A conversão de John Henry Newman ao catolicismo caiu como uma bomba na
Inglaterra do início da segunda metade do século XIX. O campeão do renovamento
espiritual e reforma da Igreja anglicana desertava o seu campo e convertia-se
ao seu pior inimigo: o Papa, a Igreja Católica Romana. Muito se disse
e escreveu acerca desta conversão. Ele mesmo explicou-a como sendo a chegada ao
porto depois de uma navegação atribulada por brumas e tempestades, mas sempre
orientada pela busca da verdade.
Alguns
dos seus biógrafos actuais têm apresentado esta passagem não tanto como a de
uma adesão ao catolicismo, mas como a de uma “desconversão” do anglicanismo. Na
minha opinião, não foi sobretudo a desilusão que levou São J.H. Newman a entrar
na Igreja Católica, mas acredito que terá sido mais um estímulo para que
procurasse fora da comunhão inglesa a verdadeira Igreja. O que desiludiu Newman
no anglicanismo? O que deveria estar na Igreja verdadeira e que o nosso Santo
não encontrava na Igreja inglesa?
A
comunhão anglicana nasceu do compromisso entre o excesso dogmático de Roma e o
excesso puritano de Wittenberg, Genebra e Zurique. A esse compromisso os
teólogos ingleses deram o nome de via-média. O problema deste caminho foi que,
aos poucos, na tentativa de integrar sob o mesmo chapéu correntes teológicas,
tendências espirituais e litúrgicas muito díspares, a comunhão anglicana deixou
de ser uma comunhão para ser uma amálgama de sensibilidades unidas apenas por
umas formas litúrgicas e um certo “modo de fazer”.
Em
1845, aos olhos de Newman, para além de tudo isto, a comunhão inglesa era
vítima de duas doenças mortais: o latitudinarismo, que punha todas as
doutrinas, asserções e teologias à mesma latitude; e os liberais, no dizer de
Newman, os que eram anti-dogmáticos por princípio. Estas duas atitudes, muito
parecidas, acentuavam ainda mais o carácter indefinido da Igreja anglicana
reduzindo-a a um organismo de Estado que trocou a santidade pelo civismo. Nesse
tempo era difícil ver a presença do sagrado naquela comunhão, não havia santos,
mártires ou confessores. Nesse tempo não havia, naquela Igreja, congregações
missionárias, não havia mendicância nem ascése, não havia mosteiros nem
místicos.
Foi
uma desilusão perceber que não havia Santos! Mas não foi a única.
Depois
de ter escrito o primeiro Tract for the Times, Newman ficou estupefacto ao
dar-se conta que alguns bispos já não acreditavam nem se consideravam
sucessores dos Apóstolos. Ainda mais aterrado ficou quando o seu bispo lhe
ralhou por ele pedir a uma rapariga - que queria casar-se na sua paróquia - que
se baptizasse primeiro. Durante esse período, o mais famoso cardeal inglês
descobriu que não havia sacramentos válidos e portanto não havia maneira de
comunicar a graça santificante, deu-se conta que na Igreja inglesa já não
estava o Paráclito dado aos apóstolos. Por esta razão, só pôde concluir que o
anglicanismo estava para a verdadeira Igreja como os monofisitas para Roma no
século IV e os protestantes estavam como os arianos. Na igreja anglicana já não
estava o Espírito Santo a conduzir, estavam os homens!(1)
Será
que o mesmo nos pode acontecer? Será que também nós, no desejo de abraçar a
todos, poderemos deixar cair a arca da fé que dos Apóstolos até hoje nos
chegou?
Como
é evidente esse risco é muito pequeno, pois é quase imposssível que a validade
dos sacramentos se perca na nossa querida Igreja. No entanto, o espírito
latitudinário e anti-dogmático podem ser suficientes para que o evangelho deixe
de ser uma espada de dois gumes que penetra até às juntas da alma; podem bastar
para que deixe de valer a pena anunciar a Paixão, a Morte e Ressurreição do
Senhor, o Perdão dos pecados e a Vida Eterna.
Ao
tempo de Newman, os bispos anglicanos e o clero eram muito bons
administradores, eram pessoas boas, civilizadas e dedicadas, mas não estavam
para ter as maçadas que teve Santo Atnásio ao enfrentar poderosos e imperadores
só para defender a verdade. No entanto, esta é uma das principais intenções
pelas quais se ordenam bispos: para santificar, para ensinar, para governar!
Como pode um bispo santificar ou ensinar sem uma verdade explícita? A realidade
já é suficientemente opaca, para que a todo o custo se evite definir apenas com
o objectivo de manter, não afastar ou seduzir o maior número. A verdade não é
quantidade, nem sequer é só um atributo ou qualidade, mais do que tudo: a
verdade é. Mas a verdade pede e exige ser explicitada, explicada, desenvolvida
e definida. Isto é o dogma!(2)
Uma
das áreas em que a Igreja mais foi atingida pelo latitudinarismo e o anti-dogmatismo
foi a linguagem. Um bom exemplo podemos encontrá-lo no Catecismo Holandês
(CH)(3) mandado publicar pela conferência dos Bispos dos Países Baixos. Na
história recente da Igreja, este foi o primeiro documento oficial do magistério
a usar intencionalmente uma linguagem com múltiplo sentido.(4)
Em 1961 o episcopado holandês encomendou a um
grupo de peritos, do Instituto superior de Catequética de Nimega, a redacção de
um catecismo para adultos. A primeira edição saiu logo em 1966, ao mesmo tempo
que se concluía o Concílio. De imediato, um grupo de católicos holandeses
preocupado com a rápida difusão da obra (400000 exemplares vendidos em menos de
um ano e traduzido em 12 idiomas em apenas 2 anos) escreveu ao Papa Paulo VI
mostrando a sua aflição e pedindo ao pontífice que interviesse para evitar o
colapso da fé nos Países Baixos.
A principal apreensão devia-se a que no CH o
Dogma era apresentado, de propósito, de maneira ambígua para que pudesse ser
interpretado pessoal e subjectivamente. Na carta dirigida ao Papa, este grupo
sublinhava sete pontos concretos nos quais essa ambivalência era manifesta: a
criação, a imortalidade da alma, o pecado original, a eucaristia, a virgindade
de Maria, a regulação dos nascimentos e a maneira de apresentar o protestantismo.
Quanto
à criação, o CH expunha o dogma na perspectiva evolucionista, evitando tocar no
termo ex-nihilo(5). No que se refere ao pecado original inseria-o na realidade
mais abrangente da existência do mal, sem tocar no facto histórico da queda de
Adão(6). Ao abordar a presença real na eucaristia, os redactores optaram por
apresentá-la sempre como uma: “presença para os fiéis” e só diante deles(7). No
que diz respeito à virgindade de Maria abordam-na em termos espirituais
referindo-se a ela apenas antes do parto (deixando em aberto a virgindade pós
parto). O nascimento de Jesus foi um milagre no sentido em que todas as
concepções e nascimentos são um milagre.(8)
Notas:
(1) Reparem no que diz um amigo de Newman,
querendo justificar a sua conversão ao catolicismo: “A Igreja inglesa trocou a
religião pela civilização, o século primeiro pelo XIX! […] de todas as
realidades diferentes a Igreja de Inglaterra com os seus párocos presunçosos e
as caleches para as suas esposas e filhas, parecia-lhe a ele a mais diferente
[da Igreja dos Apóstolos]; mais ainda que a Igreja romana sem reformar, com as
suas estranhas doutrinas não escriturísticas, os seus inegáveis delitos, […].
Mas, pelo menos, a Igreja romana tinha mantido em pleno vigor ao longo dos
séculos até aos nossos dias, duas coisas que enchiam e eram características do
Novo Testamento: a devoção e o sacrifício pessoal… Devoção e sacrifício, oração
e abnegação pessoal caritativa, numa palavra, santidade encontram-se ao mesmo
tempo na superfície e entretecidas na substância do Novo Testamento.”
(2) Newman estabeleceu 7 critérios para
averiguar se determinado desenvolvimento de uma verdade é
verdadeiro ou não: 1) fidelidade à ideia original; 2) Continuidade de
princípios; 3) capacidade de assimilar ideias exteriores; 4) antecipações
prematuras de ensinamentos posteriores; 5) consequência lógica perceptível; 6)
conservação da doutrina primitiva; 7) persistência num estado de vitalidade
constante.
(3) CATECHISME HOLLANDAIS, IDOC-France,
1968
(4) EHRLINGER, Charles, Les grands
points discutés du catéchisme hollandais, IDOC-France, 1968
(5) CH,
p. 334-348.
(6) IBIDEM
(7) CH,
p. 439-444.
(8) CH, p. 106-107.
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