quinta-feira, 14 de março de 2019

D. Athanasius pediu, e o Papa Francisco esclareceu a questão da “diversidade de religiões”

No passado dia 1 do corrente mês, os bispos e outros pastores do Cazaquistão foram recebidos em visita ad Limina Apostolorum pelo Santo Padre Francisco. O encontro, segundo relatou o Lifesite News (1) durou cerca de duas horas e nele foram abordadas questões da maior relevância tais como «a comunhão para os divorciados e “recasados” civilmente, o tema da Comunhão para os esposos Protestantes de casamentos mistos e o tema da expansão da prática da homossexualidade na Igreja».

Refere o mesmo site que numa conversa directa entre o Papa e o bispo Atanásio Schneider foi também tratado o controverso tema da «diversidade de religiões», enquanto esta seria porventura desejada ou querida por Deus. A polémica surgira após o Papa e o Grande Imã de Al-Azhar, no passado dia 4 de Fevereiro, em Abu Dhabi, assinarem solenemente um DOCUMENTO SOBRE A FRATERNIDADE HUMANA EM PROL DA PAZ MUNDIAL E DA CONVIVÊNCIA COMUM (2).

Com efeito, consta do documento, publicado pelo Vaticano em seis línguas (para além do árabe que não sei ler de todo e por isso não transcrevo), a seguinte frase que, entre outros pontos «atesta» (sic) o seguinte (negrito e itálico sempre meus):

«A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de acção. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos. Esta Sabedoria divina é a origem donde deriva o direito à liberdade de credo e à liberdade de ser diferente. Por isso, condena-se o facto de forçar as pessoas a aderir a uma determinada religião ou a uma certa cultura, bem como de impor um estilo de civilização que os outros não aceitam».

Nas outras cinco traduções publicadas, nomeadamente, em italiano, francês, inglês, alemão, e espanhol, a palavra usada é, sem margem para qualquer dúvida, aquela a que em português corresponde a palavra vontade (3); mas, curiosamente, na tradução portuguesa fornecida pelo Vaticano, o tradutor optou por desígnio, aparentemente talvez mais “soft”.

Mas no que respeita a esta última palavra - desígnio - tanto o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (da Academia das Ciências / Verbo) como o brasileiro Dicionário Huaiss da Língua Portuguesa (Temas e Debates), contudo dão-lhe o significado inequívoco de «aquilo que se pretende fazer ou atingir»; ou «intenção, propósito, vontade». Acresce que na linguagem corrente a expressão desígnio(s) de Deus, pretende sempre referir-se à vontade de Deus a respeito do que se está a considerar.

Logo no dia imediato à assinatura, no voo de regresso a Roma, dia 5 de Fevereiro, na habitual conferência de imprensa a bordo do avião (4), o Papa exprimiu-se assim relativamente ao Documento (negrito meu):

«O documento foi preparado com muita reflexão e também oração. Tanto o Grande Imã com a sua equipe como eu com a minha rezamos tanto para se conseguir fazer este Documento. […]. Este Documento nasce da fé em Deus, que é o Pai de todos e Pai da paz, e condena toda a destruição, todo o terrorismo, a começar pelo primeiro terrorismo da história que é o de Caim. É um Documento que se desenvolveu ao longo de quase um ano: idas, vindas, orações... Mas permaneceu assim, reservado, para amadurecer, para não dar à luz a criança antes do tempo, para que amadurecesse. Obrigado».

E mais à frente, afirmou ainda o Papa sobre o mesmo assunto (negrito e itálico meu):

«[…]. Acusam de me deixar instrumentalizar por todos, inclusive pelos jornalistas… Faz parte do [meu] trabalho. Mas há uma coisa que quero dizer. Isto, reitero-o claramente: do ponto de vista católico, o Documento não se desviou um milímetro do Vaticano II. Até aparece citado algumas vezes. O Documento foi feito no espírito do Vaticano II. E, antes de tomar a decisão «está bem assim, damo-lo por concluído assim» (pelo menos, da minha parte), quis fazê-lo ler a algum teólogo e, mesmo oficialmente, ao Teólogo da Casa Pontifícia, que é um dominicano, com a bela tradição dominicana, não de ir à caça de bruxas, mas de ver onde está a coisa certa… e ele aprovou. Se alguém sentir dificuldade, compreendo-o; não é uma realidade de todos os dias. Mas, não é um passo atrás, é um passo para a frente: um passo para a frente dado 50 anos depois do Concílio, que se deve desenvolver. Dizem os historiadores que, para um Concílio ganhar raízes na Igreja, são necessários 100 anos. Estamos a meio do caminho. E isto pode suscitar qualquer perplexidade, mesmo a mim. Sabem uma coisa? Ao ver certa frase [do Documento], disse para comigo: «Esta frase, não sei se é segura!» Era uma frase do Concílio… E surpreendeu-me também a mim! […].».

Deixando de parte a referência papal ao dominicano, Teólogo da Casa Pontifícia, de que este aprovara oficialmente o conteúdo do Documento – já que, conforme o que Edward Pentin afirmou num comentário ao impacto da visita, o próprio teólogo não terá chegado a ver a versão final (5) - fixemo-nos para já apenas nas referências ao Vaticano II.

A que citações do Concílio se remetia o Papa? Ele não o disse então, mas é muito provável que estivesse a referir-se à Declaração Nostra Aetate (NA) sobre a Igreja e as religiões não-cristãs. Efectivamente, como é sabido, neste documento conciliar tratou-se, não sem grande polémica - que se mantém até aos dias de hoje - da doutrina da Igreja a respeito de algumas outras religiões que ali são explicitamente referidas: o Hinduísmo, o Budismo e «outras religiões» (nº 2); e de modo mais extenso, o Islão (nº 3) e o Judaísmo (nº 4), para finalizar com um apelo à fraternidade, fundamentada em «Deus como Pai comum de todos» e com uma reprovação de «toda e qualquer discriminação ou violência praticada por motivos de raça ou cor, condição ou religião» (nº 5).

Mas, sobretudo, e a propósito das «diversas religiões» ressalta logo a afirmação contida no segundo parágrafo do nº 1 da NA, que diz assim (itálico e negrito meu):

«Os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente preocupam seus corações: que é o homem? qual o sentido e a finalidade da vida? que é o pecado? donde provém o sofrimento, e para que serve? qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira? que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos?»

Uma coisa é reconhecer o que os homens naturalmente esperam das religiões, existentes de facto; outra é reconhecê-las como desejo explícito de Deus o que lhes conferiria um evidente direito divino. Mas, em nenhuma das referidas partes da NA, se afirma ou pode concluir, sem mais, que Deus quer positivamente a existência de diversas religiões; ou que elas existem por Sua sapiente vontade ou sábio desígnio. Aliás, a NA declara no seu nº 2 que «a Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, reflectem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No entanto, ela anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente Cristo, “caminho, verdade e vida” (Jo. 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas (2 Cor 5, 18-19)».

E na Constituição pastoral Gaudium et Spes, colocando-se as mesmas questões fundamentais que preocupam os corações dos homens, responde sem qualquer ambiguidade o mesmo Concílio Vaticano II (cf. nº 10):

«Todavia, perante a evolução actual do mundo, cada dia são mais numerosos os que põem ou sentem com nova acuidade as questões fundamentais: Que é o homem? Qual o sentido da dor, do mal, e da morte, que, apesar do enorme progresso alcançado, continuam a existir? Para que servem essas vitórias, ganhas a tão grande preço? Que pode o homem dar à sociedade, e que coisas pode dela receber? Que há para além desta vida terrena?
A Igreja, por sua parte, acredita que Jesus Cristo, morto e ressuscitado por todos (2 Cor 5, 15), oferece aos homens pelo seu Espírito a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação; nem foi dado aos homens sob o céu outro nome, no qual devam ser salvos (Act 4, 12). Acredita também que a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e mestre. E afirma, além disso, que, subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje, e para sempre (Hb 13, 8)».

Percebe-se assim talvez melhor que ao Santo Padre possam ter ocorrido sentimentos de insegurança «ao ver certa frase»… :«Sabem uma coisa? Ao ver certa frase, disse para comigo: «Esta frase, não sei se é segura!»… E isto depois de quase um ano de reflexão e oração…

Depois deste esquadrinhado, voltemos à visita ad Limina dos bispos do Cazaquistão, havida dia 1. Compreender-se-á agora também muito melhor o pedido de esclarecimento que o bispo Atanásio Schneider colocou pessoalmente ao Santo Padre naquela ocasião. Conta Sua Excelência Reverendíssima assim ao Lifesite News (1):

«Alguns bispos tiveram a oportunidade de expor as suas preocupações acerca da vida da Igreja nos nossos dias. [].

Então também eu pedi ao Santo Padre para esclarecer a declaração [constante] no documento de Abu Dhabi, acerca da diversidade de religiões ser “querida” por Deus.

O Papa foi muito benevolente na sua resposta às nossas questões e procurou responder-nos a partir da sua própria perspectiva destes problemas. Ele respondeu de um modo mais geral acerca dos princípios da fé católica, mas naquelas circunstâncias nós não tivemos oportunidade de descer ao detalhe sobre os temas específicos. […].

Sobre o tópico da minha preocupação acerca da frase usada no documento de Abu Dhabi – de que Deus “quer” a diversidade das religiões – a resposta do Papa foi muito clara: ele disse que a diversidade de religiões é [constitui] apenas a permissiva [permissive, no original] vontade de Deus. Ele sublinhou isto e disse-nos: podem dizer isto, também, que a diversidade de religiões é apenas a permissiva vontade de Deus.

Eu tentei aprofundar ainda mais a questão, ao menos citando a frase tal como vem no documento. A frase diz que Deus quer a diversidade de sexos, cores, raças e línguas, tal como Deus deseja a diversidade de religiões. Há uma evidente comparação entre a diversidade de religiões e a diversidade de sexos.

Mencionei este ponto ao Santo Padre e ele reconheceu que, com esta comparação directa, a frase pode ser entendida erroneamente. Eu sublinhei na minha resposta que a diversidade de sexos não é [do âmbito] da vontade permissiva de Deus, mas querida positivamente por Deus. E o Santo Padre reconheceu isto e concordou comigo que a diversidade de sexos não é matéria da vontade permissiva de Deus.

Mas quando mencionamos ambas estas frases na mesma afirmação, então a diversidade de religiões é interpretada como positivamente querida por Deus, tal como a diversidade de sexos. Consequentemente, a afirmação leva a duvidosas e erróneas interpretações e assim foi meu desejo e meu pedido que o Santo Padre rectificasse isto. Mas ele disse-nos, a nós bispos: podem dizer que a frase em questão sobre a diversidade de religiões significa a vontade permissiva de Deus».

Obrigado ao Senhor bispo Atanásio Schneider por ter sido o motor deste esclarecimento do Santo Padre que assim cumpriu o seu múnus de nos confirmar no que é de fé (cf. Lc 22, 32).

8 de Março de 2019

João Duarte Bleck, médico e leigo Católico

Notas:



3. Il pluralismo e le diversità di religione, di colore, di sesso, di razza e di lingua sono una sapiente volontà divina; Le pluralisme et les diversités de religion, de couleur, de sexe, de race et de langue sont une sage volonté divine; The pluralism and the diversity of religions, colour, sex, race and language are willed by God in His wisdom; Der Pluralismus und die Verschiedenheit in Bezug auf Religion, Hautfarbe, Geschlecht, Ethnie und Sprache entsprechen einem weisen göttlichen Willen; El pluralismo y la diversidad de religión, color, sexo, raza y lengua son expresión de una sabia voluntad divina. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino.


5. http://www.ncregister.com/daily-news/popes-visit-to-arabian-peninsula-a-special-grace . E. Pentin escreve: «Informed sources confirm Dominican Father Wojciech Giertych was consulted but did not see the final draft».

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