Pode haver visões ou aparições? Como se distinguem? E que aconteceu em
Fátima? Foram aparições ou simplesmente visões?
O filósofo francês Jean Guitton (1901-1999),
num livro intitulado Os misteriosos poderes da fé, escrito em
diálogo com o jornalista e escritor Jean-Jacques Antier, (edição francesa de
1997 e tradução portuguesa de 2000), observa que as pessoas com fé tendem a
admitir que as visões ou aparições são possíveis e que até já aconteceram
muitas vezes, ao passo que os descrentes ou cépticos dirão que não têm qualquer
consistência ou realidade, nem sequer podem existir. Para estes, aquilo a que
chamamos visão ou aparição não é mais do que um estado doentio em que o
protagonista se apercebe de uma sensação sem que esta tenha nenhuma causa real
na sua origem. Para os crentes, porém, a aparição ou visão é uma experiência
real (p. 283 da edição portuguesa).
Admitindo que possam existir, como se
distinguem «visões» de aparições»?
O mesmo filósofo distingue entre visões
exteriores e visões interiores. “As visões exteriores, ou visões sensíveis, ou
aparições, implicam a representação de uma entidade sobrenatural – por exemplo
a Virgem Maria – sob uma forma percetível aos sentidos”. Aqui, “o objeto
apresenta-se no espaço real e aqueles que acompanham o vidente podem vê-lo ou
não. Pelo contrário, as visões interiores são circunscritas exclusivamente à
consciência do vidente, e as eventuais testemunhas não as vêem” (p. 284).
A distinção essencial é, portanto, entre
“visão interior, cujo objeto está circunscrito à consciência do sujeito, e a
visão exterior (ou aparição), cujo objeto se apresenta sensivelmente no espaço
real” (p. 285).
O teólogo francês Louis Bouyer, no seu Dicionário
de Teologia, define assim o conceito de aparição: “Chama-se aparição a uma
manifestação de Deus, dos anjos ou até de seres humanos que já morreram,
(santos ou não), que se apresenta de uma forma que impressiona os sentidos”. E
conclui: “Deus, os anjos e os santos podem manifestar-se a nós, se tal for a
vontade divina, tanto por uma simples impressão sobrenatural feita sobre a nossa
imaginação, como pela apresentação objetiva aos nossos sentidos de uma
realidade corporal ou material de origem milagrosa” (trad. espanhola de 1990,
p. 84).
E em Fátima, para aqueles que acreditam,
houve visões ou aparições?
O filósofo português Carlos Henrique do Carmo
Silva, num artigo publicado por ocasião do 80º aniversário dos acontecimentos
de Fátima (“Aparições e experiências místicas: reflexão sobre o fenómeno de
Fátima e contributo para uma sua renovada meditação espiritual”, Didaskalia, Lisboa
1998), caracteriza o que aqui aconteceu como “um celeste contacto” (p. 21),
expressão que, só por si, alude à mesma “realidade objetiva” de que falam os
autores anteriormente citados.
Uma aparição é, portanto, “um celeste
contacto”, que ali está, “no espaço exterior”, sob a forma de “uma realidade
corporal ou material”, mas indubitavelmente – e nem poderia ser de outra
maneira – “de origem milagrosa”.
Assim sempre se considerou terem sido os
acontecimentos de Fátima: isto é, “aparições”, e não simplesmente “visões” da
Virgem Santa Maria.
“Na idílica, porém rústica, paisagem da Cova
da Iria, como já nos Valinhos, e no pastoreio a que se dedicavam Lúcia,
Francisco e Jacinta, surgem recortes de uma outra Presença que lhes aparece e
se torna sensível”. Assim resume Carlos Henrique do Carmo Silva
estes acontecimentos, fazendo notar logo de seguida que “se toma aqui a
aparição não como uma visão (de diversas «imagens invisíveis», de um magma
fantasmático, ou de uma clarividência confusa, semelhante à da consciência
onírica...), mas na acepção do aparecer visível de uma figura, um recorte
presencial que distintamente se sobrepõe ao regime do mundo da percepção
habitual” (p. 37 e nota 82).
As aparições de Fátima são esta presença
objetiva e exterior da Virgem, manifestada aos três Videntes, presença tão
objetiva como a das árvores ou das casas, ou das próprias ovelhas que
pastoreavam, distinta destas ou de quaisquer outras realidades, porém, por ser
sobrenatural e de origem miraculosa.
Em sentido contrário, porém, temos um texto
assinado pelo Cardeal J. Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, ao tempo Prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, sob o título de Comentário Teológico,
e incluído num conjunto de Documentos sobre «A Mensagem de Fátima»,
com data de 26 de Junho de 2000.
O Comentário começa por recordar a distinção
perfeitamente tradicional entre os três tipos de visões:
“A antropologia teológica distingue, neste
âmbito, três formas de percepção ou «visão»: a visão pelos sentidos, ou seja, a
percepção externa corpórea; a percepção interior; e a visão espiritual”.
Mas, depois de ter reconhecido a existência
de três tipos de visão, o Comentário limita consideravelmente o seu alcance,
pois, segundo ele, quer a visão seja interna ou externa, o vidente deforma
necessariamente o que viu.
O Comentário exclui em seguida
categoricamente que os acontecimentos de Fátima (ou de Lourdes) possam ser
visões exteriores ou sensíveis, e classifica-as deliberadamente entre as visões
interiores:
“É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima,
etc., não se trata da perceção externa normal dos sentidos: as imagens e as
figuras vistas não se encontram fora no espaço circundante, como está lá, por
exemplo, uma árvore ou uma casa”.
Para o provar, dá um exemplo que parece
incontestável:
“Isto é bem evidente, por exemplo, no caso da
visão do inferno (descrita na primeira parte do «segredo» de Fátima) ou então
na visão descrita na terceira parte do «segredo».
Mas também não se tratou de uma simples visão
espiritual ou intelectual:
“De igual modo, é claro que não se trata duma
«visão» intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da mística.
Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a perceção interior que, para o
vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa
sensível”.
E acrescenta:
“Este ver interiormente não significa que se
trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação subjetiva.
Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas que está
para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível
aos sentidos: uma visão através dos «sentidos internos». Trata-se de
verdadeiros «objetos» que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo sensível
que nos é habitual. (…) A pessoa é levada para além da pura exterioridade, onde
é tocada por dimensões mais profundas da realidade que se lhe tornam visíveis”.
E insiste:
(…) As imagens por eles [os pastorinhos de
Fátima] delineadas (…) também não se hão de imaginar como se por um instante se
tivesse erguido a ponta do véu do Além, aparecendo o Céu na sua essencialidade
pura, como esperamos vê-lo um dia na união definitiva com Deus”.
O Comentário nega, portanto, a realidade dos
fenómenos exteriores, e não vê, nas visões de Fátima, senão uma percepção
interior dos videntes. Para ele, em Fátima como em Lourdes, as figuras vistas
pelos videntes não se encontram exteriormente no espaço!
A descrição da Virgem pelas crianças não
seria, portanto, mais do que uma imagem daquilo que eles captaram interiormente.
Por outras palavras, Nossa Senhora não teria vindo a Fátima: os visitantes não
tiveram senão uma percepção interior da sua presença.
Esta leitura do Cardeal Ratzinger pode ser
contestada?
Pode, claramente, em primeiro lugar porque,
embora seja um texto oficial da Congregação para a Doutrina da Fé, não é uma
“Instrução” nem uma “Notificação”, como tantas que o Cardeal Ratzinger assinou,
recebendo depois a aprovação do Papa, que ordena em seguida a sua publicação.
Veja-se como termina, por exemplo, uma “Instrução sobre as orações para
alcançar de Deus a cura”, publicada em 14 de Setembro de 2000: “O Sumo
Pontífice João Paulo II, na Audiência concedida ao abaixo-assinado Prefeito,
aprovou a presente Instrução, decidida na reunião ordinária desta Congregação,
e mandou que fosse publicada”.
Este modo solene de conclusão com a aprovação
papal não existe neste caso, o que se compreende, porque o texto em apreço não
pretende ser mais do que um “Comentário”, que intencionalmente não se reveste
de especial autoridade no âmbito do Magistério da Igreja. Será legítimo,
portanto, se houver razões para isso, pensar de modo diferente ou até discordar
sobre matérias que nele se abordam, sem prejuízo do grande respeito que nos
merecerá sempre o seu Autor.
Julgo, porém, que existem muitas razões para
discordar da classificação dos acontecimentos de Fátima neste género
intermédio, isto é, como sendo simples visões interiores, ainda que genuínas e
de origem sobrenatural.
A verdade é que a Ir. Lúcia era de uma
opinião totalmente contrária: ela estava certa de ter visto realmente a Virgem
Maria, como esperava um dia vê-la no Céu. Em 1924, na comissão de inquérito
canónico, foi-lhe feita esta pergunta: “Tens a certeza de que viste realmente
uma Senhora em cima da carrasqueira e de que não te enganaste?”
E Lúcia respondeu: “Tenho a certeza de que a
vi e de que não me enganei; ainda que me matassem, ninguém me faria dizer o
contrário”.
“E quem era essa Senhora?”
Respondeu: “Antes de ela dizer que era a
Senhora do Rosário, não sabia quem era; agora estou convencida de que era Nossa
Senhora” (Documentação Crítica de Fátima, doc. 82, p. 324).
No decurso da sua vida, a Ir. Lúcia não teve
só visões sensíveis ou aparições, mas foi sujeita aos três tipos de visões
acima referidos. As inspirações que receberá do Céu em resposta às suas
interrogações serão frequentemente uma perceção interior. Já a visão de Tuy (13
de Junho de 1929) deverá, pelo contrário, integrar-se no segundo tipo, pois a
Ir. Lúcia diz que viu, e não há nenhuma razão para duvidar do seu testemunho.
Mas as personagens ou objetos desta imagem não estavam presentes fisicamente,
em particular Deus Pai: portanto, dificilmente pode tratar-se de uma visão
sensível.
A visão do inferno pode igualmente ser
inserida nesta categoria, visto que, como nota o Comentário do Cardeal
Ratzinger, o fogo não se ateou na Cova da Iria! Claro que o inferno não esteve,
fisicamente, diante dos pequenos videntes: eles viram-no graças àquela luz que
emanava das mãos da Virgem.
Mas o facto de a visão do inferno ser da categoria
das visões imaginativas, não prova que o resto da visão o seja, pois, como diz
Adolfo Tanquerey, numa obra clássica sobre o assunto, nada impede que haja
diversas percepções diferentes no decurso de uma mesma aparição. Esta dupla
percepção já se produziu, aliás, na primeira aparição de 13 de Maio de 1917.
Pelo reflexo vindo das mãos da Virgem, os pastorinhos viram-se em Deus: esta
visão é muito provavelmente uma visão interior, que vem acrescentar-se à visão
sensível da Senhora. Nas aparições de 1917, é fácil discernir as visões
interiores, pois elas são precedidas de um gesto de abertura das mãos da Virgem
e por um raio de luz que emana das suas mãos, como para materializar a graça da
visão dada.
Mas as visões de Nossa Senhora são
seguramente visões sensíveis. É seguro que a Virgem Maria apareceu aos
pastorinhos sob uma forma exterior sensível. O carácter ofuscante das aparições
é também uma prova da realidade do corpo glorioso da Santíssima Virgem. A Lúcia
foi muitas vezes obrigada a baixar os olhos, tão viva era a luz que emanava da
Virgem. O Cón. Formigão perguntou-lhe:
– Por que razão não raro baixas os olhos
deixando de fitar a Senhora?
– É que ela às vezes cega (Documentação
Crítica de Fátima, p. 58)
Na narrativa que fez da aparição de 13 de
Outubro, disse:
“Veio no meio dum esplendor. Desta vez também
cegava. De vez em quando eu tinha de esfregar os olhos” (J. de Marchi, Era
uma Senhora mais branca que o sol, p. 177).
Também os fenómenos físicos que acompanharam
os acontecimentos de Fátima e foram observados por numerosas testemunhas, não
podem ser frutos de uma visão imaginativa. O seu número é impressionante. Esses
fenómenos exteriores manifestam sem qualquer dúvida possível a presença
efectiva de uma pessoa celeste.
Não só os videntes, mas também muitos
daqueles que tiveram a graça de assistir (exteriormente) às aparições
observaram esses fenómenos físicos, e isto em todas as aparições e não somente
por ocasião do milagre do sol. Em parte nenhuma fora de Fátima, a Virgem rodeou
a sua vinda e autenticou a sua presença de tantos sinais tão extraordinários. E
essas testemunhas eram particularmente numerosas: cerca de 50 na 2ª aparição, 3
a 4000 na 3ª, 18 a 20.000 na 4ª, 25 a 30.000 na 5ª e cerca de 70.000 na última,
estando alguns por vezes a vários quilómetros do lugar das aparições!
Por ocasião dos acontecimentos de Fátima, as
testemunhas mais próximas puderam observar diversos fenómenos dificilmente
atribuíveis a visões interiores. Mas outros fenómenos puderam ser observados
por um grande número de testemunhas exteriores.
Foram eles os seguintes:
I
– Relâmpagos, que sempre antecedem as Aparições. Trovões, no momento preciso da
Aparição, ou no seu termo, e cuja origem parecia provir da azinheira.
II – Curvatura do
arbusto, como se tivesse estado coberto por um manto, e com as folhas todas
inclinadas na mesma direcção (na segunda Aparição).
III – Perfume, de essência nova
e desconhecida, evolando-se do ramo da azinheira cortado dos Valinhos, e
sentido pela senhora Maria Rosa e circunstantes, após a quarta Aparição.
IV – Nubescente globo luminoso,
avançado de Este para Oeste, e deslizando majestosamente através do espaço, até
tocar a azinheira (na quinta Aparição).
V
– Nuvem branca ou matizada, e de vista agradabilíssima, que várias vezes se
formou em torno dos Videntes, com vaporizações de fumo ascendente até cinco ou
seis metros de altura. E, isto, por três vezes bem distintas, na mesma Aparição.
VI
– Chuva evanescente de rosas, com rosinhas brancas, maiores vistas de longe, e
que, pouco a pouco, se vão tornando mais pequenas, com o aproximarem-se do
chão, até desaparecendo de todo.
VII
– Diminuição da luz solar em pleno meio-dia, sem nuvens nem eclipses. Viam-se a
Lua e as estrelas. Este fenómeno verificou-se em todas as Aparições, à excepção
da última. Quanto à primeira Aparição, não se sabe.
VIII
– Milagre do Sol, que, segundo os testemunhos, consta de três fases:
a) O Sol torna-se opaco, com reflexos de
madrepérola; pode-se fixar sem dificuldade, havendo ausência absoluta de nuvens
e de eclipse;
b) Irradiações de cores, com rotação em
feixes irisados que se difundem por todo o céu, semelhantes a fogo-de-artifício,
c) Movimento do disco solar, como que
aumentando, ao princípio e dando a sensação de se precipitar sobre a terra; em
seguida, movimento de translação do disco sobre o firmamento, de relance, tanto
em linha rectilínea, como quebrada.
“Em geral, podemos dividir, em duas classes,
todos estes fenómenos: a primeira consta de fenómenos instantâneos; a segunda,
de fenómenos estáveis. Os primeiros foram os relâmpagos e os trovões; os
segundos, todos os outros. Compreende-se desta forma que Fátima se tenha imposto
e triunfado..." (Sebastião Martins dos Reis, “Síntese crítica de Fátima”,
Junta Distrital de Lisboa, Boletim Cultural, 1987/68. p. 86-88).
O Cardeal J. Ratzinger foi eleito Papa em
2005. O seu pensamento sobre Fátima mudou?
Os seguintes pronunciamentos falam por si:
1. “Decorre hoje o nonagésimo aniversário das
APARIÇÕES de Nossa Senhora em Fátima. Com o seu veemente apelo à conversão e à
penitência é, sem dúvida, a mais profética das APARIÇÕES modernas. Vamos pedir
à Mãe da Igreja, Ela que conhece os sofrimentos e as esperanças da humanidade,
que proteja nossos lares e nossas comunidades”. (Papa Bento XVI, 13/5/2007)
2. "Prova disto mesmo é este lugar
bendito. Mais sete anos e voltareis aqui para celebrar o centenário da primeira
VISITA feita pela Senhora «vinda do Céu», como Mestra que introduz os pequenos
videntes no conhecimento íntimo do Amor Trinitário e os leva a saborear o
próprio Deus como o mais belo da existência humana." (Papa Bento XVI,
13/5/2010)
3. "Com a família humana pronta a sacrificar
os seus laços mais sagrados no altar de mesquinhos egoísmos de nação, raça,
ideologia, grupo, indivíduo, VEIO DO CÉU a nossa bendita Mãe oferecendo-Se para
transplantar no coração de quantos se Lhe entregam o Amor de Deus que arde no
seu. Então eram só três, cujo exemplo de vida irradiou e se multiplicou em
grupos sem conta por toda a superfície da terra, nomeadamente à passagem da
Virgem Peregrina, que se votaram à causa da solidariedade fraterna. Possam os
sete anos que nos separam do centenário das APARIÇÕES apressar o anunciado
triunfo do Coração Imaculado de Maria para glória da Santíssima Trindade. (Papa
Bento XVI, 13/5/2010)
4. «O meu pensamento vai para Nossa Senhora
de Fátima, de quem hoje recordamos a última APARIÇÃO. À Celeste Mãe de Deus vos
confio, caros jovens, para que possais generosamente responder à chamada do
Senhor.» (Papa Bento XVI, 13/10/2010).
Cónego José Manuel dos Santos Ferreira in Ad te levavi
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