a sua influência, pela preocupação de se «ir ao seu encontro», manifestou-se ainda na redacção das novas colectas do santoral, em que se curou de «suprimir tanto quanto possível toda a alusão à intercessão dos santos» (Pierre JOUNEL, La Maison-Dieu, 1º trimestre/1971, p. 182).
Mas o principal ponto de colaboração ecuménica foi a composição de um novo leccionário dominical. Os observadores protestantes explicaram, por exemplo, que estavam chocados por a liturgia tradicional fazer uso de passagens do Livro da Sabedoria para as festas marianas (Pierre JOUNEL, "Le Culte de la Vierge Marie dans l'année liturgique", Paroisse et Liturgie, 87, pp. 13-14), e fez-se-lhes a vontade. A questão era: o que se mostrava necessário era enriquecer o leccionário tradicional ou criar um completamente novo? Um enriquecimento na linha da tradição, mediante um sistema de leituras complementares, tal como era usado em tempos antigos em certos lugares, chegou a ser considerado, mas o Pe. Cipriano Vagaggini conseguiu convencer os seus confrades de que era necessário proceder a uma reformulação total.
Eis como foi organizado, na sua globalidade, o novo leccionário:
1) O leccionário dos domingos e dias de festa introduz o princípio das três leituras, com uma leitura semicontínua das epístolas e dos evangelhos em ciclos independentes.
2) O leccionário ferial, com duas leituras diárias, a primeira extraída de um de dois ciclos anuais que se alternam, e o evangelho de um ciclo anual único.
3) O leccionário dos santos, com duas leituras. Apenas os textos que se referem estritamente a um certo santo são, de facto, obrigatórios. Quanto às leituras que acompanham os sacramentos, baptismos, casamentos e funerais, impera a liberdade.
Definitivamente, tratou-se de subverter uma tradição mais do que milenar, com a desqualificação de toda uma série de comentários antigos (São Boaventura) e mais recentes (Dom Guéranger), que versavam sobre o antigo leccionário romano.
II – Uma menor expressão da presença real
Este contexto ecuménico orientado na direcção do protestantismo tem por efeito o sublinhar de uma fraca reverência em face da presença real na eucaristia, como resultado de um conjunto de transformações.
É assim que notamos a redução das genuflexões do sacerdote após a consagração (doze no missal tridentino contra apenas três no novo missal).
Foi suprimida a junção obrigatória dos dedos polegar e indicador de cada mão após a consagração e até à purificação que se segue à comunhão. Esta prática permitia evitar que as partículas da hóstia que se houvessem colado aos dedos pudessem cair e dispersar-se. O esfregar destes dois dedos sobre o cálice, por precaução, após cada contacto com a hóstia consagrada também deixou de existir. Como também se deixou de proceder à recolha com a patena das partículas que pudessem ter ficado sobre o corporal, para depois as deixar cair dentro do cálice, antes que o sacerdote comungasse o Preciosíssimo Sangue. Por fim, suprimiu-se ainda a purificação dos dedos usando vinho e água, após a distribuição da sagrada comunhão.
Já não é obrigatório que a copa do cálice e do cibório sejam dourados na parte interna, bem como a superfície da patena, como modo de honrar as santas espécies. Uma só toalha passou a ser necessária sobre o altar, e já não três toalhas, o que era mais adequado para, sendo três, poderem absorver o vinho consagrado acaso este viesse a ser entornado. A pala que cobria o cálice para evitar que poeiras ou insectos aí entrassem, tornou-se facultativa.
A descrição da Instituição, no novo missal, aparece mais como narração de um acontecimento passado do que como uma intimação feita sobre o pão e o vinho presentes sobre o altar, na medida em que os caracteres tipográficos usados para as palavras da consagração são agora idênticos tanto aos que os precedem como àqueles que vêm depois, ao passo que, no missal tradicional, essas mesmas palavras aparecem impressas em caracteres nitidamente maiores. Além do que, enquanto no missal tradicional, o Hoc est enim Corpus … e o Hic est enim calix… se encontram separados do texto que os antecede por um ponto final parágrafo, no novo missal, eles são introduzidos por dois pontos, como a anunciar uma citação narrativa.
A oração Perceptio Corporis tui, a mais reverencial de todas as orações de preparação para a comunhão – «Que a comunhão do vosso Corpo e do vosso Sangue, Senhor Jesus Cristo, que eu, apesar de indigno, ouso receber, não traga para mim juízo ou condenação [...]» – foi omitida no novo missal.
A modificação mais importante do ponto de vista das consequências relativas à reverência e fé dos fiéis, é a introdução da comunhão na mão dos fiéis. Foi a partir de 1965/1966 que, sem qualquer autorização, a comunhão começou a ser dada na mão, abuso que foi coberto pelas conferências episcopais. A Santa Sé organizou então uma estranha inquirição dirigida aos bispos de todo o mundo, a fim de apurar se esta prática “selvagem” era ou não legítima. As respostas transmitidas pelos bispos foram na sua maioria negativas, e uma maioria evidente: a comunhão na mão não era legítima.
Apesar disso, a instrução Memoriale Domini, de 29 de Maio de 1969, elevou-a ao estatuto de “excepção”: a comunhão tradicional de joelhos e na boca permanecia a regra, mas a Santa Sé remetia para o juízo das conferências episcopais a fim de se decidir se permitir ou não a comunhão na mão. E o antes “abuso”, entretanto tornado “excepção”, rapidamente se transformou em “regra”: a quase totalidade das conferências adoptaram este novo modo de recepção da comunhão. Em termos concretos, sendo praticada no seio da modernidade, esta recepção da hóstia consagrada na mão rompia uma longa tradição de respeito religioso e conduzia à banalização de um dos momentos litúrgicos mais importantes e mais marcantes para os fiéis que participavam nos santos mistérios.
III – O sacerdote hierarca torna-se sacerdote presidente
Paradoxalemente, na liturgia reformada, a distinção entre o presidente e os fiéis foi acentuada. Com efeito, as formas de culto tradicionais faziam com que todos os intervenientes se radicassem num mesmo conjunto ritualizado. O fraco ritualismo das cerimónias novas, juntamente com a parte importante ocupada por intervenções livres do celebrante, deixam um espaço considerável para o seu “jogo” pessoal. A sua presença, num acto de culto inteiramente em língua vernácula e incluindo uma parte de improvisação, torna-se muito mais marcada do que o acontecia na forma tradicional.
Na missa nova, o celebrante é mais presidente do que um hierarca que intercede pelo povo. A distinção sacramental entre sacerdote, de um lado, e ministros e fiéis, do outro, é menos marcada, como resulta de um conjunto de pormenores: o Confiteor do início da missa é comum a todos, e uma vez terminado o sacerdote já não dá a absolvição, ao passo que, no missal antigo, há um Confiteor reservado ao sacerdote, seguido daquele dos ministros e da absolvição dada pelo sacerdote. Este pedido de purificação da alma do ministro era redobrado ainda por duas orações pronunciadas pelo sacerdote , uma enquanto subia ao altar, extraída do Sacramentário Leoniano («Pedimo-Vos Senhor, afastai de nós as nossa iniquidades»), e a outra quando se inclinava diante dele («Nós vos suplicamos, Senhor, pelos méritos de vossos santos, cujas relíquias aqui se encontram, e de todos os demais santos, vos digneis perdoar todos os nossos pecados»).
A antiga distinção entre a comunhão do sacerdote e a dos fiéis (o sacerdote proferia três vezes para si mesmo o Domine non sum dignus …, comungava o Corpo e o Sangue e, depois, voltava-se então para os fiéis, que recitavam também eles três vezes o Domine non sum dignus...) é abolida: o sacerdote diz com o povo, uma só vez, «Senhor não sou digno que entreis em minha morada ...», comunga, e inicia logo de seguida a comunhão dos fiéis.
No que respeita aos que ajudam à missa, houve também uma inversão. Na missa tradicional, eles podem ser leigos, mas são assimilados aos clérigos durante o tempo da celebração. Na missa nova, os ministros do altar permanecem claramente leigos, o que tem por efeito laicizar a celebração. E isto vai até muito longe: o motu proprio Ministeriam quaedam de Paulo VI, de 15 de Agosto de 1972, que suprimiu as ordens menores e o subdiaconado, apenas deixou que subsistissem dois ministérios, o de leitor e o de acólito, reservados a homens, mas que permanecem leigos. Em todo o caso, os diversos serviços durante a missa, leituras, intenções da oração universal, direcção dos cânticos da assembleia, admonições e comentários, distribuição da comunhão por ministros extraordinários, são prestados por fiéis enquanto leigos. Isto mesmo é confirmado pelo facto de que o são tanto por homens como por mulheres, que, até à data pelo menos, não podem aceder ao estado clerical.
Já no que respeita ao serviço imediato do altar, as instruções Liturgicae instaurationes, de 5 de Setembro de 1970, e Inaestimabile donum, de 3 de Abril de 1980, recordaram a interdição do serviço do altar para as mulheres. Apesar de tudo isso, a prática de permitir a presença de moças como acólitas difundiu-se cada vez mais. Aconteceu então que, segundo o processo habitual, se passou da interdição à permissão excepcional daquilo que, na realidade, era já prática comum: uma resposta da Congregação para o Culto Divino de 15 de Março de 1994 precisava que o princípio permanecia inalterado («Será sempre oportuno seguir a nobre tradição do serviço do altar confiado a rapazes jovens»), mas que competia a cada bispo, se entendesse ser conveniente, autorizar esse serviço a título de «deputação temporária». Uma vez mais o “abuso” foi requalificado como “excepção”, para enfim se tornar praticamente a “regra”.
IV – Menos transcendência, mais «inserção na vida»
O tema da participação activa de todos os baptizados ia de par em par com o da adaptação dos textos, gestos, símbolos para uma melhor compreensão da mensagem: a liturgia devia ser mais pedagógica para os homens dos nossos dias (Sacrosanctum Concilium, n. 34). Isto, porém, revela um estranho desconhecimento dos sinais dos tempos: os nossos contemporâneos, privados daquele património simbólico pela reforma, foram em busca dele nas liturgias orientais, e depois nada menos do que na própria liturgia tradicional, à medida que esta se foi tornando acessível.
A passagem de uma língua sagrada para uma língua de uso profano (e puramente profano, sem ter sequer a distância que permite o uso de uma versão antiga da mesma, como acontece por exemplo com os anglicanos, o Book of Common Prayer ou a Bíblia do Rei James, ou com o eslavo eclesiástico, entre os ortodoxos e alguns uniatas russos) contribuiu também para isso em grande medida. De um discurso proferido numa língua propriamente litúrgica passou-se a um discurso transmitido num registo inferior, que, no melhor dos casos, se reveste de um pouco de sacralidade pelo “tom cuidado” do celebrante, mas a maior parte das vezes é totalmente banalizado.
A qualidade das expressões das novas orações, tornadas voluntariamente acessíveis aos públicos visados, acentua também essa impressão, chegando por vezes ao ponto de desvalorizar a mensagem. Assim, na versão francesa da oração eucarística destinada a circunstâncias particulares: «[Jesus] que está no meio de nós, quando estamos reunidos em seu nome, como outrora com os seus discípulos, abre-nos as Escrituras e partilha conosco o pão»; na versão portuguesa (segunda oração eucarística V): «o vosso Filho, que está presente no meio de nós quando nos reunimos no seu amor e, como outrora aos discípulos de Emaús, Ele nos explica o sentido da Escritura e nos reparte o pão da vida».
Na primeira oração eucarística para as assembleias de crianças: «Na noite antes da sua morte, quando Jesus comia com os discípulos, tomou o pão que estava na mesa e fez uma oração para Vos dar graças. Depois partiu o pão e deu-o aos seus discípulos, dizendo [...]»; na versão francesa: «Uma noite, na verdade, mesmo antes da sua morte, quando Jesus comia com os seus Apóstolos, tomou o pão que estava na mesa. Na sua oração, bendisse-Vos. Depois, partilhou o pão dizendo aos seus amigos». Na segunda oração eucarística para as crianças: «Deus, nosso Pai, que sois tão bom, sentimo-nos contentes por estarmos reunidos junto de Vós. Queremos agradecer-Vos»; que, na versão francesa aparece assim: «Sim, Pai bom, é uma festa para nós; o nosso coração está pleno de reconhecimento». Ou ainda: «Ele veio para tirar do coração dos homens todo o pecado e maldade que não nos deixam ser amigos, nem nos deixam ser felizes». E na terceira: «Graças a Vós, podemos compreender-nos e viver juntos as nossas dificuldades e as nossas alegrias.»; de novo, não exactamente idêntica em todas as línguas; assim na versão francesa, por exemplo: «podemos encontrar-nos e falar juntos. Graças a Vós, podemos partilhar as nossas dificuldades e alegrias.»
Além disso, e contrariamente de facto àquela que é a prática da liturgia romana tradicional, agora quase tudo é proferido em alta voz, nomeadamente a oração eucarística. Ora, o silêncio do cânone romano, já atestado no século XI, servia na liturgia latina de iconóstase moral. O “segredo” da acção sagrada era uma das grandes características romanas, imagem da oração silenciosa de Cristo que caminha para o sacrifício. Agora, já não existe esta barreira misteriosa, a dicção em alta voz acabando por sublinhar ainda mais, além de outras coisas, a forma assaz comum do discurso empregue. A impressão que nos fica é a de uma “conversa sem fim”, enjeitando toda a hipótese de um silêncio de recolhimento. Tanto mais, que o celebrante, querendo ou não, se atribui a si mesmo a cerimónia como um longo discurso pessoal.
Nota-se outrossim uma acentuação disso mesmo pelo facto de que a teologia dos anos cinquenta e sessenta ter sido marcada por uma descoberta deslumbrada das ciências humanas, às quais votava uma ingénua admiração. Na liturgia, esse fenómeno foi traduzido pelo desejo de mostrar que se estava ligado às realidades terrestres. Assim, o aperto de mão trocado entre quantos participam na eucaristia, antes da comunhão, veio sublinhar a solidariedade que os une, e os “eucológios” que substituíram o ofertório vieram valorizar o significado do pão e do vinho enquanto «frutos da terra e do trabalho dos homem».
Estes abatimentos do sagrado são ainda o resultado dos numerosos elementos profanos introduzidos na celebração: a intervenção de homens e mulheres vestidos com roupa comum para fazer as leituras ou para dar a comunhão como ministros extraordinários; o aperto de mão ou o beijo na face usados como sinal da paz; os votos de bom domingo aos paroquianos na despedida, como o faria o padeiro ou o pasteleiro aos seus clientes na vida quotidiana.
Cumpre ainda insistir sobre o facto de que a generalização da celebração feita intencionalmente de frente para o povo concorre grandemente para um enfraquecimento ritual. Esta forma de celebração tinha-se difundido muito ao início dos anos 60, e tornara-se quase generalizada por volta de 1964-1965, de modo que a reforma conciliar nem sequer precisou de legislar sobre este ponto. De resto, poderia até sustentar-se que os textos, teoricamente, a consideravam como excepção (1), conquanto se tivesse quase tornado a regra. A celebração nova, com o altar-mesa aproximado dos fiéis, sobre o qual se realizam à vista de todos gestos bastante comuns, na prática, é uma só coisa com o modo de celebrar de frente para o povo, como o mostram as reacções violentas que se verificam sempre que surge o convite para a abandonar (2).
As liturgias tradicionais, tanto latinas como gregas, fazem tocar o sobrenatural, e, paradoxalmente, é precisamente ao sublinharem nos seus gestos e palavras o carácter transcendente do mistério que elas, velando-o, o desvelam, através de uma espécie de jogo contínuo de afastamento/aproximação (3), ao passo que, com a reforma, de todas as “inserções na vida” por ela praticadas, resulta claramente uma impressão de rebaixamento da transcendência da mensagem.
in Paix Liturgique (Carta 87)
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(1) Ver Cyrille DOUNOT, “Plaidoyer pour la célébration ad orientem”, in L'Homme nouveau, 3 de Dezembro de 2016, p. 11.
(2) Por exemplo, as provocadas pelo discurso pronunciado a 5 de Julho de 2016 pelo Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino, aquando da abertura em Londres do colóquio “Sacra Liturgia”.
(3) Ver Martin MOSEBACH, La liturgie et son ennemi, Hora Decima, 2005.
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