Neste ano de 2018, ocorrem dois aniversários simbólicos da publicação de duas encíclicas que marcaram indelevelmente o Magistério pontifício contemporâneo: refiro-me aos 50 anos da Humanae Vitae (HV) de Paulo VI (de 25 de Julho de 1968) sobre a qual já tive a oportunidade de dedicar um artigo em duas partes, respectivamente nos dias 4 e 6 de Fevereiro passado (1); e agora, já no próximo dia 6 de Agosto, os 25 anos da publicação da Veritatis Splendor (VS) de João Paulo II (de 6 de Agosto de 1993).
Sobre a primeira efeméride talvez valha a pena referir, apenas como adenda ao que já escrevi, a recente edição da Libreria Editice Vaticana sobre a gestação da HV, da autoria de Monsenhor Gilfredo Marengo (2), obra sobre a qual se especulou se não teria como objectivo a desconstrução da encíclica, tentando assim retirar-lhe autoridade magisterial. Mas eis que o próprio Autor veio, já posteriormente à publicação do livro, afirmar categoricamente o seguinte: «nós sabemos muito bem que usar contracepção artificial é intrinsecamente mau» (3). Mas não menos significativo são as manifestações de apoio ao conteúdo e afirmações da HV a que se tem assistido nos Estados Unidos e também no Reino Unido, por parte de prelados e algumas iniciativas de leigos (4).
Mas quanto aos 25 anos da VS, em português, O Esplendor da Verdade – é de sublinhar que é uma das cinco mais importantes das catorze encíclicas de João Paulo II. Com efeito, assim escreveu o Papa Emérito Bento XVI sobre a VS, num capítulo para um livro publicado em 2014 em honra do seu Predecessor (5):
«A encíclica sobre os problemas morais Veritatis Splendor precisou de longos anos de maturação e continua sendo de inalterada atualidade. […].
«A grande tarefa que João Paulo II assumiu naquela encíclica foi a de traçar novamente um fundamento metafísico na antropologia, assim como uma concretização cristã na nova imagem de homem da Sagrada Escritura.
«Estudar e assimilar essa encíclica continua sendo um grande e importante dever».
Mas de que trata esta tão importante encíclica que, propositadamente foi precedida da publicação, em 1992, do Catecismo da Igreja Católica o qual, no dizer do Cardeal Joseph Ratzinger, então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, já «fornece o esqueleto inteiro do ensinamento moral católico» (6)? É o próprio João Paulo II que responde logo nos inícios (VS, 4 e 5):
«[…]. Hoje, porém, parece necessário reflectir sobre o conjunto do ensinamento moral da Igreja, com a finalidade concreta de evocar algumas verdades fundamentais da doutrina católica que, no actual contexto, correm o risco de serem deformadas ou negadas. De facto, formou-se uma nova situação dentro da própria comunidade cristã, que experimentou a difusão de múltiplas dúvidas e objecções de ordem humana e psicológica, social e cultural, religiosa e até mesmo teológica, a propósito dos ensinamentos morais da Igreja. Não se trata já de contestações parciais e ocasionais, mas de uma discussão global e sistemática do património moral, baseada sobre determinadas concepções antropológicas e éticas. Na sua raiz, está a influência, mais ou menos velada de correntes de pensamento que acabam por desarraigar a liberdade humana da sua relação essencial e constitutiva com a verdade. Rejeita-se, assim, a doutrina tradicional sobre a lei natural, sobre a universalidade e a permanente validade dos seus preceitos; consideram-se simplesmente inaceitáveis alguns ensinamentos morais da Igreja; pensa-se que o próprio Magistério possa intervir em matéria moral, somente para «exortar as consciências» e «propor os valores», nos quais depois cada um inspirará, de forma autónoma, as decisões e as escolhas da vida.
«Em particular, deve-se ressaltar a discordância entre a resposta tradicional da Igreja e algumas posições teológicas, difundidas mesmo nos Seminários e Faculdades eclesiásticas, sobre questões da máxima importância para a Igreja e a vida de fé dos cristãos, bem como para a própria convivência humana. […]. Generalizada se encontra também a opinião que põe em dúvida o nexo intrínseco e indivisível que une entre si a fé e a moral, como se a pertença à Igreja e a sua unidade interna se devessem decidir unicamente em relação à fé, ao passo que se poderia tolerar no âmbito moral um pluralismo de opiniões e de comportamentos, deixados ao juízo da consciência subjectiva individual ou à diversidade dos contextos sociais e culturais. (VS, 4).
«Se esta Encíclica, há muito esperada, é publicada somente agora, é porque pareceu conveniente fazê-la preceder do Catecismo da Igreja Católica, que contém uma exposição completa e sistemática da doutrina moral cristã. […]. Portanto, ao remeter para o Catecismo «como texto de referência, seguro e autêntico, para o ensino da doutrina católica»,[11] a Encíclica limitar-se-á a afrontar algumas questões fundamentais do ensinamento moral da Igreja, sob a forma de um necessário discernimento sobre problemas controversos entre os estudiosos da ética e da teologia moral. […].» (VS, 5).
E ainda mais à frente, sobre o que pretende com esta encíclica, dirigindo-se ainda, de modo explícito, aos bispos, escreve (VS, 30):
«Ao dirigir-me com esta Encíclica a vós, Irmãos no Episcopado, desejo enunciar os princípios necessários para o discernimento daquilo que é contrário à «sã doutrina», apelando para aqueles elementos do ensinamento moral da Igreja, que hoje parecem particularmente expostos ao erro, à ambiguidade ou ao esquecimento. […]. Estas e outras questões — como: que é a liberdade e qual a sua relação com a verdade contida na lei de Deus? qual é o papel da consciência na formação do perfil moral do homem? como discernir, em conformidade com a verdade sobre o bem, os direitos e os deveres concretos da pessoa humana? — podem-se resumir na pergunta fundamental que o jovem do Evangelho pôs a Jesus: «Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?». Enviada por Jesus a pregar o Evangelho e a «instruir todas as nações (...) ensinando-as a observar tudo» o que Ele mandou (cf. Mt 28, 19-20), a Igreja propõe sempre de novo, hoje também, a resposta do Mestre: esta possui luz e força capazes de resolver inclusive as questões mais discutidas e complexas. […].
«É sempre nessa mesma luz e força que o Magistério da Igreja realiza a sua obra de discernimento, acolhendo e pondo em prática a admoestação que o apóstolo Paulo dirigia a Timóteo: «Conjuro-te diante de Deus e de Jesus Cristo que há-de julgar os vivos e os mortos, e em nome da Sua aparição e do Seu Reino: prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina. Porque virá o tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina. Desejosos de ouvir novidades, escolherão para si uma multidão de mestres, ao sabor das paixões, e hão-de afastar os ouvidos da verdade, aplicando-os às fábulas. Tu, porém, sê prudente em tudo, suporta os trabalhos, evangeliza e consagra-te ao teu ministério» (2 Tim 4, 1-5; cf. Tit 1, 10.13-14)».
E já perto do final, ao falar das responsabilidades dos Pastores, reitera o que no documento ineditamente expõe (VS, 115):
«Com efeito, é a primeira vez que o Magistério da Igreja expõe os elementos fundamentais dessa doutrina com uma certa amplitude, e apresenta as razões do discernimento pastoral necessário em situações práticas e culturais complexas e, por vezes, críticas.
«À luz da Revelação e do ensinamento constante da Igreja, e especialmente do Concílio Vaticano II, evoquei brevemente os traços essenciais da liberdade, os valores fundamentais relacionados com a dignidade da pessoa e com a verdade dos seus actos, para assim poder reconhecer na obediência à lei moral, uma graça e um sinal da nossa adopção no único Filho (cf. Ef 1, 4-6). Em particular, com esta Encíclica, são propostas avaliações sobre algumas tendências actuais na teologia moral. Comunico-as agora, em obediência à palavra do Senhor que confiou a Pedro o encargo de confirmar os seus irmãos (cf. Lc 22, 32), para iluminar e ajudar o nosso discernimento comum.
«Cada um de nós conhece a importância da doutrina que representa o núcleo do ensinamento desta Encíclica e que hoje é evocada com a autoridade do Sucessor de Pedro. Cada um de nós pode considerar a gravidade daquilo que está em causa, não só para os indivíduos, mas também para a sociedade inteira, na confirmação da universalidade e da imutabilidade dos mandamentos morais, e, em particular, daqueles que proíbem sempre e sem excepção os actos intrinsecamente maus. […].
A encíclica, integra três Capítulos, cada um sob a égide de um versículo do Novo Testamento: o Capitulo I, sob Mateus 1,16, tem como subtítulo Jesus Cristo e a resposta à questão moral; o II, sob Rom 12,2, tem o subtítulo A Igreja e o discernimento de algumas tendências da teologia moral hodierna; e o último Capítulo, o III, invoca 1 Co 1,37, desenvolve o tema O bem moral para a vida da Igreja e do mundo.
Nesta minha modesta homenagem em memória desta indelével e fundamental encíclica - a qual mantenho, por estes conturbados e confusos tempos, sobre a minha secretária - não resisto a transcrever apenas mais algumas passagens dos números 56, 79, 80 e 81. Como já é patente, desejo, aqui, sobretudo, devolver a este santo Papa e excelente Docente a sua própria palavra. Acresce que a importância destes trechos, ganhou um relevo histórico suplementar, porque três deles (os nn 56, 79 e 81), foram explicitamente referidos nas Dubia (7) apresentadas ao Papa Francisco por quatro eminentes cardeais a propósito de algumas afirmações que o Santo Padre fez na exortação Amoris Laetitia (AL) - dúvidas que o Papa, até ao momento, se permitiu não esclarecer aos eminentes subscritores… nem aos muitos fieis que permanecem desorientados e confusos, perante tão diversas e até contraditórias aplicações «pastorais» da AL.
Com efeito, a propósito da consciência, santuário do Homem, e da sua relação com a verdade e a liberdade, depois de criticar «a opinião de vários teólogos» e de «alguns autores» (sic), afirma João Paulo II (VS, 56):
«Para justificar semelhantes posições, alguns propuseram uma espécie de duplo estatuto da verdade moral. Para além do nível doutrinal e abstracto, seria necessário reconhecer a originalidade de uma certa consideração existencial mais concreta. Esta, tendo em conta as circunstâncias e a situação, poderia legitimamente estabelecer excepções à regra geral permitindo desta forma cumprir praticamente, em boa consciência, aquilo que a lei moral qualifica como intrinsecamente mau. Deste modo, instala-se, em alguns casos, uma separação, ou até oposição entre a doutrina do preceito válido em geral e a norma da consciência individual, que decidiria, de facto, em última instância, o bem e o mal. Sobre esta base, pretende-se estabelecer a legitimidade de soluções chamadas «pastorais», contrárias aos ensinamentos do Magistério, e justificar uma hermenêutica «criadora», segundo a qual a consciência moral não estaria de modo algum obrigada, em todos os casos, por um preceito negativo particular.
«É impossível não ver como, nestas posições, é posta em questão a identidade mesma da consciência moral, face à liberdade do homem e à lei de Deus. Apenas o esclarecimento precedente sobre a relação entre liberdade e lei, apoiada na verdade, torna possível o discernimento acerca desta interpretação «criativa» da consciência.»
Sobre os actos ou atitudes/comportamentos morais em si mesmos, através dos quais, ou pelos quais, concretamente, se exprime e decide a bondade ou malícia da pessoa que os pratica; ou seja, sobre a questão do mal intrínseco de certos actos e objectos, reafirma o Papa (VS, 79, 80 e 81):
«Deve-se, portanto, rejeitar a tese, própria das teorias teleológicas e proporcionalistas, de que seria impossível qualificar como moralmente má segundo a sua espécie — o seu «objecto» —, a escolha deliberada de alguns comportamentos ou actos determinados, prescindindo da intenção com que a escolha é feita ou da totalidade das consequências previsíveis daquele acto para todas as pessoas interessadas. «O elemento primário e decisivo para o juízo moral é o objecto do acto humano, o qual decide sobre o seu ordenamento ao bem e ao fim último que é Deus. […].» (79).
E logo a seguir no nº 80:
«Ora, a razão atesta que há objectos do acto humano que se configuram como «não ordenáveis» a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa, feita à Sua imagem. São os actos que, na tradição moral da Igreja, foram denominados «intrinsecamente maus» (intrinsece malum): são-no sempre e por si mesmos, ou seja, pelo próprio objecto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias. Por isso, sem querer minimamente negar o influxo que têm as circunstâncias e sobretudo as intenções sobre a moralidade, a Igreja ensina que «existem actos que, por si e em si mesmos, independentemente das circunstâncias, são sempre gravemente ilícitos, por motivo do seu objecto».[131]. […].
«Sobre os actos intrinsecamente maus, e referindo-se às práticas contraceptivas pelas quais o acto conjugal se torna intencionalmente infecundo, Paulo VI ensina: «Na verdade, se, por vezes, é lícito tolerar um mal menor com o fim de evitar um mal mais grave ou de promover um bem maior, não é lícito, nem mesmo por gravíssimas razões, praticar o mal para se conseguir o bem (cf. Rm 3, 8), ou seja, fazer objecto de um acto positivo de vontade o que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo com o intuito de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares ou sociais».[133].» (80)
E João Paulo II prossegue no nº 81, reafirmando o ensinamento de sempre da Igreja, limitando-se a citar o que já o apóstolo São Paulo e santo Agostinho atestavam:
«Ao ensinar a existência de actos intrinsecamente maus, a Igreja cinge-se à doutrina da Sagrada Escritura. O apóstolo Paulo afirma categoricamente: «Não vos enganeis: Nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem maldizentes, nem os que se dão à embriaguez, nem salteadores possuirão o Reino de Deus» (1 Cor 6, 9-10). «Se os actos são intrinsecamente maus, uma intenção boa ou circunstâncias particulares podem atenuar a sua malícia, mas não suprimi-la: são actos «irremediavelmente» maus, que por si e em si mesmos não são ordenáveis a Deus e ao bem da pessoa: «Quanto aos actos que, por si mesmos, são pecados (cum iam opera ipsa peccata sunt) — escreve S. Agostinho — como o furto, a fornicação, a blasfémia ou outros actos semelhantes, quem ousaria afirmar que, realizando-os por boas razões (causis bonis), já não seriam pecados ou, conclusão ainda mais absurda, que seriam pecados justificados?» [134]
Se muitos consideram hoje a Humanae Vitae incontestavelmente profética, perante o que se tem verificado nestes últimos 50 anos, no vasto âmbito de que trata aquela encíclica do Beato Paulo VI, penso que o mesmo se poderá já afirmar da Veritatis Splendor de São João Paulo II, perante a objectiva negligência e desconsideração da doutrina moral por ele ali reafirmada a que dramaticamente se assiste hoje nos mais diversos meios e níveis da Igreja, quer das pessoas ou das instituições que detêm a grave responsabilidade de ensinar e esclarecer a Fé católica e apostólica.
Se a leitura integral e atenta desta monumental encíclica de São João Paulo II não vos for de todo possível durante estas férias, espero que ao menos as transcrições atrás, consigam ilustrar esta minha afirmação.
Obrigado São João Paulo II. Lá no Céu intercede por todos nós, ainda peregrinos nesta Terra !
22 de Julho de 2018
João Duarte Bleck, médico e leigo Católico
Notas:
(*) Todos os sublinhados e negritos são meus. Os itálicos das transcrições, são da versão portuguesa da Veritatis Splendor apresentada no site do Vaticano. Ver em: http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_06081993_veritatis-splendor.html
(1) 50 anos da Humanae Vitae: contestação de sempre vs Magistério de sempre.
1ª Parte em:
2ª Parte em:
(2) Monsignor Gilfredo Marengo, La nascita di un’Enciclica. Humanae Vitae alla luce degli Archivi Vaticani, Libreria Editice Vaticana, 2018.
(3) Ver em:
(4) Ver em:
(5) Ver em:
E em:
(6) Ver o artigo do próprio Cardeal Ratzinger (traduzido em Inglês), publicado na Communio 21 (Summer, 1994) – Communio International Catholic Review pg.199 – 207, onde ele explica o porquê da Veritatis Splendor, a sua longa génese, a sua estrutura e conteúdo, em: http://www.msavietnam.org/christian-faith-as-the-way-an-introduction-to-veritatis-splendor/
(7) As famosas cinco Dubia (do latim, dúvidas), foram endereçadas ao Papa Francisco e à atenção do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, por quatro cardeais (Walter Brandmüller; Raymond L. Burke; Carlo Caffarra e Joachim Meisner), anexadas a uma carta, com a data de 19 de Setembro, de 2016; ou seja, duas semanas depois do Papa ter escrito a bispos argentinos a respeito dos critérios de aplicação do capítulo VIII da Amoris Laetitia por eles publicados, o seguinte: «El escrito es muy bueno y explícita cabalmente el sentido del capitulo VIII de Amoris laetitia. No hay otras interpretaciones» (Carta esta, enviada do Vaticano, datada de 5 de Setembro de 2016, que veio a público no dia 19, a mesmíssima data das Dubia…).
Como não obtiveram qualquer resposta às suas dúvidas e confrontados com a afirmação pública do Santo Padre de que «não há outras interpretações», cerca de dois meses depois (no dia 14 de Novembro), os mesmos quatro cardeais entenderam assim, por sua vez, tornar pública a sua carta de 19 de Setembro, assim como as Dubia, tudo precedido com um Prefácio e seguido de uma Nota explicativa. Ver em:
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