terça-feira, 3 de agosto de 2021

Entrevista com Pe. Claude Barthe: “Traditionis custodes: Uma Nova Guerra Litúrgica”

Com o motu proprio Traditionis Custodes, publicado a 16 de Julho, o Papa Francisco colide com o motu proprio do seu antecessor Bento XVI – Summorum Pontificum – de 7 de julho de 2007, limitando drasticamente a celebração da Missa tradicional.

Padre, rumores sobre a eventual publicação deste motu proprio - que praticamente cancela o de Bento XVI de 7 de Julho de 2007 - haviam já surgido. Esperava que estivesse para tão cedo a sua publicação, 16 de Julho?

Ninguém tinha a certeza, eram múltiplos os rumores. Em Roma tanto se falava de uma publicação iminente bem como de uma para sair em agosto. A primeira versão acabou por ser a correcta. O Secretário de Estado, que esteve sempre por trás desse assunto, foi extremamente discreto, temos de admitir.

Os eventos mais recentes pareciam apontar para uma possibilidade de apaziguamento– reflectida nas palavras do Cardial Gambetti, arcipreste da Basílica de São Pedro, que apelava à Summorum Pontificum numa recente entrevista à Vatican News. Será que teriam fundamento estas esperanças?

Desconheço o que terá ou não dito o Cardeal Gambetti ao Papa, contudo é certo que foram vários os pedidos feitos para que se adiasse a publicação deste documento de forma a evitar o começo de uma nova guerra litúrgica no seio da Igreja. Nomeadamente, tem-se dito que o Cardial Ladaria, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, reteve o máximo que pode, tal como muitos outros o fizeram. No final, a decisão foi tomada pelo Papa e pelo seu lobby, especialmente o seu Secretário de Estado, Cardeal Parolin, o substituto, Cardeal Peña Parra, Cardeal Versaldi, e todos os quantos participavam nestas reuniões inter-discatério (reuniões entre os perfeitos das congregações visadas: Culto Divino, Clero, Bispos e a Secretaria de Estado) que haviam estado a trabalhar neste documento durante longo período de tempo.

Como é que os apoiantes do motu proprio do Papa Francisco levaram a melhor?

Fizeram o suficiente para convencer o Papa! Ele tem o poder de ir contra todos... Neste caso o maior lobby da Conferência Episcopal Italiana posicionou-se contra o Summorum Pontificum, principalmente porque na Itália, mais tarde do que em França, os padres mais jovens têm começado a celebrar a Missa tradicional e a adoptar as ideias tradicionalistas. A Conferência Episcopal tem reparado numa “tradicionalização” dos seminários, algo que os preocupa sobejamente. Também na Cúria e indivíduos como o Cardeal Parolin e o Cardeal Stella na Congregação do Clero, etc., têm-se preocupado bastante.

Quais são os argumentos para questionar o documento de Bento XVI?

Todos eles se encontram claramente expostos na carta aos Bispos. Também se podem encontrar no blog de Andrea Grillo, um leigo professor de liturgia em Santo Anselmo que se tem mostrado hostil com o Summorum Pontificum. A sua ideia, reutilizada pelo Papa e pelos redatores do presente motu proprio, é que a Missa tradicional representa o estado doutrinal precedente ao Vaticano II, enquanto a nova Missa representa a doutrina do Vaticano II – algo que já conhecíamos. Assim, já não é necessário conceber a Missa tradicional como um direito, mas somente uma tolerância, e mesmo apenas uma tolerância concedida unicamente a fiéis e sacerdotes para os ajudar na transição gradual para a nova Missa.

Então, a principal razão é doutrinal?

Sim, e é muito importante dizê-lo e estar ciente disso porque, paradoxalmente, isto é tudo muito providencial. É obviamente muito doloroso e vai dificultar a difusão da Missa tradicional. Vai culminar em novas perseguições. Coloca, por outro lado, o dedo na ferida, nomeadamente na condição doutrinal do Vaticano II, a qual nunca foi estabelecida.

Como é que este motu proprio vai afectar as comunidades Ecclesia Dei – se é que ainda as podemos tratar desse modo?

Vai afectá-las e colocá-las certamente sob mira. O documento di-lo claramente e a carta Papal indica-o cinicamente. É uma questão de destruir a celebração tradicional da Missa, assegurando que não existem mais padres para a celebrar. Estas comunidades são particularmente visadas pois são “fábricas” de tais padres, tal como o é a Fraternidade de São Pio X, que no início os fabricava sozinha. 

Doravante, estas instituições não estarão sob a jurisdição da Ecclesia Dei, que cessou de existir, nem sob a da Congregação da Fé, o que seria relativamente protector, mas sob a jurisdição da Congregação para a Vida Religiosa. Foram reduzidas do seu anterior direito pontifício. A Congregação para os Religiosos, presidida pelo Cardeal Braz de Aviz, está alinhada com o Papa e terá trabalho a colocar tudo em ordem.

Por exemplo, serão feitas visitas aos seminários para verificar que o ensino prestado está em conformidade com o do Vaticano II, e assegurar que se estuda celebra a nova liturgia. Em suma: o objectivo será o desencorajamento das vocações. Quando contestamos: “Mas isso vai causar que as vocações nessas instituições desçam abruptamente”, eles respondem: “Nós não precisamos desse tipo de vocações, elas são inúteis”. (Isto foi, na verdade, uma resposta que obtive duma pessoa que não posso mencionar!).

Então, para eles o bem das almas pouco importa?

Na verdade, sim. Para eles, o bem das almas é o Vaticano II. Preferem não ter padres a ter aqueles que eles pensam ser maus padres. É terrível – até diabólico. Tem de ser dito: este pontificado tem atacado todos os locais onde se verifica uma renovação sacerdotal. Os Franciscanos da Imaculada são um exemplo, mas existem muitos mais.

De facto, o motu proprio do Papa Bento XVI nunca foi completamente posto em prática, mas permitiu que o motu proprio de 1988 de São João Paulo II fosse aplicado. Será que com o Papa Francisco estamos a regressar ao período pós-conciliar dos anos 70?

Esquecemo-nos do quão terríveis foram esses anos. Mas é diferente porque passaram 50 anos e os perseguidores perderam a força que tinham nesse tempo. A Igreja conciliar está muito doente, está inclusivamente a morrer nalguns sítios, como é o caso de muitas dioceses francesas.  Escassez de paroquianos, bem como de padres.

Por exemplo, estamos a voltar à execrável situação dos anos 70, quando múltiplos pedidos para a celebração de funerais tradicionais foram sistematicamente negados?

Teoricamente sim. Este motu proprio não desenvolve essa questão, mas estabelece o que é permitido, e isso não é uma delas. Eu vou celebrar um funeral tradicional na Provença dentro de poucos dias. Teoricamente, posso ser proibido de o fazer. Para um casamento que tenho marcadoo para Setembro, o mesmo.

Mesmo que se peça permissão?

Nós pedimos permissão para as Missas públicas. Regra geral, o melhor é não pedir esclarecimentos, apenas celebrar a Missa…

O que vai acontecer com a autorização garantida pelo Papa Francisco aos sacerdotes da Fraternidade São Pio X para celebrar casamentos e funerais em paróquias? Não se verifica aqui uma contradição?

Isso não mudou! Sim, verifica-se uma contradição... Mas será que esses sacerdotes continuam a ter o direito de celebrar publicamente numa paróquia? Reitero: é melhor não explorar demasiado esta questão. Cada qual deve interpretar por si próprio ou deixar o seu Bispo fazê-lo, em vez de discutir os seus detalhes.

Que reação espera dos Bispos? Tenho em mente o Arcebispo de Ferrara, que não sendo de todo conservador, fundou uma paróquia privada para a forma extraordinária 15 dias antes do anúncio deste documento do Papa. 

O caso de Ferrara é muito interessante. Temos a emancipação de um Bispo progressista do Papa Francisco. Em Itália, e na Cúria, muitos se estão a afastar do pontificado. Sentem que o Papa está no fim da sua carreira e estão a pensar no futuro. Descrevem o governo presente como caótico, e desejam algo mais sério e verdadeiramente liberal. Quanto ao Bispo de Ferrara, o caso é claro: ciente do documento e sabendo que não iria ser permitido fundar novas paróquias privadas, ele fundou uma de imediato: é óptimo!

Como imagina que será a reação dos Bispos franceses?

As reações irão variar. Alguns irão usar o texto papal para reprimir o máximo possível. Outros irão simplesmente ser realistas, pois não quererão começar fogos debaixo do seu tecto. Penso no Bispo de Versailles, que publicou um comunicado que é de difícil interpretação, mas no qual parece nada dizer sobre o que vai acontecer de momento. Existem outros que estão a favor, não existem dúvidas, da vida tradicional nas suas dioceses, mesmo que não partilhem as suas ideias. Vão fugir do assunto e ganhar tempo...

Se quiserem resistir, terão de o fazer canonicamente: Código de Direito Canônico Cân. 87, parágrafo 1: “Um Bispo diocesano, quando julga que tal poderá contribuir para o bem-estar espiritual, está capaz de dispensar os fiéis de universais ou particulares leis disciplinares mandatadas pelo seu país ou pela suprema autoridade da Igreja.” Isto abre incontáveis possibilidades. O Bispo contínua a ter de ter vontade de actuar. Agora, contrariamente ao que nos foi dito pelo Sínodo, realmente só funciona para um lado – o dos Bispos que pensam como o Papa. Mas quando tal não é o caso... Lembro-me das palavras do Arcebispo Roche, o novo perfeito da Congregação para o Culto Divino, que recentemente disse – rindo-se: “Vamos destruir o Summorum Pontificum. O poder litúrgico vai ser dado aos Bispos... mas não aos Bispos conservadores!”

São Pio V declara que esta Missa não pode ser revogada, Paulo VI proibi-a, Bento XVI reconstitui-a, o Papa Francisco tenta de novo fazê-la desaparecer: assim sendo, como podemos levar a sério as decisões da Igreja?

Tem razão. É necessário rever o texto Quo Primum e o que é realmente dito por São Pio V: é dito que ninguém pode impedir um padre de celebrar esta Missa, independentemente da sua posição na Igreja, de forma a ter de celebrar esta Missa em qualquer um dos ritos particulares (Lyon, etc.) …

Não se verifica já isso de certa forma?

De certa forma, sim, realmente já se verifica isso. A Missa de São Pio V, quando foi revogada por Paulo VI (porque foi realmente revogada, como apontava certeiramente Jean Madiran), era idêntica, quase ao detalhe, com aquela do século XI. Bento XVI no Summorum Pontificum disse que nunca havia sido revogada. Agora o Papa Francisco volta a revogá-la... Isto não parece nada sério.

A verdade é que todas as experiências são permitidas, incluindo as bênçãos de casais homossexuais (que são proibidas pela Igreja), excepto “a experiência da Tradição”, na expressão usada pelo Arcebispo Lefebvre…

Tudo é permitido, qualquer heresia pode ser professada por homens da Igreja, que mesmo assim se continuam a identificar como católicos – excepto àqueles que celebram a Missa tradicional. Não, esses são acusados pelo próprio Papa de dilacerar a união da Igreja.

Então podemos chegar à conclusão de que este ódio pela Missa tradicional tem uma base doutrinal?

Sem dúvida. É o ódio pela eclesiologia Tridentina, assim como por tudo o que esta Missa representa no que toca à doutrina Eucarística e à doutrina da Igreja.

Padre, como capelão da Peregrinação Summorum Pontificum, muitas vezes mencionada nas nossas páginas, está capaz de nos responder: pensa que esta peregrinação tem um futuro promissor? 

Quem sabe? Temos de esperar para ver!

(Tradução: Margarida Vilan e Manuel Maia Simões)

1 comentário:

  1. Maria José Martins04 agosto, 2021 13:48

    Pobre Igreja! Aquela, que deveria ser a "âncora" para todas as adversidades, pela Sua firmeza e coerência, está a transformar-se num caos de instabilidade e confusão que, para os menos informados ou portadores de uma Fé menos consistente, somente contribui para o seu afastamento. E digo isto tristíssima porque, pelos comentários que oiço de muitos que se dizem Católicos ou não, a CULPA é daqueles que não se abrem ao mundo, no sentido de EMBARCAR, nas suas leviandades; ao ponto de afirmarem, como ouvi ontem, num certo programa de televisão-- relativo ao afastamento de um Sacerdote menos Fiel--que os verdadeiros mártires são esses que hoje lutam contra tudo o que é "conservador"--para não dizer DIVINO--acreditando de que são eles que acabarão por SALVAR a Igreja, com o apoio do Papa Francisco, porque "eles são homens" e o que conta são as OBRAS HUMANAS E SOCIAIS que praticam!
    E a minha única consolação foi que a apresentadora respondeu: "Pois penso precisamente o contrário de vocês: São padres assim, que destroem a Igreja, pelo seu mau exemplo!"

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