Morreu há dois dias Christopher Tolkien, terceiro filho do famoso autor da obra "Senhor dos Anéis", J.R.R Tolkien. Publicamos parte de uma carta que Tolkien escreveu ao seu filho Christopher - entre os dias 6 e 8 de Março de 1941 - sobre a amizade e relações entre homens e mulheres:
Os relacionamentos de um homem com as mulheres podem ser puramente físicos (na verdade não podem, é claro, mas quero dizer que ele pode recusar-se a levar outras coisas em consideração, para o grande dano da sua alma e corpo e delas); ou “amigáveis”; ou ele pode ser um “amante” (empenhando e combinando todos os seus afectos e poderes de mente e corpo numa emoção complexa poderosamente colorida e energizada pelo “sexo”).
Este é um mundo decaído. A desarticulação do instinto sexual é um dos principais sintomas da Queda. O mundo tem “ido de mal a pior” ao longo das eras. As várias formas sociais mudam, e cada novo modo tem os seus perigos especiais: mas o “duro espírito da concupiscência” vem caminhando por todas as ruas, e instalou-se em todas as casas, desde que Adão caiu.
Neste mundo decaído, a “amizade” que deveria ser possível entre todos os seres humanos é praticamente impossível entre um homem e uma mulher. O diabo é incessantemente engenhoso, e o sexo é o seu assunto favorito. Ele é da mesma forma bom tanto em cativá-lo através de generosos motivos românticos, ou ternos, quanto através daqueles mais vis ou mais animais.
Essa “amizade” tem sido tentada com frequência: um dos dois lados quase sempre falha. Mais tarde na vida, quando o sexo esfria, tal amizade pode ser possível. Ela pode ocorrer entre santos. Para as pessoas comuns ela só pode ocorrer raramente: duas almas que realmente possuam uma afinidade essencialmente espiritual e mental podem acidentalmente residir num corpo masculino e num feminino e ainda assim podem desejar e alcançar uma “amizade” totalmente independente de sexo.
Porém, ninguém pode contar com isso. O outro parceiro(a) irá desapontá-la(-lo), é quase certo, ao “apaixonar-se”. Mas um rapaz realmente não quer (via de regra) “amizade”, mesmo que ele diga que quer. Existem muitos rapazes (via de regra). Ele quer amor inocente, e talvez ainda irresponsável. Ail Ail que sempre o amor foi pecado!, como diz Chaucer. Então, se ele for cristão e estiver ciente de que existe o pecado, ele desejará saber o que fazer a respeito disso.
Há, na nossa cultura ocidental, a romântica tradição cavalheiresca ainda forte, apesar de que, como um produto da cristandade (porém de modo algum o mesmo que a ética cristã), os tempos são hostis a ela. Tal tradição idealiza o “amor” — e, ademais, ele pode ser muito bom, uma vez que abrange muito mais do que prazer físico e desfruta, se não de pureza, pelo menos de fidelidade, e abnegação, “serviço”, cortesia, honra e coragem. A sua fraqueza, sem dúvida, é que ele começou como um jogo artificial de cortejo, uma maneira de desfrutar o amor por si só sem referência (e, de facto, contrário) ao matrimónio.
O seu centro não era Deus, mas divindades imaginárias, o Amor e a Dama. Ele tende ainda a tornar a Dama uma espécie de divindade ou estrela guia — do antiquado “sua divindade” = a mulher que ele ama — o objecto ou a razão de uma conduta nobre. Isso é falso, é claro, e na melhor das hipóteses fictício. A mulher é outro ser humano decaído com uma alma em perigo. Mas, combinado e harmonizado com a religião (como o era há muito tempo, quando produziu boa parte daquela bela devoção à Nossa Senhora, que foi o modo de Deus refinar em muito nossas grosseiras naturezas e emoções masculinas, e também de aquecer e colorir nossa dura e amarga religião), tal amor pode ser muito nobre. Ele produz então o que suponho que ainda seja sentido, entre aqueles que mantêm ainda que um vestígio de cristianismo, como o ideal mais alto de amor entre um homem e uma mulher.
Porém, eu ainda acho que ele possui perigos. Ele não é completamente verdadeiro e não é perfeitamente “teocêntrico”. Leva (ou, de qualquer maneira, levou no passado) o rapaz a não ver as mulheres como elas realmente são, como companheiras num naufrágio, e não como estrelas guias. (Um resultado observado é que na verdade ele faz com que o rapaz se torne cínico.) Leva-o a esquecer os desejos, necessidades e tentações delas.
Impõe noções exageradas de “amor verdadeiro”, como um fogo vindo de fora, uma exaltação permanente, não-relacionado à idade, à gestação e à vida simples, e não-relacionado à vontade e ao propósito. (Um resultado disso é fazer com que os jovens — homens e mulheres — procurem por um “amor” que os manterá sempre bem e aquecidos num mundo frio, sem qualquer esforço da parte deles; e o romântico incurável continua procurando até mesmo na sordidez das cortes de divórcio).
Christopher Tolkien, não Christian. Mas bom post.
ResponderEliminarObrigado, caro anónimo.
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