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Ora escrevi eu, agora, uma palavra, que, com as suas cinco sílabas, põe
medo no coração de muita gente. Quando todos fogem de mortificar-se, venho eu,
aconselhá-la como um dos melhores elementos para a perfeição moral, como um dos
melhores instrumentos para a felicidade humana. E de facto, sem a mortificação
não quero dizer que a felicidade eterna seria impossível de alcançar, mas a
felicidade temporal de modo algum se poderia conseguir. A mortificação
voluntária é indispensável, tanto para uma como para a outra. Como
poderia apreciar-se a luz, se não houvesse trevas? Como se sentiria
alegria se nunca houvesse dores? E porque não privarmo-nos de uma para melhor a
apreciarmos depois; e como não procurarmos a outra, para melhor saborearmos a
sua oposta?
Mas o que é a mortificação? Esta palavra, no seu sentido etimológico,
significa “fazer morrer”. Não pensem, porém, que mortificar-se, seja matar-se,
inutilizar-se, enforcar-se, ou destruir a nossa natureza… Não. Pelo contrário,
a lei cristã ordena, que não nos matemos, nem total, nem parcialmente. Isso é
um gravíssimo pecado, que até priva, os que o cometem, da sepultura em lugar
sagrado e das orações da Igreja. Não, não se trata de um suicídio. A
mortificação não é para matar; é para aperfeiçoar a natureza. E na
verdade a mortificação guarda-a, purifica-a, melhora-a, robustece-a e torna-a
resoluta e constante para o bem. Porque vós muito bem sabeis que a nossa
natureza é uma natureza caída. Foi por Deus criada, em Adão e Eva, num estado
de perfeição do qual o pecado a fez cair.
Em vez daquela santa inclinação para o bem, que os nossos pais tiveram nos
primeiros dias do Paraíso – e que sem dúvida deles teríamos recebido, se não
fora a desgraça da sua desobediência, - temos agora dentro em nós esta
rebelião, esta fraqueza, estas grandessíssimas imperfeições, que tantas
desgraças nos acarretam. Basta olharmos dois instantes para dentro de nós
mesmos, para conhecer a verdade de tudo isto. Porque pessoa alguma há, que não
sinta dentro de si uma contradição enorme, um obstáculo perpétuo, uma preguiça
continua para o bem, e uma tentação contínua para o mal. Não é isto verdade? O
grande apóstolo S. Paulo deixou escritas estas palavras, que cada qual a si
mesmo pode, com igual verdade, aplicar: - “Não faço o bem que quero, faço o mal
que não quero. Sinto em meus membros uma lei que repugna à lei da minha razão,
que me arrasta, cativo, para o pecado.” Pois bem, o que a mortificação destrói,
não é a vida, não é a natureza, é esse grande defeito da vida e da natureza,
que a encaminha para o mal. A natureza humana, como dizia Tertuliano, é
naturalmente boa, e ainda dizia mais – é naturalmente cristã. Quer
dizer, tão boa, que quando não cede às tentações, por si mesma facilmente se
acomoda à moral cristã. São os defeitos, as paixões, as inclinações más, que a
levam ao pecado, ao crime, à imperfeição.
Mortificação, é, pois – o exercício salutar de enfraquecer, contradizer,
vexar e matar, até completamente destruir, todas essas más inclinações, que a
toda a hora promovem a nossa perda. Bem sabeis que todos temos, dentro de nós,
uns inimigos terríveis, que se chamam, a soberba, a ira, a inveja, a
avareza, a gula, a luxúria e a preguiça… Pois vencer essas paixões
que enchem de obstáculos o vosso caminho em direcção ao bem, eis o que se chama
mortificação. Quem não mortifica estas paixões, e se deixa ir ao sabor
dos seus impulsos, a razão fica obscurecida de tal sorte, que facilmente
descamba para a classe inferior, nivelando-se com os próprios irracionais. Tal
qual como eles, o homem, a mulher que não se mortifica, come, goza, procura os
bens desta vida, sem para coisa alguma se importar com o seu dever. O que mais
e melhor afaga os seus sentidos, eis o que o preocupa a todo o momento.
Quem é que faz caso de uma pessoa, que não se reprime, que não se vence,
que não se mortifica? Essa pessoa é incapaz de cumprir os seus deveres, de
viver a vida que a moral cristã impõe. Não é nada, não vale nada. Quem não se
mortifica, se é mau em si, na sociedade é detestável, é insuportável. Pois o
que requer a vida social, se não o sacrifício mútuo de quantos nela vivem,
obrigando todos e cada um, a ceder um tudo-nadinha, dos seus direitos, e dos
seus gostos, embora lícitos, em favor de todos os mais? As leis da urbanidade,
da cortesia, da delicadeza, que vigoram na sociedade, outra coisa não são,
senão leis de mortificação. Não as comparo, Deus me livre de as comparar. A
urbanidade mundana não é igual à mortificação cristã. E sabem
porquê? Porque a mortificação é por virtude, e a urbanidade é por conveniência.
A urbanidade é filha do desejo da própria comodidade, do bem parecer, do viver
agradavelmente. A mortificação é constante: a urbanidade dura enquanto dura a
sociedade e a conveniência. A mortificação cura ou refreia a
desordenada concupiscência. A urbanidade esconde-a, disfarça-a,
ensina-a a fingir. Finalmente, a mortificação é virtude e a urbanidade é
hipocrisia.
Não há
mortificação sem virtude. Sim, quem pratica a mortificação cristã,
facilmente adquire qualquer virtude. O que nos afasta da virtude é o
que nela nos custa. Não há ninguém que não deseje ser virtuoso. Todos nós
desejamos ser humildes, fortes, honestos, justos, praticar a caridade,
constância, desprezo do mundo… E porque somos tudo isto? Porque custa, porque é
preciso a gente mortificar-se. Mais nada. É o único obstáculo, se nos
mortificar-nos, desaparece o obstáculo, e eis-nos no caminho da virtude, a
virtude é como a relva, que cresce e atapeta a terra, onde não encontra
obstáculos. Assim cresce e adorna a nossa alma, a virtude quando os obstáculos
desaparecem. A virtude é a esposa querida do espírito humano, que não o deixa,
enquanto ele não a expulsa de si, e que quanto mais lhe abre o coração, tanto
mais nele se enraíza. A virtude brota espontaneamente no coração da pessoa que
se mortifica.
Virtude sem
mortificação também é coisa que não há. O homem não nasce virtuoso. Numerosos
defeitos e suas inclinações, nascem com ele, e com ele se desenvolvem pelos
tempos adiante. Só vencendo-as, esmagando-as, matando-as, é que pode chegar à
virtude. A mortificação é o caminho da perfeição.
Duas espécies de mortificação há: uma externa, outra interna. A externa
consiste na mortificação dos sentidos e das faculdades corporais. Tirar aos
sentidos todo o afago sensual que não tenha razão de ser e habituá-lo a sofrer
as asperezas e fadigas, - é mortificação. Nós devemos ter só temperança e
moderação, mas verdadeira mortificação na demasiada curiosidade do nosso olhar,
no prazer da música, no comer e beber… É preciso que a nossa natureza saiba
sofrer. A mortificação interna, consiste na mortificação das potências da alma.
Mortifica o seu entendimento, quem com intensidade o aplica ao conhecimento da
verdade, e principalmente da verdade útil e proveitosa para a vida eterna; -
quem o afasta da falsa doutrina e da curiosidade, que leva a gente direitinha
para o erro e para a heresia; - quem o educa de forma a aprender primeiro o
mais necessário, em seguida o útil, depois o agradável, mas nunca o ilícito.
Bom é saber muito. Mau é saber demasiado. Bom é adquirir conhecimentos, mau é
adquirir conhecimentos falsos. Mortifica a vontade, acostumando-a a
querer, não o que é agradável, mas o que é bom; a aborrecer, não o que
a desgosta, mas o que é mau. A mais necessária de todas é a mortificação da
vontade. Por ela seremos bons ou maus. Ela nos perde e ela nos salva.
Mortifiquemos,
pois, sobretudo, as nossas sete paixões: a soberba, a avareza, a luxúria, a
ira, a gula, a inveja e a preguiça, e principalmente, aquela que dentre todas
elas em nós sobressaia; Mortifiquemo-las, para que todas obedeçam à
razão, e a razão a Deus, e assim irmos andando no caminho da perfeição
espiritual, e podermos alcançar a felicidade do Céu.
Adaptado de: Padre
José Lourenço de Mattos in "O Paraíso do Cristão", 1914