Nas suas Confissões, Santo Agostinho conta a história de um amigo que, por virtude, se recusava terminantemente a ir aos espectáculos de gladiadores, em Roma. Os romanos tinham espectáculos de circo em que os homens lutavam uns contra os outros; de anfiteatro em que combatiam homens contra feras; e de teatro, em que se representavam as histórias dos deuses. Aqui trata-se de espectáculos de anfiteatro em que havia quase sempre mortos. Porém, uma vez consentiu em ir, mas disse que estaria de olhos fechados. O resto da história é uma lição de vida:
Detestava ao
principio, por completo, tais divertimentos. Uma vez, alguns amigos e
condiscípulos, ao voltarem dum jantar, encontraram-no por acaso no caminho e
levaram-no com amigável violência ao anfiteatro, a assistir aos jogos cruéis e
funestos daquele dia. Ele recusava com veemência e resistia, dizendo: «Por
arrastardes a esse lugar e lá colocardes o meu corpo, julgais que podereis
fazer com que o espírito e os olhos prestem atenção aos espectáculos?
Assistirei como ausente, saindo assim triunfante de vós e mais dos
espectáculos».
Ouvindo estas
palavras, levaram-no ao anfiteatro, sem mais demora, com o desejo, talvez, de
observar se era capaz de cumprir a promessa. Apenas lá chegaram, ocuparam os
lugares que puderam. Tudo fervia nas paixões mais selvagens. Ele, fechando as
portas dos olhos, proibiu ao espírito de cair em tais crueldades. Oxalá tivesse
também tapado os ouvidos! Num incidente da luta, um grande clamor saído de toda
a multidão sobressaltou-o terrivelmente: vencido pela curiosidade e julgando-se
preparado para desprezar e dominar a cena, fosse qual fosse, abriu os olhos.
Imediatamente foi ferido na alma por um golpe mais profundo do que o que havia
recebido no corpo o gladiador a quem desejou contemplar. Caiu mais
miseravelmente do que aquele por cuja queda se tinha levantado o clamor.
Entrou-lhe este pelos ouvidos e abriu-lhe os olhos, por onde foi ferida e
abatida a alma, até então mais audaz que corajosa e tanto mais fraca quanto
mais presumida de si mesma, em vez de confiar em Vós, como devia. Logo que viu
o sangue, bebeu simultaneamente a crueldade. Não se retirou do espectáculo,
antes se fixou nele. Sem o saber, sorvia o furor popular, deleitava-se no
combate criminoso e inebriava-se no prazer sangrento.
Já não era o mesmo que
tinha vindo, mas um da turba a que se ajuntara, um verdadeiro companheiro
daqueles por quem se deixara arrastar. Que mais direi? Presenciou, gritou, apaixonou-se
e trouxe de lá um ardor tão louco que o incitava a voltar, não só com os que o
haviam arrastado, mas indo à sua frente e arrastando os outros.
Santo Agostinho in Confissões - Livro Sexto
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