Sobre a questão de um Papa herético
O tema de como tratar com um Papa herético, em termos concretos, ainda não foi abordado de maneira a chegar a um verdadeiro consenso geral, em toda a tradição católica. Até à data nenhum Papa ou concílio ecuménico pronunciaram directrizes doutrinais relevantes nem emitiram normas canónicas vinculantes no que respeita à abordagem a um Papa herético, durante o seu pontificado.
Não aconteceu na história um Papa ter sido deposto por heresia ou suposta heresia. O papa Honório I (625-638) foi postumamente excomungado por três concílios ecuménicos (o terceiro concílio de Constantinopla em 681, o segundo concílio de Niceia em 787 e o quarto concílio de Constantinopla em 870) com o argumento de suportar o monotelismo, facilitando a difusão da dita heresia. O Papa São Leão II (+682 - 683) declarou o anátema de Honório I ("anathematizamus Honorium"), na mesma carta em que confirmou os decretos do terceiro Concílio de Constantinopla, indicando que o seu predecessor "Honório, que não iluminou esta Igreja apostólica com a doutrina da tradição apostólica, mas que tentou subverter a pura fé com uma ímpia traição". (Denzinger- Schonmetzer, n.563)
O Liber Diurnus Romanorum Pontificum, uma colecção variada de formulários utilizados na chancelaria Papal até ao século XI, contém o texto com o juramento papal, segundo o qual cada novo Papa, ao assumir o cargo, tinha que jurar que "reconhecia o sexto concílio ecuménico que castigou com anátema eterno os criadores da heresia (Monotelismo), Sergio, Pirro, etc., junto com Honório." (PL 105, 40-44)
Em alguns breviários (séculos XVI - XVIII), o Papa Honório era mencionado como herege nas lições de matinas no dia 28 de Junho, na festa de São Leão II: “En synodo Constantinopolitano condemnati sunt Sergius, Cyrus, Honorius, Pirrus, Paulus et Petrus, nec non et Macarius, cum discipulo suo Stephano, sed et Polychronius et Simon, qui unam voluntatem et operationem en Domnino Jesu Christo dixerunt vel praedicaverunt”. A persistência desta leitura através de muitos séculos é sinal de que muitas gerações de católicos não consideraram escandaloso que um Papa em particular, e como caso raro, tenha sido declarado culpado de heresia ou de militante da mesma. Outrora, os fieis e a hierarquia da Igreja podiam distinguir claramente a firmeza da Fé católica suportada pelo Magistério da Sede de Pedro da infidelidade e traição de um Papa em concreto no exercício da função docente.
Dom John Chapman explicou no seu livro “The Condemnation of Pope Honorius” (Londres 1907), que o Terceiro Concilio Ecuménico de Constantinopla, que havia declarado anátema o Papa Honório, fez uma clara distinção entre o erro de um Papa em particular e a infalibilidade na fé da Sede apostólica como tal. Na carta em que se pedia ao Papa Agatão (678-681) para aprovar as decisões conciliares, os Padres do Terceiro Concílio Ecuménico de Constantinopla afirmaram que Roma tem uma fé indefectível, que é autoritariamente promulgada para toda a Igreja pelos bispos da Sede Apostólica, os sucessores de Pedro. Poder-se-á perguntar: Como foi possível que o Terceiro Concílio Ecuménico de Constantinopla afirmar isto e, ao mesmo tempo condenar um Papa como herege? A resposta é suficientemente clara. O Papa Honório I era falível, estava equivocado, era um herege, precisamente porque não tinha declarado com autoridade, como deveria ter feito, a tradição de Pedro da Igreja Romana. Não recorreu a essa tradição, mas antes aprovou e difundiu uma doutrina errónea. Uma vez desmentido por seus sucessores, as palavras de Papa Honório I foram inócuas contra o facto da infalibilidade da fé da Sede apostólica. Foram reduzidas ao seu verdadeiro valor, como a expressão da sua visão pessoal.
O Papa São Agatão limpou e corrigiu o lamentável comportamento do seu predecessor Honório I, mantendo a sua visão sobrenatural da infalibilidade da Sede de Pedro ao ensinar a Fé, como escreveu aos imperadores de Constantinopla: “Esta é a regra da verdadeira fé, que esta mãe espiritual de vosso muito pacífico império, a Igreja Apostólica de Cristo (a Sede de Roma), desde sempre susteve e defendeu energicamente tanto na prosperidade como na adversidade; que se provará, pela graça de Deus Todo-Poderoso, que nunca errou no caminho da tradição apostólica, nem se desviou ao ceder a novos ventos heréticos, pelo contrário, desde o princípio recebeu a fé cristã de seus fundadores, os príncipes dos apóstolos de Cristo, e permanece sem mancha até ao fim, de acordo com a mesma promessa de Nosso Senhor e Salvador proclamada ao príncipe de Seus discípulos: “Pedro, Pedro! Olha que satanás pediu autorização para vos joeirar como trigo; Eu, porém, rezei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, quando voltares para Mim, confirma os teus irmãos.” (Ep. ”Consideranti mihi” ad Imperatores)
Dom Prosper Guéranger deu uma breve e lúcida explicação teológica e espiritual deste caso concreto, um Papa herético, dizendo: “Espantosa habilidade que se viu nesta campanha do diabo! E nos abismos, quantos aplausos no dia em que [Papa Honório] o representante daquele que é a luz, viu-se envolvido com os poderes das trevas para introduzir a escuridão e a confusão! Evita, oh Leão, que se repitam situações de tamanha dor”. (El Año Litúrgico, Burgos 1955, vol. 4, p. 533)
Constata-se que durante dois mil anos nunca houve um caso de um Papa que durante o seu mandato tivesse sido deposto por delito de heresia. O Papa Honório I foi declarado anátema apenas após a sua morte. O último caso de um Papa herético ou semi-herético foi o caso do Papa João XXII (1316 - 1334) quando pregou a sua teoria de que os santos só disfrutariam da visão beatífica após o Juízo Final, na Segunda Vinda de Cristo. O procedimento em tratar esse caso particular naquele tempo foi o seguinte: houve advertências públicas (Universidade de Paris, Rei Felipe VI de França), uma refutação das teorias papais erradas através de várias publicações teológicas e uma correção fraterna em nome do Cardeal Jacques Fournier, quem finalmente se converteu no seu sucessor, o Papa Bento XII (1334 - 1342).
A Igreja, nos raríssimos casos em que um pontífice comete graves erros teológicos ou heresias, definitivamente poderia conviver com um tal Papa. A Igreja, até agora, delegou o juízo final sobre um Papa herético reinante aos seus sucessores, ou a um futuro Concílio Ecuménico, como no caso do Papa Honório I. O mesmo provavelmente teria acontecido com o Papa João XXII, caso não se tivesse abordado o seu erro.
Os papas foram depostos várias vezes por poderes seculares ou por grupos criminais. Isto sucedeu-se especialmente durante o chamado 'século de ferro' (séculos X e XI), quando os imperadores alemães destituíram vários papas indignos, não pela sua heresia, mas pela sua escandalosa vida imoral ou seu abuso de poder. Sem embargo, nunca foram depostos de acordo com um procedimento canónico, uma vez que isso é impossível devido à estrutura divina da Igreja. O Papa obtém a sua autoridade directamente de Deus e não da Igreja; portanto, a Igreja não pode afastá-lo por qualquer motivo.
É um dogma de fé que o Papa não pode proclamar uma heresia quando ensina ex cathedra. Esta é a garantia divina de que as portas do Inferno não prevalecerão contra a cathedra veritatis, que é a Sede Apostólica do Apóstolo São Pedro. Dom John Chapman, um especialista em investigar a história da condenação do Papa Honório I, escreve o seguinte: “A infalibilidade é, por assim dizer, o vértice de uma pirâmide. Quanto mais solenes são as declarações da Sede apostólica, mais podemos estar seguros da sua verdade. Quando atingem o máximo de solenidade, isto é, quando são estritamente ex cathedra, é eliminada por completo a possibilidade de erro. A autoridade de um Papa, inclusive naquelas ocasiões em que não é realmente infalível, deve ser implicitamente seguida e venerada. A possibilidade de que esteja no lado equivocado é, na verdade, uma contingência que a fé e a história demonstram. “ (The Condemnation of Pope Honorius, Londres 1907, p. 109)
Na presença de um Papa que difunda erros doutrinais ou heresias, a estrutura divina da Igreja proporciona um antídoto: a suplência ministerial dos representantes do episcopado e o invencível sensus fidei dos fieis. Neste tema o factor numérico não é decisivo. É suficiente que apenas um par de bispos proclamem a integridade da fé e corrijam assim os erros do dito Papa herético. É suficiente que os bispos instruam e protejam o seu rebanho dos erros de um Papa herético e os seus sacerdotes e pais das famílias católicas farão o mesmo. Além disso, dado que a Igreja também é uma realidade sobrenatural e um mistério, um organismo sobrenatural único, o Corpo Místico de Cristo, bispos, sacerdotes e fieis leigos, além de correções, apelos, profissões de fé e resistência pública, também têm necessariamente de fazer actos de reparação à Divina Majestade e actos de expiação pelos actos heréticos de um Papa. Segundo a Constituição Dogmática Lumen gentium. (cf. n. 12) do Concílio Vaticano II, o corpo inteiro dos fieis não pode equivocar-se quando acredita, quando desde os bispos até os últimos fieis leigos exista um consentimento universal nas coisas de fé e costumes. Inclusivamente, se um Papa difunde erros teológicos e heresias, a Fé da Igreja no seu conjunto permanecerá intacta devido à promessa de Cristo no que respeita à assistência especial e a presença permanente do Espírito Santo, o Espírito da verdade, na Sua Igreja (ver João 14, 17; 1 João 2, 27).
Se, por uma inescrutável permissão de Deus, num dado momento da História e num caso raro, um Papa propaga erros e heresias através do seu Magistério não infalível quotidiano ou ordinário, a Divina Providência desperta ao mesmo tempo o testemunho de alguns membros do colégio episcopal, e também de fiéis, para compensar as falhas temporais do magistério papal. Há que declarar que a referida situação é muito rara, contudo não impossível, como nos demonstrou a história da Igreja. A Igreja é de facto um só corpo orgânico, e quando há uma falha e falta na cabeça do corpo (o Papa), o resto do corpo (os fieis) ou partes proeminentes do corpo (os bispos) suprem os erros temporais do Papa. Um dos exemplos mais famosos e trágicos de tal situação ocorreu durante a crise ariana no século IV, quando a pureza da fé foi mantida não tanto pela ecclesia docens (Papa e episcopado) mas sim pela ecclesia docta (fieis), como tem declarado o beato John Henry Newman.
A teoria ou opinião da perda do cargo papal por deposição ou declaração da perda ipso facto, implicitamente, identifica o Papa com toda a Igreja ou manifesta a atitude incorrecta de um Papa-centrismo, ou, em última instância, de uma papolatria. Por último, os representantes desta opinião (especialmente alguns santos) foram aqueles que manifestaram um exagerado ultramontanismo ou Papa-centrismo, convertendo o Papa numa espécie de semi-deus, que não pode cometer nenhum erro, nem sequer no âmbito fora do objeto da infalibilidade papal. Portanto, um Papa que comete erros doutrinais, que teoricamente e logicamente inclui a possibilidade de cometer o erro doutrinal mais grave, uma heresia, é para os seguidores dessa opinião (ou seja a deposição de um Papa ou a perda do seu cargo por heresia) insuportável ou impensável, inclusive se se trata de erros fora do âmbito da infalibilidade papal.
A teoria ou opinião teológica de que um Papa herético pode ser deposto ou perder o cargo era alheia ao primeiro milénio. Apareceu somente na Alta Idade Média, numa época em que o Papa-centrismo atingiu o ápice, no momento em que, inconscientemente, o Papa se identificou com a Igreja como tal. Isto pressagiava já, embrionariamente, a atitude mundana de um príncipe absolutista segundo o lema: “L'État, c'est moi!” ou em termos eclesiásticos: “A Igreja sou eu!”
A opinião que diz que um Papa herético ipso facto perde o seu cargo converteu-se em opinião comum a partir da Alta Idade Média até o século XX. Continua a ser uma opinião teológica e não um ensinamento da Igreja e, por esta razão, não pode reclamar o estatuto de ensinamento constante e perene da Igreja como tal, já que nenhum Concílio Ecuménico e nenhum Papa apoiou explicitamente tal opinião. A Igreja, não obstante, condenou um Papa herético, mas apenas postumamente e não durante o seu mandato. Inclusive alguns Santos Doutores da Igreja (como São Roberto Belarmino, São Francisco de Sales) suportaram tal opinião, porém isso não demonstra a sua viabilidade ou um consenso doutrinal geral. De facto, sabe-se que alguns doutores da Igreja se enganaram; tal é o caso de São Tomás de Aquino com respeito à questão da Imaculada Conceição, o assunto da matéria do sacramento das Ordem ou o carácter sacramental da ordenação episcopal.
Houve um período na Igreja em que existiu, por exemplo, uma opinião teológica comum objetivamente errónea que afirmava que a entrega dos instrumentos era a matéria do sacramento da Ordem, uma opinião, sem embargo, que não podia invocar a antiguidade e a universalidade, ainda que tal opinião foi, por um tempo limitado, apoiada por um Papa (pelo decreto de Eugénio IV) ou por livros litúrgicos (ainda que por um período limitado). Mesmo assim, esta opinião comum foi corrigida posteriormente por Pio XII em 1947.
A teoria de depor um Papa herético, ou a perda do seu cargo ipso facto por heresia, é apenas uma opinião teológica que não cumpre com as categorias teológicas necessárias de antiguidade, universalidade e consenso (semper, ubique, ab omnibus). Não houve pronunciamentos do Magistério ordinário universal ou do Magistério papal, que apoiem as teorias da deposição de um Papa herético ou da perda do seu cargo ipso facto por heresia. Segundo uma tradição canónica medieval, que depois se juntou ao Corpus Iuris Canonici (a lei canónica válida na Igreja latina até 1918), um Papa poderia ser julgado no caso de heresia: “Papa a nemine est iudicandus, nisi deprehendatur a fide devius”, isto é, “o Papa não pode ser julgado por ninguém, a menos que se tenha desviado da fé” (Decretum Gratiani , Prima Pars, dist. 40, c. 6, 3. pars). O Código de Direito Canónico de 1917, porém, eliminou a norma do Corpus Iuris Canonici, que fazia referência a Papas heréticos. O Código de Direito Canónico de 1983 também não contem tal norma.
A Igreja sempre ensinou que inclusive uma pessoa herética, que é excomungada automaticamente devido a uma heresia formal, pode, contudo, administrar os sacramentos de maneira válida e que um sacerdote herético ou excomungado formalmente pode, num caso extremo, exercer inclusive um acto de jurisdição conferindo a um penitente absolvição sacramental. As normas da eleição papal, que foram válidas até que Paulo VI, inclusive, admitiram que até um cardeal excomungado poderia participar na eleição papal e ao mesmo ser eleito Papa: “Nenhum cardeal eleitor poderá ser excluído da eleição, activa ou passiva, do Sumo Pontífice, a causa ou debaixo de pretexto de excomunhão, suspensão, interdição ou outro impedimento eclesiástico; estas censuras deverão ser consideradas em suspenso somente pelo que se refere a tal eleição.” (Paulo VI, constituição apostólica Romano Pontifice eligendo, n. 35). Este princípio teológico deve aplicar-se também ao caso de um bispo herético o um Papa herético, que apesar das suas heresias pode realizar validamente actos de jurisdição eclesiástica e, portanto, não perdem o seu cargo ipso facto por heresia.
A teoria ou opinião teológica que permite a deposição de um Papa herético ou a perda do seu cargo ipso facto por heresia é na prática inviável. Se fosse aplicada na prática, criar-se-ia uma situação similar à do Grande Cisma, que a Igreja já experimentou desastrosamente nos fins do século XIV e princípios do XV. De facto, haverá sempre uma parte do colégio cardinalício e uma parte considerável do episcopado do mundo e também de fieis que não estarão de acordo em classificar um erro papal (ou erros) concreto como heresia (ou heresias) e, em consequência, seguirão considerando o Papa actual como o único Papa legítimo.
Um cisma formal, com dois ou mais pretendentes ao trono papal, que seria una consequência inevitável de uma deposição inclusive canonicamente promulgada de um Papa, necessariamente causará mais dano à Igreja no seu conjunto que um período relativamente curto e muito raro em que um Papa difunde erros doutrinais ou heresias. A situação de um Papa herético sempre será relativamente curta em comparação com os dois mil anos da existência da Igreja. Cada um tem que encomendar este caso raro e delicado à intervenção da Divina Providência.
A tentativa de depor um Papa herético a qualquer custo é sinal de um comportamento demasiado humano, que em última instância reflete uma falta de vontade para suportar a cruz temporal de um Papa herético. Talvez também reflita a emoção demasiado humana da ira. Em qualquer caso, oferece uma solução demasiado humana, e como tal é algo semelhante a uma atitude política. A Igreja e o Papado são realidades que não são puramente humanas, mas também divinas. A cruz de um Papa herético, mesmo quando tem uma duração limitada, é a maior cruz imaginável para toda a Igreja.
Outro erro na intenção ou na tentativa de depor um Papa herético consiste na identificação indireta ou subconsciente da Igreja com o Papa ou em fazer do Papa o ponto focal da vida quotidiana da Igreja. Isto significa, em última análise e de maneira subconsciente, render-se ao insalubre ultramontanismo, ao Papa-centrismo e à papolatria, isto é, um culto à personalidade papal. De facto, houve períodos na história da Igreja quando, durante um período de tempo considerável, a Sede de Pedro esteve vacante. Por exemplo, desde 29 de Novembro de 1268 até 1 de Setembro de 1271, não houve Papa e nesse tempo também não houve nenhum antipapa. Portanto, os católicos não devem fazer do Papa e das suas palavras e acções o seu foco diário.
Uma pessoa poderá deserdar os seus filhos. Contudo, uma pessoa não pode deserdar ao pai de família, por muito culpável ou monstruoso que seja o seu comportamento. Esta é a lei da hierarquia que Deus estabeleceu até na criação. O mesmo se aplica ao Papa, que durante o seu mandato é o pai espiritual de toda a família de Cristo na Terra. No caso de um pai criminoso ou monstruoso, os filhos devem afastar-se dele ou evitar o contacto com ele. Não obstante, não podem dizer: “Elegeremos um novo e melhor pai para a nossa família”. Seria contra o sentido comum e contra a natureza. O mesmo princípio deveria ser aplicável, portanto, à questão de depor um Papa herético. O Papa não pode ser deposto por ninguém, somente Deus pode intervir e o fará a seu tempo, já que Deus não falha na Sua providência (“Deus in sua dispositione non fallitur”). Durante o Concílio Vaticano I, o bispo Zinelli, relator da comissão conciliar sobre a fé, falou nestes termos sobre a possibilidade de um Papa herético: “Se Deus permite um mal tão grande (isto é, um Papa herético), os meios para remediar a situação não faltarão” (Mansi 52, 1109).
A deposição de um Papa herético finalmente fomentará a heresia do conciliarismo, o sedevacantismo e uma atitude mental semelhante à que caracteriza uma comunidade puramente humana ou política. Também fomentará uma mentalidade similar ao separatismo do mundo protestante ou ao autocefalismo da comunidade das igrejas ortodoxas.
Ademais, revela-se que a teoria ou a opinião que permite a deposição e a perda do cargo tem nas suas raízes mais profundas, ainda que de maneira inconsciente, também uma espécie de “donatismo” aplicado ao ministério papal. A teoria Donatista atribuía aos ministros sagrados (sacerdotes e bispos) quase a santidade moral do próprio Cristo, exigindo, portanto, para a validez do seu cargo, a ausência de erros morais ou má conducta na sua vida pública. A teoria mencionada exclui, de maneira similar, a possibilidade de que um Papa cometa erros doutrinais, ou seja, heresias, declarando por esse mesmo facto que o seu cargo é inválido ou vacante, como o fizeram os Donatistas, declarando inválido o cargo sacerdotal ou episcopal devido a erros na vida moral.
É possível imaginar que no futuro a autoridade suprema da Igreja (o Papa ou um Concílio Ecuménico) poderia estipular as seguintes ou similares normas canónicas vinculantes para o caso de um Papa herético ou um Papa manifestamente heterodoxo:
· Um Papa não pode ser deposto em nenhuma forma e por qualquer razão, nem sequer por motivo de heresia.
· Um Papa recém-eleito, ao entrar no seu cargo, está obrigado, em virtude do seu ministério como o mestre supremo da Igreja, a prestar o juramento de proteger todo o rebanho de Cristo dos perigos das heresias e evitar nas suas palavras e feitos qualquer aparência de heresia no cumprimento do seu dever de fortalecer na fé todos os pastores e fieis.
· Um Papa que propaga erros teológicos óbvios ou heresias ou ajudando na propagação das heresias pelas suas acções e omissões deve ser corrigido obrigatoriamente de forma fraterna e privada pelo Decano do Colégio de Cardeais.
· Se as correções privadas fracassarem, o Decano do Colégio de Cardeais está obrigado a fazer pública a sua correção.
· Junto com a correção pública, o Decano do Colégio de Cardeais deve fazer um apelo à oração pelo Papa para que recupere a força para confirmar sem ambiguidades toda a Igreja na Fé.
· Ao mesmo tempo, o Decano do Colégio Cardinalício deveria publicar uma fórmula de Profissão de Fé, na qual se corrigissem os erros teológicos que o Papa ensina ou tolera (sem mencionar necessariamente o Papa).
· Se o Decano do Colégio de Cardeais omite ou não realiza a correção, o apelo à oração e a publicação de uma Profissão de Fé, qualquer cardeal, bispo ou grupo de bispos deve fazê-lo e, se os cardeais e bispos omitem ou não o fazem, qualquer membro dos fieis católicos ou qualquer grupo de fieis católicos deve fazê-lo.
· O Decano do Colégio de Cardeais ou um cardeal, um bispo ou um grupo de bispos, um católico fiel ou um grupo de fieis católicos que tenham feito a correção, o apelo à oração, e a publicação da Profissão de Fé não podem ser sujeitos a sanções canónicas ou castigos, ou ainda de serem acusados de falta de respeito pelo Papa por este motivo.
No caso extremamente raro de um Papa herético, a situação espiritual da Igreja pode ser descrita com as palavras que usou o Papa São Gregório Magno (590-604), chamando à Igreja da sua época “um velho barco destruído; entrando água por todos os lados, e as juntas, golpeadas pela turbulência diária da tempestade, apodrecem e anunciam o naufrágio“ (Registrum I, 4, Ep. ad Ioannem episcopum Constantinopolitanum).
Os episódios narrados no Evangelho sobre o modo como Nosso Senhor acalmou o mar tempestuoso e resgatou Pedro que se afundava, ensinam-nos que até na situação mais dramática e humanamente desesperada de um Papa herético, todos os Pastores da Igreja e os fieis devem crer e confiar que Deus intervirá na Sua Providência e Cristo acalmará os ventos e restaurará nos sucessores de Pedro, Seus vicários na Terra, a força para confirmar todos os pastores e fieis na fé católica e apostólica.
O Papa São Agatão (678 - 681), que teve a difícil tarefa de conter e corrigir o dano que o Papa Honório I tinha causado à integridade da Fé, deixou vívidas palavras sobre um chamamento ardente a cada sucessor de Pedro, eles que devem estar sempre atentos ao seu grave dever de resguardar a pureza virginal do Depósito da Fé: “Ai de mim, se não pregar a verdade do meu Senhor, que pregou sinceramente! Ai de mim, se cubro com silêncio a verdade que me foi ordenada a dar ao meu rebanho, isto é, ensinar a verdade ao povo cristão e imbui-lo nela! Que direi no juízo futuro feito pelo próprio Cristo, se vacilo, - Deus não permita! - por pregar aqui a verdade das Suas palavras? Que satisfação poderei dar-me a mim mesmo quando, que pelas almas comprometidas comigo, Ele exigir um informe estricto do ofício que recebi?” (Ep. “Consideranti mihi” ad Imperatores)
Quando o primeiro Papa, São Pedro, estava materialmente acorrentado, toda a Igreja implorou a sua libertação: “Pedro estava encarcerado, mas a Igreja orava sem cessar a Deus por ele.” (Actos 12, 5). Quando um Papa está propagando erros ou inclusive heresias, está entre correntes e cadeias espirituais ou numa prisão espiritual. Portanto, toda a Igreja deve orar sem cessar pela sua libertação desta prisão espiritual. Toda a Igreja deve ter uma perseverança sobrenatural em tal oração e uma confiança sobrenatural no facto de que é Deus quem governa a Sua Igreja, em última instância, e não o Papa.
Quando o Papa Honório I (625 - 638) adaptou uma atitude ambígua referente à propagação da nova heresia do monotelismo, São Sofrónio, patriarca de Jerusalém, enviou a um bispo da Palestina a Roma, dizendo-lhe as seguintes palavras: “Vai à Sede Apostólica, onde estão os cimentos da santa doutrina, e não interrompa a oração até que a Sede Apostólica condene a nova heresia”.
Ao lidar com o trágico caso de um Papa herético, todos os membros da Igreja, começando pelos bispos, até os simples fieis, têm que usar todos os meios legítimos, como as correções privadas e públicas do Papa errante, constantes e ardentes orações e profissões públicas da verdade para que a Sede Apostólica possa novamente professar com claridade as verdades divinas, que o Senhor confiou a Pedro e a todos os seus sucessores. “Assim o Espírito Santo foi prometido aos sucessores de Pedro, não da maneira que eles pudessem, por revelação própria, dar a conhecer alguma nova doutrina, mas que, por assistência Sua, eles pudessem guardar santamente e expor fielmente a revelação transmitida pelos Apóstolos, ou seja, o depósito da fé.” (Concílio Vaticano I, Constituição Dogmática Pastor Aeternus, cap. 4)
Cada Papa e todos os membros da Igreja devem recordar as palavras sábias e intemporais, que o Concílio Ecuménico de Constança (1414 - 1418) pronunciou sobre o Papa como a primeira pessoa na Igreja que está obrigada pela Fé e que deve escrupulosamente velar pela integridade da fé: “Dado que o Romano Pontífice exerce um poder tão grande entre os mortais, é justo que se lhe seja vinculado todos os laços indiscutíveis da fé e os ritos que devem ser observados com respeito aos sacramentos da Igreja. Portanto, decretamos e ordenamos, com o fim de que a plenitude da fé brilhe num futuro Pontífice Romano com singular esplendor desde o primeiro momento enquanto Papa, em diante, aquele que será elegido Romano Pontífice deverá fazer a seguinte confissão e profissão publicamente.” (Trigésima nona sessão de 9 de Outubro de 1417, ratificado pelo Papa Martinho V).
Na mesma sessão, o Concílio de Constança decretou que qualquer Papa recém-eleito deveria fazer um juramento de fé, propondo-se a seguinte fórmula, da qual citamos os pontos mais importantes:
“Eu, N., eleito Papa, com coração e boca confesso e professo a Deus todo-poderoso, que crerei firmemente e manterei a fé católica segundo as tradições dos apóstolos, dos concílios gerais e de outros santos padres. Conservarei esta fé sem alterações até ao último ponto e confirmá-la-ei, defendê-la-ei e pregá-la-ei até ao ponto da morte e derramamento do meu sangue, e seguirei e observarei em todo sentido o rito transmitido dos sacramentos eclesiásticos da Igreja Católica.”
Tal juramento papal apresenta-se muito oportuno e é muito urgente pô-lo em prática, especialmente nos dias que correm! O Papa não é um monarca absoluto, que pode fazer e dizer o que lhe convém, que pode ajustar a doutrina ou a liturgia ao seu próprio querer. Desafortunadamente, nos séculos passados, contrariamente à tradição apostólica dos tempos antigos, o comportamento dos papas como monarcas absolutos ou como semi-deuses foi aceite geralmente na medida em que deu forma a pontos de vista teológicos e espirituais da maioria prevalecente dos bispos e fieis, e especialmente da gente piadosa. O facto de que o Papa deve ser o primeiro na Igreja que deve evitar as novidades, obedecendo de maneira exemplar à tradição da Fé e da Liturgia, foi por vezes eliminada da consciência dos bispos e dos fieis por uma aceitação cega e piadosa de um absolutismo papal.
O juramento papal do Liber Diurnus Romanorum Pontificum considera que a obrigação principal e a qualidade mais distinta de um novo Papa é a sua fidelidade inquebrável à tradição, uma vez que lhe foi transmitida por todos os seus predecessores: “Nihil de traditione, quod a probatissimis praedecessoribus meis servatum reperi, diminuere vel mutare, aut aliquam novitatem admittere; sed ferventer, ut vere eorum discipulus et sequipeda, totis viribus meis conatibusque tradita conservare ac venerari” (“não alterarei nada da Tradição recebida, e nada do que encontrei posterior a mim, custodiado pelos meus veneráveis predecessores, não interferirei, nem mudarei, nem permitirei qualquer inovação na mesma; com afecto radiante, como seu verdadeiramente fiel discípulo e sucessor, salvaguardarei com reverência o bem transmitido, com toda a minha força e máximo esforço”).
O mesmo juramento papal nomeou, em termos concretos, fidelidade à lex credendi (a Regra da fé) e à lex orandi (a Regra da oração). A respeito da lex credendi (a Regra de Fé, o texto do juramento diz:
“Verae fidei rectitudinem, quam Christo autore tradente, per successores tuos atque discipulos, usque ad exiguitatem meam perlatam, in tua sancta Ecclesia reperi, totis conatibus meis, usque ad animam et sanguinem custodire, temporumque difficultates, cum tuo adjutorio, toleranter sufferre” (“Prometo manter com todas as minhas forças, até à morte e derramamento de meu sangue, a integridade da verdadeira fé, cujo autor é Cristo e que através de seus sucessores e discípulos foi me entregue, humilde servo, e que encontrei na Sua Igreja. Prometo também suportar com paciência as dificuldades da época”).
A respeito da lex orandi, o juramento papal diz:
“Disciplinam et ritum Ecclesiae, sicut inveni, et a sanctis praecessoribus meis traditum reperi, illibatum custodire.” (“Prometo manter a disciplina e a liturgia da Igreja tal como as encontrei e como me foram transmitidas por meus predecessores”).
Nos últimos cem anos, houve alguns exemplos espectaculares de um absolutismo litúrgico papal. Quando consideramos as mudanças radicais na lex orandi, houve alterações drásticas realizadas pelos Papas Pio X, Pio XII e Paulo VI e, em relação com a lex credendi, pelo Papa Francisco.
Pio X foi o primeiro Papa na história da Igreja Latina a realizar uma reforma radical da ordem da salmodia (cursus psalmorum) que teve como resultado a construção de um novo tipo de Ofício Divino com respeito à distribuição dos salmos. O seguinte caso foi o Papa Pio XII, que aprovou para o uso litúrgico uma versão latina radicalmente cambiada dos milenários e melodiosos textos o Saltério da Vulgata. A nova tradução para latim, o chamado “Saltério Piano”, era um texto artificialmente fabricado por académicos e, em sua artificialidade, dificilmente podia ser pronunciado. Esta nova tradução latina, acertadamente criticada com o adagio “accessit latinitas, recessit pietas”, foi de facto rejeitada por toda a Igreja no pontificado do Papa João XXIII. O Papa Pio XII também alterou a liturgia da Semana Santa, um tesouro litúrgico da Igreja de milénios de antiguidade, ao introduzir ritos inventados parcialmente ex novo. Os verdadeiros câmbios litúrgicos sem precedentes, porém, foram executados pelo Papa Paulo VI com a reforma revolucionaria do rito da Missa e do rito de todos os outros sacramentos, uma reforma litúrgica de tal radicalidade nenhum Papa antes ousou efectuar.
Uma alteração teologicamente revolucionária foi levada a cabo pelo Papa Francisco no momento em que aprovou a prática de algumas igrejas locais de admitir a Sagrada Comunhão, em casos excepcionais e particulares, a adúlteros sexualmente activos (que coabitam nas chamadas “uniões irregulares”). Ainda que estas normas locais não representem uma norma geral na Igreja, significam, contudo, uma negação, na prática, da verdade da indissolubilidade absoluta do matrimónio sacramental rato e consumado. Outra modificação radical na doutrina consiste na mudança da doutrina bíblica e da doutrina tradicional bimilenária em relação com o princípio da legitimidade da pena de morte. A seguinte alteração doutrinal representa a aprovação do Papa Francisco da frase no documento inter-religioso de Abu Dhabi de 4 de Fevereiro de 2019, que estabelece que a diversidade dos sexos, das nações e das religiões correspondem à sábia vontade de Deus. Esta formulação como tal necessita uma correção papal oficial; caso contrário, constituiria uma evidente, contradição do Primeiro Mandamento do Decálogo e do ensinamento inequívoco e explícito de Nosso Senhor Jesus Cristo, contradizendo, portanto, a Revelação Divina.
Neste contexto é impressionante e pensativo o episódio narrado na vida do Papa Pio IX, que, perante a petição de um grupo de bispos para fazer uma ligeira alteração no Cânone da Missa (introduzindo o nome de São José), respondeu: “Não posso fazê-lo. Sou apenas o Papa!
A seguinte oração de Dom Prosper Guéranger, na qual se elogia o Papa São Leão II pela árdua defesa pela integralidade da Fé depois da crise causada pelo Papa Honório I, deveria ser rezada por cada Papa e todos os fieis, especialmente nos nossos tempos:
“São Leão, mantém o pastor por cima da região dos nevoeiros traidores que sobem da Terra; conserva ao rebanho esta oração da Igreja que deve recorrer continuamente a Deus por ele (Actos 13, 5), e Pedro, ainda que tenha sido enterrado no fundo dos cárceres mais escuros, não cessará de contemplar o brilho claro do Sol de justiça; e todo o corpo da Santa Igreja estará na luz. Porque diz Cristo: o olho ilumina o corpo; se o olho é puro, todo o corpo resplandecerá (Mt 6, 22). Agora já conhecemos a consistência da rocha que sustém a Igreja; sabemos que as portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16, 18). Porque jamais o esforço destes poderes do abismo chegou tão longe como na triste crise [do Papa Honório] à qual tu puseste fim; agora bem, o seu êxito, por muito doloroso que fosse, não estava contra as promessas divinas: a assistência infalível do Espírito de verdade não se restringiu ao silêncio [o apoio da heresia da parte do Papa Honório] de Pedro, mas ao seu ensinamento.” (El Año Litúrgico, Burgos 1955, vol. 4, pp. 533-534)
O caso extremamente raro de um Papa herético ou semi-herético deve ser suportado e sofrido em última instância à luz da fé no carácter divino e na indestrutibilidade da Igreja e do Ofício de Pedro. O Papa São Leão Magno formulou esta verdade, dizendo que a dignidade de São Pedro não está diminuída nos seus sucessores, por mais indignos que possam ser: “Cuius dignitas etiam in indigno haerede non deficit” (Serm. 3, 4).
Poderia haver uma situação verdadeiramente extravagante de um Papa que praticasse abuso sexual de menores ou subordinados no Vaticano. Que deveria fazer a Igreja na referida situação? Deveria a Igreja tolerar um Papa abusador sexual de menores ou subordinados? Por quanto tempo deve a Igreja tolerar um Papa assim? Deveria perder o papado ipso facto devido ao abuso sexual de menores ou subordinados? Em tal situação, poder-se-ia originar uma nova teoria ou opinião canónica ou teológica de permitir a deposição de um Papa e a perda de seu cargo devido a delitos morais monstruosos (por exemplo, abuso sexual de menores e subordinados). Tal opinião seria um equivalente da opinião que permite a deposição de um Papa e a perda do seu cargo por heresia. Não obstante, a dita nova teoria ou opinião (deposição de um Papa e a perda do seu cargo por delitos sexuais) seguramente não corresponderia à mente e prática perenes da Igreja.
A tolerância de um Papa herético como uma cruz não significa passividade ou aprovação das suas más ações. Devemos fazer todo o possível para remediar a situação de um Papa herético. Levar a cruz de um Papa herético não significa, em nenhuma circunstância, consentir as suas heresias ou ser passivo. Assim como as pessoas têm que suportar, por exemplo, um regime iníquo ou ateu como uma cruz (quantos católicos viviam sob um regime semelhante na União Soviética e suportavam esta situação como uma cruz com espírito de expiação), ou como os pais que têm de suportar como uma cruz um filho adulto, que se converteu num incrédulo ou imoral, ou como membros de uma família têm que suportar como uma cruz, por exemplo, um pai alcoólico. Os pais não podem “destituir” os filhos errantes de serem membros da sua família, assim como os filhos não podem destituir a seu pai errante de ser membro da família, ou do seu título de “pai”.
É mais seguro e conforme uma visão mais sobrenatural da Igreja não depor um Papa herético. Procedendo deste modo, com as suas contramedidas práticas e concretas, em nenhum ponto significa passividade ou colaboração com os erros Papais, mas sim um compromisso muito activo e uma verdadeira compaixão com a Igreja, que, durante um Papado herético ou semi-herético, experimenta as suas horas de Gólgota. Quanto mais um Papa difunda ambiguidades doutrinais, erros ou inclusive heresias, mais luminosamente brilhará a Fé Católica pura dos mais pequenos na Igreja: A Fé dos meninos inocentes, das irmãs religiosas, a Fé, especialmente das gemas ocultas da Igreja, as monjas de clausura, a fé de fieis leigos heroicos e virtuosos de todas as condições sociais, a fé de sacerdotes e bispos individuais. Esta chama pura da fé católica, constantemente alimentada por sacrifícios e actos de expiação, arderá mais que a cobardia, a infidelidade, a rigidez espiritual e a cegueira de um Papa herético.
A Igreja tem um carácter tão divino que pode existir e viver por um período limitado de tempo, apesar de um Papa herético reinante, precisamente pela verdade de que o Papa não é sinónimo ou idêntico à Igreja. A Igreja tem um carácter tão divino que inclusive um Papa herético não pode destrui-la, ainda que fira gravemente a vida da Igreja, mas a sua acção tem uma duração limitada. A Fé de toda a Igreja é maior e mais forte que os erros de um Papa herético e esta Fé não pode ser derrotada, nem sequer por um Papa herético. A perseverança de toda a Igreja é maior e mais firme que o desastre relativamente breve de um Papa herético. A rocha verdadeira sobre a que reside a indestrutibilidade da fé e a santidade da Igreja é o mesmo Cristo, sendo o Papa somente seu instrumento, como cada bispo e sacerdote é somente um instrumento de Cristo Sumo Sacerdote.
O vigor doutrinal e moral da Igreja não depende exclusivamente do Papa, já que por lei divina a vitalidade doutrinal e moral da Igreja está garantida em situações extraordinárias de um Papa herético pela fidelidade da docência dos bispos e, em última instância, também pela fidelidade da totalidade dos fieis leigos, como o Beato John Henry Newman e a História o demonstram suficientemente. O vigor moral e doutrinal da Igreja não depende, no dado caso, a tal ponto dos erros doutrinais relativamente curtos de um só Papa que renda vacante a Sede Papal. A Igreja pode suportar um tempo sem Papa, como já ocorreu na História por um período de inclusive vários anos. A Igreja é tão forte pela constituição divina que também pode suportar um Papa herético de curta duração.
O acto de deposição de um Papa por heresia, ou declará-lo vacante da sua cátedra por perda do papado ipso facto por heresia, seria uma novidade revolucionária na vida da Igreja, e tem que ver com um tema muito importante da constituição e a vida da Igreja. Temos que seguir, dado ser um assunto tão delicado, inclusive se é de natureza prática e não estritamente doutrinal, o modo mais seguro (via tutior) do sentido perene da Igreja. Apesar do facto de três concílios ecuménicos sucessivos (o Terceiro Concílio de Constantinopla em 681, o Segundo Concílio de Niceia em 787 e o Quarto Concílio de Constantinopla em 870) e o Papa São Leão II, em 682, terem excomungado o Papa Honório I por heresia, estes não declararam, nem sequer implicitamente, que Honório tinha perdido o papado ipso facto por heresia. De facto, o pontificado do Papa Honório I foi considerado válido, inclusive, depois de ter apoiado a heresia nas suas cartas ao Patriarca Sérgio, em 634, uma vez que reinou depois de isso outros quatro anos até o ano 638.
O seguinte princípio, formulado pelo Papa São Estevão I (+ 257), ainda que num contexto diferente, deve ser um guia para tratar o tema altamente delicado e raro de um Papa herético: “Nihil innovetur, nisi quod traditum est”, isto é”: “Que não haja inovação para além do que se tem transmitido”.
21 de Março de 2019
+ Athanasius Schneider, bispo auxiliar da arquidiocese de Santa Maria em Astana
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