sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Pe. Miguel Almeida SJ pergunta se é adultério ou não. A Igreja diz que sim.

Não tenciono, nem posso, comentar as intenções do Padre Miguel Almeida, S.J., pelo que vou assumir que são as melhores. Mas o seu artigo 'Adúlteros! Mas serão mesmo?', em vez de trazer luz e esclarecimento, parece-me, pelo contrário, ter adensado a confusão já generalizada.

O início do artigo não é feliz, com o argumento de que a “correctio filialis” não teve impacto porque os autores e signatários não são pessoas conhecidas. É pena ouvir mais uma voz a tecer considerações sobre os autores e signatários em vez de comentar o conteúdo da “correctio filialis”. Havendo erros na mesma, seria útil poder-se ler algumas correcções à “correctio”. Em vez disso, comentam-se os autores e signatários e as suas intenções. E neste caso, o Padre Miguel opta por comentar a fama dos mesmos.

Mas entrando no tema, o Padre Miguel escreve:

«Até ao pontificado do Papa João Paulo II, as expressões mais usadas para referir a situação das pessoas “recasadas” eram que viviam em pecado mortal ou que eram adúlteras.»

É que continua a ser assim no Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 2384:

“2384. O divórcio é uma ofensa grave à lei natural. Pretende romper o contrato livremente aceite pelos esposos de viverem um com o outro até à morte. O divórcio é uma injúria contra a aliança da salvação, de que o matrimónio sacramental é sinal. O facto de se contrair nova união, embora reconhecida pela lei civil, aumenta a gravidade da ruptura: o cônjuge casado outra vez encontra-se numa situação de adultério público e permanente:

«Não é lícito ao homem, despedida a esposa, casar com outra; nem é legítimo que outro tome como esposa a que foi repudiada pelo marido»(138).”

(A frase citada é de São Basílio Magno, como podemos ver na nota de rodapé 138.)

E este ensinamento do Catecismo vem da própria boca do Senhor, como lemos em São Mateus 19, 9:

“Ora Eu digo-vos: Se alguém se divorciar da sua mulher - excepto em caso de união ilegal - e casar com outra, comete adultério.”

O Padre Miguel diz mais adiante:

«Esta era a lógica da Igreja até João Paulo II. Uma praxis orientada acima de tudo pela mente canónica que, na melhor das hipóteses, lidava com estas situações como situações de concubinato.»

Pelos vistos, é a lógica de Jesus Cristo, cuja mente canónica é incontestavelmente perfeita porque divina.

Mais adiante, lemos:

«Dá-se aqui um salto coperniciano. A partir deste documento, as expressões “pecado grave” ou “pecado mortal”, bem como o epíteto de “adúlteros” deixam de se aplicar aos recasados. Passou-se a usar a expressão “situação irregular”. Quer dizer, estas pessoas não vivem em comunhão com a regra da Igreja. Apesar de afirmar que vivem “em contradição com a indissolubilidade do matrimónio”, João Paulo II nunca utiliza a palavra “pecado”.»

É incompreensível falar em “salto coperniciano”, pois São João Paulo II escreve a Familiaris Consortio tendo como pano de fundo a doutrina e a moral de sempre. Escreve o Papa no mesmo parágrafo 84 citado pelo Padre Miguel:

“A reconciliação pelo sacramento da penitência - que abriria o caminho ao sacramento eucarístico - pode ser concedida só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio.”

Ora, como o Padre Miguel sabe, o caminho para o sacramento eucarístico está sempre aberto para quem está sem pecado, ou em pecado venial. Naturalmente, São João Paulo II fala do arrependimento no contexto do sacramento da penitência, pelo que só pode estar a falar de arrependimento de pecado mortal, arrependimento esse que é condição necessária para se poder voltar a aceder à Eucaristia.

São João Paulo II não precisa de usar a palavra “pecado” quando se baseia na doutrina moral mais elementar, e que está subjacente à sua alusão aos sacramentos da penitência e da Eucaristia.

A Igreja, guardiã dos sacramentos, veda o acesso à eucaristia a quem está em pecado mortal.
É por isso que os “divorciados que contraem nova união”, como se lhes refere o Papa, não podem comungar enquanto não sairem da condição de pecado mortal.

Escreve o Padre Miguel:

«Duas razões, pelo menos, concorrem para que a Igreja não considere adúlteras estas pessoas desde a FC.»

As duas razões que são apresentadas são inconsequentes: a Igreja não deixou de considerar que os divorciados em nova união estão em situação de adultério objectivo, independentemente da avaliação subjectiva da sua culpa. Como vimos, o Catecismo di-lo claramente no parágrafo 2384. Mais importante ainda, Jesus Cristo di-lo claramente.

Surge, depois, uma secção na qual se usa de forma ambígua o termo “adultério” e o termo “adúltero”:

«Isto é, todos nós sabemos o que é o adultério e todos nós sabemos o que é um adúltero. (…)
Uma pessoa adúltera é, além do mais, mentirosa, com vida dupla, que não respeita o marido ou a mulher nem os filhos.»

Uma pessoa adúltera é, antes de mais, aquela que comete actos sexuais com alguém com quem não está unido pelo sacramento do matrimónio. Tal pessoa pode, ou não, mentir, ter vida dupla, faltar ao respeito ao legítimo cônjuge, aos filhos, etc. Mas esses actos são acidentais ao adultério, e não são essenciais. Por exemplo, se dois casais querem trocar de cônjuges entre si, estamos perante adultério, mesmo que não haja mentira e haja pleno consentimento de todos.

Há, então, uma distorção, admito que involuntária, do sentido da palavra “adultério”, e consequentemente, da palavra “adúltero”, ou seja, aquele que comete adultério. É sempre salutar voltar às palavras de Nosso Senhor em São Mateus 19, 9:

“Ora Eu digo-vos: Se alguém se divorciar da sua mulher - excepto em caso de união ilegal - e casar com outra, comete adultério.”

É uma definição clara, sintética, sem ambiguidade. Mais adiante, continua o Padre Miguel:

«O que aconteceu é que ficámos sem instrumentos conceptuais para lidar com estas situações. Antes eram adúlteros e, como tal, não podiam comungar. Com João Paulo II deixaram de ser considerados adúlteros, mas também não podem comungar.»

Como vimos, os instrumentos conceptuais continuam os mesmos, e vêm de Nosso Senhor.
Com São João Paulo II, a doutrina e a moral de Jesus Cristo continuaram as mesmas, como vimos.

O Padre Miguel diz que “as expressões antigas voltaram”, mas elas nunca se foram embora. Estão no Catecismo. Estão na Patrística, estão no Magistério inteiro da Igreja. Como poderiam ir embora? Nunca foram abrogadas, não podem ser abrogadas, e por isso não perdem validade.

Não existe também novidade, nem escândalo, em querer que pecadores participem na vida da Igreja. Afinal, a missão central da Igreja é tornar pecadores em santos, pelo que é preciso que os pecadores entrem na Igreja e que se deixem levar pelo caminho da santidade. Todos somos pecadores e todos devemos estar a caminho da santidade.

A questão está no significado de “participar na vida da Igreja”. A participação no sacramento da Eucaristia está vedada a quem está em pecado mortal, seja ele qual for. E justamente, pois quando alguém comunga em situação de pecado mortal, sabendo que está em pecado mortal, junta à lista um novo pecado mortal, o do sacrilégio.

Mesmo no final do seu artigo, o Padre Miguel reclama da dualidade de critérios de certos católicos que se focam nos pecados de teor sexual e esquecem outros pecados. Naturalmente, o acesso à Eucaristia está igualmente vedado ao católico que está em situação de pecado mortal por ter enriquecido indevidamente, pecando contra o Sétimo Mandamento. O mesmo acontece com qualquer outra violação grave do Decálogo.

O que é de admirar é que o Padre Miguel, ao reclamar dessa dualidade de critérios, não deixa nesse mesmo parágrafo de confirmar o ensinamento literal de Jesus Cristo sobre o adultério:

«No capítulo 19 do evangelho de Mateus, Jesus fala do adultério. E o versículo 9 deste capítulo é o invocado para defender o não acesso aos sacramentos por parte dos recasados, considerando-os adúlteros, porque Jesus o afirma literalmente.»

Em que ficamos? Se Jesus ensina algo tão claro e de forma tão literal, podemos ignorar? Podemos abandonar essas “expressões antigas”?

Para terminar, lemos:

«Não haveria maior infidelidade a Jesus Cristo e à tradição da Igreja se um Papa se limitasse a repetir o passado.»

E todavia, repetir as palavras “passadas” de Jesus Cristo sobre o adultério, palavras bem difíceis (já diziam na altura os seus discípulos), é obviamente ser fiel a Jesus Cristo e à Tradição da Igreja.

Não há futuro para uma pastoral alheada dos ensinamentos claros de Jesus Cristo. Não há futuro para uma pastoral que parta de uma mentira, que será dizer às pessoas que vivem maritalmente com outro que não o legítimo cônjuge que não estão a pecar gravemente.

A verdade liberta, e só há esperança para uma pastoral cujo primeiro passo seja confrontar o pecador com a franqueza da verdade moral. Saber que estamos em pecado grave é o primeiro passo para sairmos dessa condição. A seguir, tem que vir o arrependimento, no contexto do sacramento da penitência. E então sim, em estado de graça e em coerência, comungar do Corpo do Senhor.

Não há pastoral eficaz sem amor. E não há amor sem verdade. Pelo que não há pastoral eficaz sem verdade.

É propositado terminar com uma citação da “Lumen Fidei” do Santo Padre acerca da complementaridade entre verdade e amor:

"Se o amor tem necessidade da verdade, também a verdade precisa do amor; amor e verdade não se podem separar. Sem o amor, a verdade torna-se fria, impessoal, gravosa para a vida concreta da pessoa. A verdade que buscamos, a verdade que dá significado aos nossos passos, ilumina-nos quando somos tocados pelo amor. Quem ama, compreende que o amor é experiência da verdade, compreende que é precisamente ele que abre os nossos olhos para verem a realidade inteira, de maneira nova, em união com a pessoa amada.” - Papa Francisco, 'Lumen Fidei', 27.

Bernardo Motta

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