segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Presépio na Cidade

Politicamente correcta, Lisboa, no mês de Dezembro, enchia-se de estrelas e pais-natais. Faltava qualquer coisa, que ninguém tinha coragem de mencionar, até que, no ano 2000, apareceu um presépio em plena rua, que se transformou em local de encontro. Houve protestos! Uma indecência! Desonra a cidade! À noite, destruíam o presépio e despejavam-lhe lixo em cima; de manhã, o local era limpo e reconstruia-se o presépio. Um dia e outro. Aquele espaço de 3 por 4 metros parecia um campo de batalha. Outras vezes, um pára-raios e um porto de abrigo.

A Sofia Guedes, que participa na iniciativa desde 2000, conta-me histórias, recentes e antigas, encadeadas como cerejas.

– Há bocado, a Celeste passou por aqui e convidámo-la a entrar no presépio. Sentou-se uns bons minutos. Talvez se sentisse bem, a inventar numa oração para a nossa colecção, um texto lindo que falava das crianças, dos jovens, dos pais e do amor. Contou então que tinha sido prostituta durante 40 anos, mãe de três filhos... chorou, abraçámo-nos e decidiu voltar para jantar connosco, porque se sentia profundamente acolhida.

– A Marta e o João, sem-abrigo, dormem no presépio com os cães e deixam a manjedoura toda suja... Comem a mesma comida dos cães, dormem vestidos com a mesma roupa todos os dias. Trabalham com o «fogo», são malabaristas de chamas de petróleo e deitam fogo pela boca. Têm 24 e 28 anos e vivem assim há anos. Não são felizes, mas não sabem como sair daquilo. A mãe do João sai todos os dias à procura dele pelas ruas de Lisboa, para lhe dar de comer e o vestir. É uma senhora pobre, a lutar pela dignidade da família. Também ela veio jantar connosco – que grande mãe! – e volta, para repousar o olhar na imagem de Maria, que está ali à espera de todos...

– O John tropeçou no presépio. Literalmente. Tropeçou e caiu. Convidámo-lo a entrar, tratámos-lhe das feridas, rezámos com ele, demos-lhe banho e comeu connosco. Há 13 anos que não via a família, a mulher e os dois filhos. Uma instituição de tratamento de toxicodependentes ajudou-o e, depois de três meses, contactámos a família, explicámos a situação e pedimos que o recebessem de volta. Falámos com a Segurança Social inglesa, que tomou conta dele e o encaminhou para continuar o tratamento. Voltou para casa «very happy», muito grato ao «Little Jesus»!

– O Douro! O Douro era um búlgaro, pedinte, casado e pai de 5 filhos. A mulher estava muito doente e eles sem meios para a tratar. Pedia na escadaria da igreja do Mártires, perto de nós. Todos os dias vinha ajudar a limpar, a pintar, guardava-nos... Um dia, explicou que era muçulmano, mas gostava muito de estar no presépio; sonhava ir à sua terra, a Bulgária, deixar lá um filho e visitar os outros. Aliás, ele queria mesmo era ficar lá! No fim de jantar connosco, com outros colegas «pedintes» e amigos que visitam diariamente o presépio, comunicou-se a todos o desejo do Douro. Cada um deitou o que pôde num saco, mesmo os pedintes. No fim, um deles anunciou: «temos dinheiro para o Douro, a mulher e o filho irem para a Bulgária»! Foi um momento de grande emoção e a seguir de saudade, quando fomos despedir-nos deles, ao comboio que partiu de Santa Apolónia.

– Num Natal anterior, o Eber, um adolescente que entrou para partir tudo, acabou a passar a noite de Natal com um grupo de velhinhas que estavam sozinhas, que ele ajudou e serviu. Aprendeu a rezar e pediu para começar a catequese.

– A senhora Amélia entrou desesperada no presépio, a pedir para rezarmos com ela. Não ligámos, porque estávamos atarefados, mas ela insistiu e tivemos de deixar tudo. Nos dias seguintes, voltou. Depois, contou-nos a história daquela aflição: queria suicidar-se... mas, depois daquelas visitas ao presépio, tinha recuperado a alegria!

– O Francisco vem de 2001. Era um sem-abrigo, vivera na rua durante 26 anos. Alcoólico, mas um homem cheio de fé! Nunca mais nos deixou. Hoje já tem o seu quartinho e cuida muito bem de si. Está a tirar um curso de jardinagem e o 9º ano. Aprendemos tanto com ele, pela perseverança, pela humildade, por aquela dignidade que ensina tanto sobre a miséria e como se lida com ela. O Francisco é um professor de humanidade. Hoje é um dos principais voluntários. Sem o presépio, provavelmente ele hoje não viveria, e sem o Francisco talvez hoje não houvesse este presépio.

– A Toninha, o Luís Filipe, a Maria, o João...
– Ó Sofia! Estão a ligar-me, desesperados, do jornal: querem a crónica ime-dia-ta-men-te. Beijinhos!

José Maria C.S. André in Correio dos Açores, 20-XII-2015

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