domingo, 27 de julho de 2014

Os evangelhos segundo Jesus Cristo - Pe. Gonçalo Portocarrero

Não sei se era uma sexta-feira 13, mas a afirmação não poderia ter sido mais desastrada:
- Bom, deixemos isso – referia-se à Sagrada Escritura, que acabava de ser referida – pois tenho coisas mais importantes para vos dizer!

O caricato incidente que, si non è vero, è bene trovato , reflecte uma atitude corrente em muitas pessoas, também cristãs, que, na prática, entendem que têm coisas mais importantes para fazer do que ler a Bíblia, que é palavra de Deus.

A Sagrada Escritura não é letra morta, mas espírito e vida, porque, como afirma o apóstolo João, Cristo é a palavra de Deus que se fez carne e habitou entre nós.

É verdade que não se conhece nenhum texto escrito directamente por Jesus, mas muitos foram os seus contemporâneos que, como Mateus, um dos doze apóstolos, e Marcos, relataram os seus feitos e ensinamentos. Lucas, também ele discípulo do Mestre, dá conta das muitas versões escritas que circulavam entre os primeiros cristãos. Mas, como nem todas eram fidedignas, ele, sendo médico, redigiu um novo relato, que é o terceiro evangelho. Estes três textos, mais o atribuído ao apóstolo João, são os únicos quatro evangelhos que a Igreja católica reconhece como sendo palavra de Deus. Outros havia e há que não consta terem sido divinamente inspirados.

Para alimentar a fé incipiente das comunidades cristãs que ia fundando, Paulo de Tarso escrevia-lhes cartas: as epístolas que ainda hoje se lêem nas celebrações litúrgicas. Eram textos que circulavam entre os fiéis, ensinando-lhes a prática da fé, resolvendo as suas dúvidas doutrinais, alentando-os a permanecer como luzes ardentes num mundo obscurecido pelas trevas da ignorância e do pecado.

Decorridos quase dois mil anos, a Bíblia não perdeu actualidade, nem pertinência, para cristãos e não-cristãos. Não conhecer a Sagrada Escritura não é apenas uma grave manifestação de ignorância religiosa, mas também um indesmentível sinal de iliteracia cultural. Não são só os italianos que têm de ler a Divina Comédia , nem os britânicos os únicos que devem conhecer as obras de Shakespeare.

Deus não é de nenhum país e é-o de todos. Por isso, a palavra divina não se confunde com nenhuma cultura ou época, transcende todas as fronteiras e ultrapassa todas as civilizações. É de sempre e para sempre. É intemporal, sem deixar de ser de cada tempo e lugar. É universal, sendo pessoal para todos e cada um dos homens, porque é um lugar privilegiado de encontro íntimo com Deus. É uma explicação do mundo, mas também um mapa da felicidade. Fala de Deus, omnipotente e criador, mas que é, sobretudo, amor e que, no seu filho, Cristo, é caminho, verdade e vida. Porque ensina a amar, ensina a viver. Promete a bem-aventurança no além, mas enche também de alegria e de esperança a vida terrena. Quantas pessoas encontraram, nas páginas do texto sagrado, a mais profunda e plena razão do seu viver!

Quem lê a Bíblia não fica indiferente ao livro que, não em vão, é a obra mais editada de todos os tempos. Se aceita o diálogo interpelante dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, os únicos que são, verdadeiramente, segundo Jesus Cristo, é muito provável que se dê conta de que esse texto não é apenas a mais valiosa obra da literatura universal, mas uma carta íntima que Deus escreveu a cada ser humano. E então, seja crente, ateu, agnóstico ou indiferente, compreenderá por que razão, em cada missa, depois da proclamação do evangelho, o celebrante beija-o. Um gesto de amor que, se não for unido ao propósito de realizar na vida a palavra de Deus, será de traição, como o beijo de Judas.

in Jornal i

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