1. A «justificação» da eutanásia voluntária pressupõe a rejeição de um princípio que é fundamental para um justo enquadramento das leis numa sociedade.
A eutanásia voluntária consiste em matar um paciente a seu pedido, na convicção de que a morte constitui um benefício para esse paciente e de que, por essa razão, se justifica matá-lo. Mas o simples facto de uma pessoa afirmar, de sua livre vontade, que deseja ser morta não constitui, em si mesmo, razão para um médico achar que a morte será um benefício para essa pessoa. Nenhum médico acederia a satisfazer uma solicitação deste género, por muito que lhe parecesse que o paciente a fazia de livre vontade, se achasse que este tinha perspectivas de uma vida com valor.
Ora, afirmar que a vida de uma pessoa é desprovida de valor é o mesmo que negar valor a essa pessoa, dado que a realidade de uma pessoa de maneira nenhuma se distingue da sua vida. Assim, pois, na base das mortes por eutanásia está um juízo quanto ao valor de determinadas vidas humanas.
Uma legalização da morte cuja justificação assenta na convicção de que há certas vidas que não têm valor é contrária a qualquer sistema legal que afirme proteger e promover uma ordem social justa. Porquê? Porque, para que a justiça vigore numa sociedade, é necessário encontrar uma forma não arbitrária e não discriminatória de identificar os sujeitos dessa mesma justiça. Mas a única maneira de evitar a arbitrariedade na identificação dos sujeitos da justiça é presumir que todos os seres humanos, pelo simples facto de serem humanos, têm direito a ser tratados de forma justa e são sujeitos de determinados direitos humanos básicos. Por outras palavras, a dignidade e o valor que se reconhecem aos seres humanos resultam directamente da sua humanidade. Pelo contrário, esta dignidade e este valor não podem constituir um título para a reclamação de um tratamento justo por parte de terceiros se se considera que os seres humanos podem ser privados deles. A dignidade e o valor são, por assim dizer, características não elimináveis da nossa humanidade.
A morte por eutanásia, mesmo quando é feita a pedido, pressupõe a negação do valor da vida das pessoas que são consideradas possíveis candidatos à eutanásia. Trata-se, pois, de um tipo de morte que não pode ser integrada num sistema legal que tem como um dos seus fundamentos o valor e a dignidade de todos os seres humanos.
É de importância crucial para todos os estados manter um corpo de leis consistente com o respeito pela dignidade e pelo valor de todos os seres humanos. É nomeadamente importante não legalizar a morte dos inocentes, porque uma das tarefas fundamentais das autoridades civis é proteger os inocentes. Ora, quando recorre à tese segundo a qual a vida de determinada pessoa é desprovida de valor para tornar legal a morte dessa pessoa, o Estado deixou de reconhecer que os inocentes têm o direito de ser protegidos. Mas, se o Estado considera que estes direitos são nulos, como pode então reclamar para si aquela autoridade que deriva justamente da necessidade que os cidadãos têm de ser protegidos de ataques injustos?
2. A legalização do suicídio assistido também é inconsistente com o mesmo princípio fundamental de um sistema legal justo.
A descriminalização do suicídio (e, portanto, das tentativas de suicídio) faz sentido quando temos em consideração as dificuldades por que teriam de passar as pessoas que fossem sujeitas a um processo judicial depois de terem tentado suicidar-se. Mas esta descriminalização – motivada pelo desejo de não dificultar ainda mais a vida destas pessoas – não implica que a lei tinha uma visão neutral da opção pelo suicídio. As pessoas que tentam suicidar-se são manifestamente motivadas por uma convicção (pelo menos passageira) de que a sua vida deixou de ter sentido. Ora, dado que as disposições legais justas assentam na convicção de que toda a vida humana tem um valor que não é possível eliminar, a lei tem de rejeitar a razoabilidade de uma opção que tem como base a motivação inversa.
Assim, a lei tem igualmente de se recusar a aceitar o comportamento das pessoas que sancionam com os seus actos a opção pelo suicídio, porque os referidos actos assentam na tese segundo a qual a vida daquele que estão a ajudar deixou de ter valor. Dizer que estas pessoas agem «movidas pela amizade», ou «movidas pela compaixão», não explica suficientemente o seu comportamento. Com efeito, como é possível descrever como «amizade» ou «compaixão» as motivações de uma pessoa que colabora num suicídio, quando tais motivações têm por base a convicção de que aquele que estão ajudar está melhor morto? Se achassem que esta pessoa podia continuar a ter uma vida com valor, ajudá-la a morrer dificilmente poderia ser considerado um acto de amizade.
Há, pois, boas razões para resistir à legalização do suicídio assistido, razões que são tão fundamentais como a primeira razão atrás apresentada para resistir à legalização da eutanásia.
3. Se a eutanásia voluntária for legalizada, terá sido abandonada a razão mais premente para resistir à legalização da eutanásia não voluntária.
Muitas das pessoas que apoiam a legalização da eutanásia voluntária opõem-se à legalização da eutanásia não voluntária. Contudo, se a única maneira de justificar a tese segundo a qual a eutanásia é um benefício para a pessoa que vai morrer é recorrer à tese de que a vida da referida pessoa deixou de ter valor, então os que apoiam a eutanásia voluntária estão, sem disso se aperceberem, a comprar um pacote bastante maior do que pensavam. Porque, se é possível beneficiar uma pessoa matando-a, será razoável privar as pessoas desse benefício pelo simples facto de elas não terem a capacidade de solicitar que as matem? E, se nos espanta (e é muito razoável que nos espante) a tese de que alguém pode beneficiar com a própria morte, podemos pelo menos aceitar a tese de que, quando a vida de uma pessoa deixou de ter valor, não estamos a prejudicá-la privando-a dessa mesma vida.
Na realidade, os defensores mais activos e mais lúcidos da legalização da eutanásia voluntária também são defensores da legalização da eutanásia não voluntária. Do ponto de vista destas pessoas, os seres humanos não têm uma «categoria moral» (que é o equivalente àquilo a que, neste artigo, se designa por «dignidade básica») em virtude do qual gozem de direitos humanos básicos; por este motivo, não se está a cometer nenhuma injustiça contra eles quando a motivação para os matar é, muito simplesmente, a conveniência dos seres humanos que têm «categoria moral». O exercício que consiste em distinguir os seres humanos que têm «categoria moral» daqueles que a não têm é totalmente arbitrário. Os defensores da legalização da eutanásia, como os filósofos Peter Singer e Helga Kuhse, que aderem a esta arbitrariedade, fazem-no sem uma preocupação evidente pela subversão dos fundamentos da justiça que a referida arbitrariedade pressupõe.
4. A legalização da eutanásia voluntária ajudaria a promover a prática da eutanásia não voluntária, sem os benefícios da legalização.
O processo dar-se-ia por duas vias: em primeiro lugar, tem-se verificado que as pessoas que começam por afirmar que desejam limitar a prática da eutanásia à eutanásia voluntária acabam por chegar à conclusão de que, quando esta é permitida, deixa de haver razões válidas para proibir a eutanásia não voluntária, pelo que começam imediatamente a planear a prática sistemática da eutanásia não voluntária. Trata-se de um fenómeno facilmente detectável, por exemplo, no comportamento da Real Associação de Médicos Holandeses ao longo dos últimos quinze anos. Depois de terem promovido a aceitação daquilo que afirmavam ser a «prática controlada» apenas da eutanásia voluntária, promovem actualmente a aceitação da prática da eutanásia não voluntária.
Em segundo lugar, porque os critérios para a delimitação da prática da eutanásia a pedido do cliente são irremediavelmente imprecisos. A experiência holandesa demonstrou a verdade daquilo que os críticos afirmavam acerca da aprovação legal da eutanásia voluntária (fosse por decreto legal ou por decisão judicial), a saber, que ela conduziria à prática alargada da eutanásia não voluntária. Os dados disponíveis mostram, com base em estimativas feitas por baixo, que, em 1990, cerca de uma em cada doze mortes ocorridas na Holanda o foram por eutanásia (10.558 casos), e mais de metade destas sem solicitação explícita.
5. A eutanásia debilita das disposições que exigimos aos médicos, sendo por isso destrutiva da prática da medicina.
A prática da medicina só pode florescer quando os médicos têm uma disposição tal, que inspiram confiança nos doentes, muitos dos quais se encontram em situações extremamente vulneráveis. Mas os médicos só inspiram confiança quando os doentes têm a certeza de que eles não estão dispostos a matá-los, de que não sentem inclinação para considerar se vale a pena cuidar de um doente, mas se dispõem imediatamente a considerar que tipo de tratamento poderá ser preferível para cada caso.
Ora, a prática da eutanásia debilita sistematicamente ambas as disposições, porque dispõe os médicos a matar alguns dos seus doentes, ao mesmo tempo que inculca neles a ideia de que há doentes cujas vidas não têm valor. Mas, visto que não há critérios não arbitrários para determinar quais são as vidas que têm valor e as que não têm, uma pessoa que não renuncie por princípio a esse género de considerações discriminatórias cairá facilmente na tentação de categorizar as pessoas mais difíceis ou mais desinteressantes como pessoas cuja vida não tem valor.
Um dos mais importantes deveres do Estado é manter um quadro legal tal, que uma profissão tão essencial como a medicina funcione bem, e no interesse dos cidadãos. O Estado não estaria a cumprir esse dever se permitisse que os médicos tivessem comportamentos corrosivos da relação médico-doente.
6. A legalização da eutanásia debilita o ímpeto destinado a desenvolver atitudes verdadeiramente compassivas para com os doentes e os moribundos. A expressão mais adequada da compaixão são os cuidados de saúde, motivados por um sentimento mais ou menos intenso de simpatia para com as pessoas que sofrem. Não se pode cuidar das pessoas matando-as.
É muito importante ter em consideração que um dos elementos fundamentais dos debates contemporâneos relativos à legalização da eutanásia é a necessidade de reduzir os custos com os cuidados de saúde. E um dos perigos mais óbvios resultantes da sua legalização é que, dentro em breve, a eutanásia passe a ser vista como uma «solução» conveniente para as enormes necessidades de certo tipo de pacientes. Se tal acontecesse, a medicina ficaria privada do incentivo para a procura de soluções genuinamente compassivas para as dificuldades suscitadas pelos referidos pacientes. Os impulsos humanitários que sustentaram o desenvolvimento dos hospitais seriam postos em causa, porque a eutanásia passaria a ser considerada por muitos uma solução mais barata e menos exigente em termos pessoais.
7. Três comissões criadas por legislaturas anglófonas com a missão de analisarem propostas de legalização da eutanásia recomendaram que não fosse legalizada.
No decurso de 1994-95, foram publicados os relatórios das comissões criadas pela Câmara dos Lordes do parlamento britânico, pela Comissão de Análise à Vida e à Lei do estado de Nova Iorque e pelo Senado do parlamento canadiano, todas elas constituídas por pessoas com pontos de vista muito diferentes acerca da moralidade intrínseca da eutanásia; contudo, todas elas se mostraram claramente contrárias à sua legalização. Por exemplo, a comissão da Câmara dos Lordes contava entre os seus membros com várias pessoas que tinham defendido publicamente a eutanásia; no entanto, depois de terem passado um ano a ouvir testemunhos, a ler um conjunto muito alargado de dados e a discutir internamente as questões, os membros desta comissão decidiram por unanimidade recomendar que a eutanásia não fosse legalizada.
Há nos três relatórios muito material digno da atenção da Comissão Legislativa Legal e Constitucional do Senado do parlamento federal australiano. Baste a seguinte citação do relatório da Comissão da Câmara dos Lordes como epítome da sensatez das três comissões: «A proibição da morte intencional […] é a pedra angular das relações legais e sociais. Trata-se de uma proibição que nos protege de forma imparcial, encarnando a convicção de que somos todos iguais. Não queremos que tal protecção seja fragilizada, pelo que recomendamos que não se proceda a qualquer alteração na lei, com o fim de permitir a eutanásia. […] A morte de uma pessoa afecta a vida de outras pessoas, muitas vezes de maneiras imprevisíveis. É nossa convicção que a questão da eutanásia é uma daquelas em que os interesses do indivíduo não podem ser separado dos interesses da sociedade como um todo.»
O autor deste artigo tem a esperança de que, após a devida consideração dos factos, os membros da Comissão Legislativa Legal e Constitucional partilhem da sensatez moral e política que esta citação exemplifica.
Luke Gormally in Logos
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