domingo, 14 de abril de 2024

Não há nenhum noite como esta

Não há em todo o ano litúrgico, que é o vôo circular em que a Igreja contempla amorosamente os mistérios de Cristo, momento mais jubiloso e mais belo em que, antes de acender o Círio Pascal, o Diácono canta o “Exultet Jam Angélica Turba Caelorum...” que é, sem dúvida alguma, o maior primor que os homens, com inspiração divina e engenho próprio jamais lograram compor em toda a história do cristianismo e do mundo. 

Quem já adulto, e já doloridamente vivido, teve a felicidade de ouvi-lo pela primeira vez no esplendor do Movimento Litúrgico, pôde apreciar, nessa adamantina condensação, todo o apuro, todo o requinte de infinito bom-gosto que a Igreja, ex abundantia operis, trouxe à civilização, e até hoje guarda a lembrança do estremecimento da alegria que nessa noite sentiu como antecipação de todas as promessas de Deus:
 
O vere beata nox, quae sola meruit scire tempus et horam in qua Christus ab inferis ressurrexit! – Ó bem-aventurada noite, única que mereceu conhecer o dia e a hora em que Cristo ressuscitou dos mortos. Inebriada de alegria a Igreja delira, e chega à amorosa inconveniência, à desmedida loucura de cantar:

O certe necessarium Adae peccatum... O felix culpa... – Ó necessário pecado de Adão...Ó culpa feliz.

E depois, agora mais senhora de si, gravemente repete a grande história do Verbo de Deus desde a madrugada da Criação, desde a promessa feita a Abraão, e através das palavras dos profetas até aquela outra madrugada do primeiro dia da semana em que Maria Madalena e a outra Maria vieram visitar o sepulcro.

Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago e Salomé, haviam comprado aromas para embalsamá-Lo, e pelo caminho diziam: “Quem nos levantará a pedra do sepulcro?”

Chegadas, viram a pedra rolada, e então as duas mulheres voltaram correndo para anunciar aos apóstolos o que viram e ouviram do anjo que estava ao lado do sepulcro: Ele ressuscitou!

E daí em diante começaram as páginas mais transluminosas, e mais banhadas de alegria das Sagradas Escrituras. Cada quadro tem uma luz suave e mais penetrante do que todo o alvorecer da Criação.

Agora num relâmpago, vemos Maria Madalena voltar-se para o vulto que julgava ser o do jardineiro, e com ela ouvimos:
 - Maria! E logo a resposta de adoração: - Raboni!
 
Mais adiante é no Cenáculo, onde estavam fechados e tristes os apóstolos, que Jesus ressuscitado aparece e lhes diz: “A paz seja convosco.” 

E agora é na estrada de Emaús que dois discípulos caminham conversando a respeito de tudo o que havia acontecido, e à certa altura percebem que alguém caminha com eles, e lhes pergunta: “De que falais enquanto caminhais?” Os viandantes ficaram tristes, e o que se chamava Cleofas respondeu ao desconhecido: “Serás tu, forasteiro em Jerusalém, o único a ignorar o que se passou nestes dias?” “O que aconteceu?”, perguntou o desconhecido. E os peregrinos contaram a história de Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus, que os príncipes dos sacerdotes e magistrados entregaram para ser condenado à morte, e morte de cruz; e disseram que estavam tristes porque esperavam que ele libertasse Israel, e agora já três dias passaram... É verdade que algumas mulheres, que se achavam conosco, dizem que seu corpo desapareceu do sepulcro e que um anjo anunciou que Ele estava vivo! Mas eles ainda duvidavam...

Disse-lhes então o desconhecido: “Ó homens sem inteligência, como tarda vosso coração em crer o que os Profetas anunciaram!” E começando por Moisés, percorrendo todos os Profetas, o desconhecido ia explicando as palavras de Deus à medida que se aproximava de Emaús. O desconhecido deu a entender que tomava outro caminho, mas a pedido dos peregrinos entrou com eles num albergue. “Fica conosco!” pediam os peregrinos, e Jesus, com eles à mesa, tomou o pão, benzeu-o, partiu-o, e deu-lhes, e então seus olhos se abriram, mas Jesus desaparecera.

Esta pequena história que resiste a todos os maltratos da humana grosseria, tem inspirado e animado o engenho de todas as artes humanas, e poderá ainda, até o fim do mundo, ser cantada, contada, pintada e lavrada sem que a infinita profundidade de sua beleza venha a se exaurir. Por mim, neste momento, sinto com especial comoção a beleza da ação de graças dos dois peregrinos quando retomam a caminhar: — “Lembras-te como nosso coração se abrasava quando Ele, no caminho, nos explicava as Escrituras?”.
 
Peçamos nós a esses santos peregrinos que nos obtenham de Deus a mesma graça de sentir arder o coração quando ouvirmos a voz de Cristo na voz da Igreja a nos explicar os formidáveis mistérios da Pátria.

Diz-nos São Paulo na Vigília Pascal: “Se morrermos com Cristo, com Ele ressuscitaremos e viveremos". Mas nosso tardo coração sente-se amedrontado diante de tão excessiva promessa de Deus.

Na verdade, na verdade, todos os dons de Deus e todas as suas promessas são excessivas, e tamanho clarão de mistério às vezes mais nos ofusca e nos cega do que nos ilumina. “Creio... na ressurreição da carne...” balbucio eu envolvendo este artigo no mesmo global ato de fé que tem sua razão de ser na Palavra de Deus. Balbucio e tremo quando considero esta pobre carne já tão desgastada, “comme um vieux mouton qui a perdu sa laine aux ronces du chemin” – como um velho carneiro que perdeu sua lã nos espinhos do caminho. Como poderá resplender e reflorescer este pobre corpo já tão próximo do desmoronamento total?

Afina teu ouvido, ó tardo coração, e pondera que nesta Vigília Pascal, por sua Igreja, Cristo nos rememora todas as grandezas de Deus desde a criação até esse momento único em que a chama do Círio representa a grande transição, a maravilhosa travessia, a Páscoa que nos transporta de um desastrado mundo para o mundo dos ressuscitados. E pondera bem, alma de minh’alma, que um só ato vivificado pela graça de Cristo é maior do que todas as galáxias; e que as vezes que do pecado saíste por um ato de contrição e pelo perdão sacramental somam maior total de maravilhas do que todo o Universo criado. 

Na verdade, na verdade tu te deténs demais na excessiva promessa anunciada pelo Exultet porque ainda te agarras demais à ideia de que teu corpo com sua variedade de órgãos e funções, é a maior maravilha de teu ser. No que te enganas demais, alma de minha alma, porque a maior maravilha de meu ser é a graça da adoção, é o favor sobrenatural que Deus nos concede: o de podermos chamá-lo de Pai Nosso...

E nessa ordem de coisas, que importa infinitamente mais do que todas as estrelas do céu, todas as flores da terra e todos os peixes do mar, nessa ordem nova ou nessa nova criação – tudo é graça.

Gustavo Corção in 'O Globo' (29/III/1975)

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