sexta-feira, 5 de junho de 2020

Não é opinião, é dogma!

A conversão de John Henry Newman ao catolicismo caiu como uma bomba na Inglaterra do início da segunda metade do século XIX. O campeão do renovamento espiritual e reforma da Igreja anglicana desertava o seu campo e convertia-se ao seu pior inimigo: o Papa, a Igreja Católica Romana. Muito se disse e escreveu acerca desta conversão. Ele mesmo explicou-a como sendo a chegada ao porto depois de uma navegação atribulada por brumas e tempestades, mas sempre orientada pela busca da verdade.

Alguns dos seus biógrafos actuais têm apresentado esta passagem não tanto como a de uma adesão ao catolicismo, mas como a de uma “desconversão” do anglicanismo. Na minha opinião, não foi sobretudo a desilusão que levou São J.H. Newman a entrar na Igreja Católica, mas acredito que terá sido mais um estímulo para que procurasse fora da comunhão inglesa a verdadeira Igreja. O que desiludiu Newman no anglicanismo? O que deveria estar na Igreja verdadeira e que o nosso Santo não encontrava na Igreja inglesa?

A comunhão anglicana nasceu do compromisso entre o excesso dogmático de Roma e o excesso puritano de Wittenberg, Genebra e Zurique. A esse compromisso os teólogos ingleses deram o nome de via-média. O problema deste caminho foi que, aos poucos, na tentativa de integrar sob o mesmo chapéu correntes teológicas, tendências espirituais e litúrgicas muito díspares, a comunhão anglicana deixou de ser uma comunhão para ser uma amálgama de sensibilidades unidas apenas por umas formas litúrgicas e um certo “modo de fazer”.

Em 1845, aos olhos de Newman, para além de tudo isto, a comunhão inglesa era vítima de duas doenças mortais: o latitudinarismo, que punha todas as doutrinas, asserções e teologias à mesma latitude; e os liberais, no dizer de Newman, os que eram anti-dogmáticos por princípio. Estas duas atitudes, muito parecidas, acentuavam ainda mais o carácter indefinido da Igreja anglicana reduzindo-a a um organismo de Estado que trocou a santidade pelo civismo. Nesse tempo era difícil ver a presença do sagrado naquela comunhão, não havia santos, mártires ou confessores. Nesse tempo não havia, naquela Igreja, congregações missionárias, não havia mendicância nem ascése, não havia mosteiros nem místicos. 

Foi uma desilusão perceber que não havia Santos! Mas não foi a única.
Depois de ter escrito o primeiro Tract for the Times, Newman ficou estupefacto ao dar-se conta que alguns bispos já não acreditavam nem se consideravam sucessores dos Apóstolos. Ainda mais aterrado ficou quando o seu bispo lhe ralhou por ele pedir a uma rapariga - que queria casar-se na sua paróquia - que se baptizasse primeiro. Durante esse período, o mais famoso cardeal inglês descobriu que não havia sacramentos válidos e portanto não havia maneira de comunicar a graça santificante, deu-se conta que na Igreja inglesa já não estava o Paráclito dado aos apóstolos. Por esta razão, só pôde concluir que o anglicanismo estava para a verdadeira Igreja como os monofisitas para Roma no século IV e os protestantes estavam como os arianos. Na igreja anglicana já não estava o Espírito Santo a conduzir, estavam os homens!(1)

Será que o mesmo nos pode acontecer? Será que também nós, no desejo de abraçar a todos, poderemos deixar cair a arca da fé que dos Apóstolos até hoje nos chegou?

Como é evidente esse risco é muito pequeno, pois é quase imposssível que a validade dos sacramentos se perca na nossa querida Igreja. No entanto, o espírito latitudinário e anti-dogmático podem ser suficientes para que o evangelho deixe de ser uma espada de dois gumes que penetra até às juntas da alma; podem bastar para que deixe de valer a pena anunciar a Paixão, a Morte e Ressurreição do Senhor, o Perdão dos pecados e a Vida Eterna.

Ao tempo de Newman, os bispos anglicanos e o clero eram muito bons administradores, eram pessoas boas, civilizadas e dedicadas, mas não estavam para ter as maçadas que teve Santo Atnásio ao enfrentar poderosos e imperadores só para defender a verdade. No entanto, esta é uma das principais intenções pelas quais se ordenam bispos: para santificar, para ensinar, para governar! Como pode um bispo santificar ou ensinar sem uma verdade explícita? A realidade já é suficientemente opaca, para que a todo o custo se evite definir apenas com o objectivo de manter, não afastar ou seduzir o maior número. A verdade não é quantidade, nem sequer é só um atributo ou qualidade, mais do que tudo: a verdade é. Mas a verdade pede e exige ser explicitada, explicada, desenvolvida e definida. Isto é o dogma!(2)

Uma das áreas em que a Igreja mais foi atingida pelo latitudinarismo e o anti-dogmatismo foi a linguagem. Um bom exemplo podemos encontrá-lo no Catecismo Holandês (CH)(3) mandado publicar pela conferência dos Bispos dos Países Baixos. Na história recente da Igreja, este foi o primeiro documento oficial do magistério a usar intencionalmente uma linguagem com múltiplo sentido.(4)

Em 1961 o episcopado holandês encomendou a um grupo de peritos, do Instituto superior de Catequética de Nimega, a redacção de um catecismo para adultos. A primeira edição saiu logo em 1966, ao mesmo tempo que se concluía o Concílio. De imediato, um grupo de católicos holandeses preocupado com a rápida difusão da obra (400000 exemplares vendidos em menos de um ano e traduzido em 12 idiomas em apenas 2 anos) escreveu ao Papa Paulo VI mostrando a sua aflição e pedindo ao pontífice que interviesse para evitar o colapso da fé nos Países Baixos.

A principal apreensão devia-se a que no CH o Dogma era apresentado, de propósito, de maneira ambígua para que pudesse ser interpretado pessoal e subjectivamente. Na carta dirigida ao Papa, este grupo sublinhava sete pontos concretos nos quais essa ambivalência era manifesta: a criação, a imortalidade da alma, o pecado original, a eucaristia, a virgindade de Maria, a regulação dos nascimentos e a maneira de apresentar o protestantismo.

Quanto à criação, o CH expunha o dogma na perspectiva evolucionista, evitando tocar no termo ex-nihilo(5). No que se refere ao pecado original inseria-o na realidade mais abrangente da existência do mal, sem tocar no facto histórico da queda de Adão(6). Ao abordar a presença real na eucaristia, os redactores optaram por apresentá-la sempre como uma: “presença para os fiéis” e só diante deles(7). No que diz respeito à virgindade de Maria abordam-na em termos espirituais referindo-se a ela apenas antes do parto (deixando em aberto a virgindade pós parto). O nascimento de Jesus foi um milagre no sentido em que todas as concepções e nascimentos são um milagre.(8)

Notas:

(1) Reparem no que diz um amigo de Newman, querendo justificar a sua conversão ao catolicismo: “A Igreja inglesa trocou a religião pela civilização, o século primeiro pelo XIX! […] de todas as realidades diferentes a Igreja de Inglaterra com os seus párocos presunçosos e as caleches para as suas esposas e filhas, parecia-lhe a ele a mais diferente [da Igreja dos Apóstolos]; mais ainda que a Igreja romana sem reformar, com as suas estranhas doutrinas não escriturísticas, os seus inegáveis delitos, […]. Mas, pelo menos, a Igreja romana tinha mantido em pleno vigor ao longo dos séculos até aos nossos dias, duas coisas que enchiam e eram características do Novo Testamento: a devoção e o sacrifício pessoal… Devoção e sacrifício, oração e abnegação pessoal caritativa, numa palavra, santidade encontram-se ao mesmo tempo na superfície e entretecidas na substância do Novo Testamento.”

(2) Newman estabeleceu 7 critérios para averiguar  se determinado desenvolvimento  de  uma verdade é verdadeiro  ou não: 1) fidelidade à ideia original; 2) Continuidade de princípios; 3) capacidade de assimilar ideias exteriores; 4) antecipações prematuras de ensinamentos posteriores; 5) consequência lógica perceptível; 6) conservação da doutrina primitiva; 7) persistência num estado de vitalidade constante.

(3) CATECHISME HOLLANDAIS, IDOC-France, 1968

(4) EHRLINGER, Charles, Les grands points discutés du catéchisme hollandais, IDOC-France, 1968

(5) CH, p. 334-348.

(6) IBIDEM

(7) CH, p. 439-444.

(8) CH, p. 106-107.

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