segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O Deus Na Caverna, uma descrição magnífica do Natal – G.K. Chesterton

Este esboço da história humana começou numa caverna: a ciência popular associou o conceito de caverna ao de cavernícola. Nas cavernas descobriram-se desenhos arcaicos de animais. A segunda metade da História humana, que equivale a uma nova criação do mundo, começa, também, numa caverna.

E para que a semelhança seja maior, também existem animais nesta caverna. Porque se trata de uma cova usada como estábulo pelos montanheses que habitavam as terras altas dos arredores de Belém e que, ainda hoje, recolhem, ao cair da noite, os seus gados a esses lugares. A ela chegou, uma noite, um casal sem lar, que teve de compartilhar, com as bestas, daquele refugio subterrâneo, depois de todas as portas das casas da povoação se lhes terem fechado, surdas às suas súplicas.

Foi aí, debaixo da terra pisada pelos indiferentes, que nasceu Jesus Cristo. Mas, nesta segunda Criação havia, sem dúvida, alguma coisa de simbólico como nas rochas primitivas. Deus foi, também, um cavernícola; também Ele desenhou figuras estranhas de criaturas, de caprichoso colorido sobre os muros do mundo, porém, a estas figuras lhe deu Ele vida desde logo.

A lenda e a literatura, inesgotáveis, repetem, à saciedade, as variantes deste paradoxo: que as mãos que fizeram as estrelas e o sol foram tão pequenas que não alcançaram, sequer, à cabeça das bestas que cercavam o seu berço. Sobre este paradoxo, sobre esta pilhéria, diríamos melhor, se funda toda a literatura da nossa Fé. O gracejo escapa à toda a crítica científica, tem todas as virtudes da verdade, salvo a de não ser verdade.

O contraste entre a criação cósmica e o nascimento infantil e minúsculo foi repetido, reiterado, sublinhado, cantado e salmodeado em centenas de milhares de hinos, de ritos, de cânticos, de poemas, de descrições e de pinturas. Por ele, necessita-se de um espírito crítico muito superior para emancipar-se da sugestão constante da associação de ideias. 

Os críticos modernos dão uma grande importância à educação na vida e à psicologia na educação. Estão fartos de dizer-nos que as primeiras impressões são as que fixam o caráter, assinalando, como exemplos angustiosos o do rapaz que perturba seu sentido visual com as cores falsas de um prisma, ou cujos nervos são prematuramente sacudidos por um exterior cacofônico. Nós fundamos, precisamente nisto, a nossa afirmação de que há uma diferença entre o nascer cristão e o nascer judeu, muçulmano ou ateu.

As crianças católicas, em vez disso, aprenderam tudo nos cadernos e nas estampas. As protestantes nas narrativas, e uma das primeiras impressões recebidas pela sua imaginação foi esta combinação terrível de ideias em contraste. Não se trata simplesmente de uma diferença teológica, mas sim de uma diferença psicológica. 

Os agnósticos e os ateus, que na sua juventude conheceram o Nascimento, que assistiram a esta festa cristã, não poderão nunca impedir, por maiores esforços que façam, que na sua mente se opere esta associação de ideias: a ideia de um menino e a ideia de uma força desconhecida capaz de sustentar as estrelas. O seu instinto fará, imediatamente, esta associação de ideias, por mais que a sua razão procure convencer-se de que não há necessidade de realizar-la. 

Mais ainda: a simples visão de um quadro que representa uma mãe com um filho terá para ele como que um sabor de religião, e, da mesma maneira, experimentará uma sensação de piedade e de ternura com a tão só menção do nome de Deus. Ainda que ambas estas ideias não necessitem estar combinadas. Naturalmente que não seriam associadas para a imaginação de um grego ou de um chinês antigos, fossem eles Aristóteles ou Confúcio.

Não obstante se hão arraigado em nossa mente, porque somos cristãos, e em consequência da Natividade. Quer isso dizer que psicologicamente somos cristãos, ainda que teologicamente não queiramos sê-lo. Há uma grande diferença entre o homem que sabe e o que não sabe. É indispensável que esta diferença exista entre o muçulmano, o judeu e nós mesmos, para que no nosso horóscopo particular se verifique essa cruz de duas luzes particulares, essa conjunção de duas estrelas. Omnipotência e impotência, ou divindade e infância, formam, definitivamente, uma espécie de epigrama que não se pode apagar nem desfigurar por milhões e milhões de vezes que se repita. Belém é, enfaticamente, o lugar onde os extremos se tocam.

Aqui começa — não é necessário dizê-lo — uma nova influência para a humanização do Cristianismo.
Se o mundo necessitasse tomar um aspecto do Cristianismo que não desse lugar a controvérsias, seguramente escolheria o Natal. E não é necessário falar do que se poderia estimar um aspecto controvertível (não quero em um só instante de meu raciocínio imaginar porque): o respeito unânime à Santíssima Virgem. Quando eu era pequeno, uma geração mais puritana opôs-se à colocação de uma estátua, numa igreja paroquial, representando a Virgem e o Menino Jesus. Depois de muitas discussões, transigiu-se em que se suprimisse o Menino. Acreditava-se que a Mãe tornava-se menos perigosa despojando-a do que lhe era uma espécie de defesa.

Tudo inútil. Não se pode arrancar dos braços da estátua de uma Mãe a figura do seu recém-nascido. Não se pode separar dela. Da mesma maneira, não se pode suspender no ar a ideia de um recém-nascido, isola-la, esmiúça-la. A ideia da Mãe vai, forçosamente, unida, associada. Não se pode chegar ao filho senão através da Mãe. Se pensamos em Cristo, neste aspecto, a ideia segue, como segue a história. Não se pode separar a ideia de Cristo da ideia da Natividade, e, como nos quadros antigos, compreender que estas duas sagradas cabeças estão demasiado juntas, demasiado unidas, para que seja possível estabelecer uma separação entre os halos luminosos que as circundam.

O Universo reencontra-se. No meu entender, todos os olhares de poderio e de esforço esparramados por fora, pelas coisas grandes, voltam-se, agora, para dentro, para as coisas menores. As imagens multiplicam ante esta maravilha de múltiplos olhares convergentes que dão às imagens católicas tantas cores como as que tem a cauda do pavão real. Deus, que fora, sempre, uma circunferência, é considerado como um centro, e um centro é infinitamente pequeno. A espiral espiritual vem de fora para dentro não de dentro para fora. É, neste sentido, centrípeta, não centrífuga. A fé se converte, em muitíssimos aspectos, numa religião de coisas pequenas. Mas, as suas tradições, consagradas na arte, na literatura e nas lendas populares, justificam, suficientemente, esse maravilhoso paradoxo que significa a Divindade no berço. Talvez não se tenha concebido, ainda, com tanta clareza, a significação da Divindade na Caverna.

Tem se procurado reproduzir a cena de Belém com a maior pontualidade de tempo e de espaço, de paisagem e de arquitetura. Mas, enquanto todos coincidem em que se trata de um estábulo, poucos sabem que se trata, também, de uma caverna. Alguns críticos têm querido encontrar uma contradição entre estas duas coisas, de forma que demonstram saber muito pouco dos costumes da Palestina. E, como tenham visto diferenças em onde não as há, bom será assinalar essas diferenças onde elas existem. 

Porque um crítico bem conhecido disse, por exemplo, que Cristo, nascido numa caverna rochosa, é como Mitra, saindo de uma rocha. Fez, assim, uma paródia de religião comparativa, comparando uma mentira com uma história. Isto, à parte da ideia de Palas saindo amadurecido do cérebro de Zeus, é o que mais se pode opor à ideia de um Deus nascido como um menino qualquer e em situação de dependência absoluta da sua mãe. É estúpido procurar equipará-las apenas pela repetição do conceito pedra. Tão estúpido como comparar o castigo do Dilúvio com o baptismo no Jordão, porque em ambos os acontecimentos intervém a substância água.

O evidente é, como dizia antes, que a caverna não foi interpretada tão comum e claramente como um símbolo, como as demais realidades que cercam a primeira Natividade. A explicação pode ser encontrada na dificuldade que apresenta o achado de uma nova dimensão. Cristo nasceu não só na superfície do mundo, mas, dentro do mundo. O primeiro acto do drama divino desenvolveu-se não no cenário superficial, à vista dos que o olhavam, senão num cenário escondido e escuro, distante da luz; e é esta uma ideia muito difícil de expressar-se de uma maneira artística. Os artistas de todos os tempos, quanto mais sabiam de realismo e de perspectiva, menos podiam pintar, ao mesmo tempo, os Anjos no Céu e os rebanhos nas colinas, e a glória da obscuridade, debaixo e dentro dessas colinas.

Seria inútil procurar dizer nada de original, nada de novo, acerca da concepção de uma divindade nascida como um Jesus Cristo, como um caído sem lar e sem lei, e, precisamente, com os atributos da máxima lei e do máximo dever para os pobres e para os sem lei. Naquele momento é quando adquire profunda e verdadeira significação a verdade de que já não há mais escravos. Haverá, não obstante, gente que carregue com este título legal, enquanto a Igreja não tiver poder suficiente para extirpá-lo; mas, já não existirá o estado de servilismo dos pagãos. O indivíduo adquire uma importância nova. Um homem não pode já ser um simples meio para um fim. De nenhuma maneira, o meio para o fim de outro semelhante. 

Este facto popular e fraternal tem sua analogia com a história dos Pastores que se encontraram, tête-a-tête, um dia, falando com o Rei dos Céus. Os homens do povo, os homens humildes, como os pastores, foram, em todas as partes, os criadores dos mitos. Foram eles os criadores das ideias venturosas, da mitologia, que foi bem como um afã de investigação. Souberam decifrar que a alma de uma paisagem é uma história e a alma de uma história é uma personalidade.

O racionalismo destroçara já estes tesouros de imaginação, realmente irracionais, do homem rústico, ao qual se arrancava do lar com um procedimento sistemático de escravidão. Sobre todas estas ingenuidades caiu um crepúsculo de desilusão. As Arcádias desaparecem ao tirarem-nas do bosque. Pan morreu, e os pastores esparramaram-se com as suas ovelhas. E, no entanto, a hora estava próxima em que tudo ia mudar. Ainda que ninguém o ouvisse, estava próxima a hora em que das montanhas partiria um grito de libertação, numa língua desconhecida. 

Os pastores encontravam, afinal, o seu pastor. O que encontravam, então, estava de acordo com as coisas que viam todos os dias. O populacho equivocou-se em muitas coisas, mas não se equivocou crendo que as coisas sagradas teriam uma habitação, e que a Divindade não necessita desdenhar dos limites do tempo e do espaço. Os bárbaros que conceberam a fantástica ideia do sol captado e encerrado numa caixa, ou o mito selvagem daquele deus que era resgatado com a pedra com que abatia a seu inimigo, estavam mais aproximados do sublime segredo da caverna e sabiam mais das vicissitudes do mundo que todos os habitantes das cidades que circundavam o Mediterrâneo e que se contentaram com frias abstrações ou com generalizações cosmopolitas; mais que todos os que fiavam delgadíssimo o pensamento na troca do transcendentalismo de Plauto ou do orientalismo de Pitágoras.

Todos sabemos que na representação da história popular dos pastores, em autos e comédias, atribui-se a eles o vestido, o idioma e a paisagem, separadamente das comarcas de Europa e da Inglaterra. Sabemos, também, que, desses pastores, uns falam o dialeto de Somerset, e outros nos dizem que levam o seu gado de Conway para Clyde. Muitos sabemos, não obstante, quanta verdade encerra este erro, quão sábio, quão artístico, quão intensamente cristão e católico é este anacronismo. Por isso é lamentável que alguns críticos modernos vejam só um classicismo forçado no facto de que homens como Crashaw e Herrick concebessem os pastores de Belém sob a forma dos pastores virgilianos. E, não obstante, eles estão certos, e, convertendo sua comédia de Belém em uma égloga latina, não fizeram mais do que unir os dos mais importantes degraus da história humana. Virgílio, como já vimos, representa o paganismo sensato, enfrentando o paganismo insensato que sacrifica o homem; mas, as virtudes virgilianas e o seu paganismo sensato estavam em incurável decadência, delineando um problema cuja solução não chegou a revelar-se aos Pastores.

Se o mundo houvesse feito uma escolha, ao cansar-se de ser demoníaco, se teria curado, simplesmente, com o ser sensato. Mas, também, se tivesse se cansado de ser sensato, o que teria acontecido? O sucesso esperado é o que alegra aos pastores da égloga arcadiana. Uma das églogas é considerada uma profecia do que ia acontecer. Mas onde encontramos maior identificação com o grande acontecimento é no tom e na dicção acidental do grande poeta, e, mais ainda, nas próprias frases humanas dos pastores virgilianos: incipe, parve puer, risu cognoscere matrem… Nele encontram o melhor que existe nas remotas tradições dos latinos. Alguma coisa mais que um ídolo de madeira presidindo para sempre a família humana: um Deus e um Lar. A mitologia tem muitos erros, porém não andou muito mal em ser tão carnal como a Encarnação. Com voz parecida à que se supõe ressoou nas grutas, pode gritar outra vez: “Vimos, Ele nos viu, um Deus visível!”, a cuja voz os pastores dançam alegremente nos cimos sobre a frieza dos filósofos. Mas os filósofos também ouviram o grito.

Entretanto, fica, ainda, outra história estranha e bela. Os filósofos chegaram às terras do Oriente, coroados com a majestade de reis e vestidos com o mistério dos magos. Seu mistério é tão melodioso como seus nomes: Melchor, Gaspar, Baltasar. Acompanha-os toda a sabedoria que tem olhado as estrelas da Caldeia e o sol da Pérsia. Nele vemos a mesma curiosidade que impulsiona a todos os sábios. Anima-os o mesmo ideal humano, como se fossem seus nomes Confúcio, Pitágoras ou Platão.

Eram dos que indagavam, não a lenda, mas a verdade das coisas. A sua sede de verdade, era sede de Deus, e tiveram a sua recompensa. O prémio foi ver completo o que estava incompleto. Nas suas próprias traduções e nos seus próprios raciocínios encontravam confirmado que aquilo era a Verdade. Confúcio teria encontrado uma nova fundação da família na Sagrada Família. Buda veria novas renúncias: de estrelas mais que de jóias, de divindade melhor do que realezas. Buda desceria do seu paraíso impessoal para adorar a uma pessoa. Confúcio deixaria os seus templos de adoração ao passado para vir adorar a uma criança, a um Menino.

O novo cosmos era mais amplo que o velho, porque o Cristianismo é maior que a Criação, tal e como era antes de Cristo, porque nele se incluem as coisas que eram e as que não eram. Vale a pena insistir neste ponto, estabelecendo uma comparação com a crença piedosa dos chineses, que é semelhante à virtude de outras crenças pagãs. Ninguém ignora que forma parte das nossas doutrinas um razoável respeito aos pais, do qual Deus mesmo participou, durante a sua meninice, com respeito aos seus pais da terra. Mas, no respeitante ao amor dos pais, para Ele, a ideia é completamente distinta à da crença confuciana. O menino Cristo nunca é semelhante ao menino Confúcio; o nosso misticismo concebe-o numa eterna infância. A Confúcio não se lhe aparecera nunca o Menino como chegou aos braços de S. Francisco.

A Igreja contém o que o mundo não contém. A própria vida não atende tão bem como a Igreja a todas as necessidades de viver. A Igreja pode orgulhar-se da sua superioridade sobre todas as religiões e sobre todas as filosofias.

Onde têm os estóicos e os adoradores do passado um Menino Jesus? Onde está a Nossa Senhora dos muçulmanos, a mulher que não foi feita para nenhum homem e que está sentada por cima de todos os anjos? Qual é o S. Miguel dos monges de Buda, cavaleiro e clarim que guarda para cada soldado a honra da espada? Quem poderia representar S. Tomás de Aquino na mitologia do bramanismo, ele que restabeleceu a ciência e o raciocínio da Cristandade?

E o mesmo nas filosofias ou heresias modernas. Como passaria Francisco, o Trovador, entre os calvinistas e, ainda, entre os utilitaristas da escola de Manchester? Como passaria Joana d’Arc, uma mulher, esgrimindo a espada que conduzia os homens à guerra, entre os Quakers ou a seita toltoiana dos pacifistas? E, entretanto, homens como Bossuet e Pascal são tão lógicos e tão analistas como qualquer calvinista ou utilitarista, e inumeráveis santos católicos passaram suas vidas predicando a paz e evitando as guerras. Outro tanto sucede com as ultra-modernas tentativas de novas religiões. Nenhuma foi capaz de fazer uma coisa que, ainda em sendo maior que o Credo, não deixasse algo de fora.

Os teosofistas edificam um panteon, mas um panteon só para panteístas. Chamam, ostensivamente, Parlamento de Religiões ao que não é mais do que um parlamento de pedantes. Elevou-se um panteon fazem dois mil anos nas margens do Mediterrâneo e convidou-se os cristãos a colocarem a imagem de Cristo ao lado das de Júpiter, de Mitra, de Osíris, de Átis e de Amon. A negação dos cristãos foi o que mudou o curso da História. Se os cristãos tivessem aceitado, eles e o mundo inteiro, teriam caído — se nos permite a grotesca metáfora — no grande caldeirão onde se liquidavam já, em cosmopolita corrupção, todos os outros mitos e mistérios.

Há a registrar o importante facto de que os Magos, que representam no Nascimento o mistério e a filosofia, foram levados pelo desejo de indagar alguma coisa nova, e encontraram, realmente, alguma coisa inesperada. Porque, nesta ideia de investigação e de descobrimento que inspira a Natividade, chega-se, com efeito, à descoberta de uma verdade científica.

Nas outras figuras místicas da milagrosa comédia — no Anjo e na Mãe, nos pastores e nos soldados de Herodes — poderão ver-se os aspectos, às vezes, mais simples e mais sobrenaturais, porém, elementares ou mais emocionantes. Mas, aos Reis do Oriente há que considerá-los no seu desejo de sabedoria; a luz que vão receber dirige-se, directamente, ao intelecto. E a luz é esta: que o credo católico é o único católico e nada mais que católico. A filosofia da Igreja é universal. A filosofia dos filósofos não o é. 

Se Platão ou Pitágoras ou Aristóteles houvessem podido receber por um instante a luz saída da pequena cova, se convenceriam, eles mesmos, de que sua própria luz não era universal. O descobrimento desta grande verdade é o que dá a sua tradicional majestade e mistério às figuras dos três Reis; o descobrimento de que a religião abarca mais do que a filosofia, e que esta Religião é a que mais abarca de todas as religiões. O grande paradoxo do grupo que contemplamos na caverna é que, enquanto a nossa emoção tem uma simplicidade infantil, nossos pensamentos enlaçam-se com uma complexidade infinita. Contentemo-nos em dizer que a mitologia apareceu com os pastores, e a filosofia, com os Magos, e que ambas se fundaram no reconhecimento da religião.

Houve um terceiro elemento que não deve ser ignorado. Esteve presente, com efeito, desde as primeiras cenas do drama aquele Inimigo que sujou as legendas com o pecado e congelou as teorias do ateísmo. Este Inimigo não tardou em ter uma intervenção imediata. Herodes, alarmado com os rumores de que surgira um misterioso rival, revive o gesto selvagem dos caprichosos déspotas da Ásia, e ordena o assassinato da nova geração popular. Toda a gente conhece a história, mas nem todos perceberam o seu significado, nem, ainda, o flagrante contraste em que está com as colunas corintias e com as calçadas romanas daquele mundo superficialmente civilizado. Quando o tenebroso plano começou a fazer brilhar os olhos de Herodes, pode-se ele aperceber de que uma sombra pardacenta se lhe projectava por detrás, olhando por cima dos seus ombros. A mirada era a do Moloch dos cartagineses. Era a do demónio que, neste primeiro festival da Natividade queria celebrar, também, a sua própria festa.

Se não compreendemos bem a presença do Inimigo, estamos expostos a falsear a significação da Natividade. A Natividade para nós, no Cristianismo, chegou a ser uma coisa doce, aprazível, singela, quando, na realidade é uma coisa muito complexa. Não é uma nota única, senão o som resultante e simultâneo de muitas notas juntas: a humildade, a alegria, a gratidão, o medo místico; mas, ao mesmo tempo, o alarma e o drama. Não é só uma comemoração para os pacifistas e para os romeiros; não é só uma conferência da paz entre judeus, nem só uma festa de inverno escandinavo. 

Há nela, também, algo de luta e de desafio. Alguma coisa que faz com que quando os sinos tangem, à meia-noite, o seu tangido seja horrível como o troar do canhão numa batalha, numa batalha que se acaba de ganhar. A atmosfera de festa que respiramos nas Natividades, como uma reminiscência da festa daquele sagrado dia, não nos pode fazer esquecer que a festa do Nascimento celebrou-se numa masmorra, numa como fortaleza subterrânea adiantada no campo inimigo, cujas hordas pisavam por cima. Herodes, inquieto, sentia que o ataque vinha de baixo da terra e se desmoronava como se desmoronava um palácio. O significado é bem clara: de baixo viria a força que sacudiria e abateria o orgulho das torres e dos palácios.

Os homens, que, até então, tinham dirigido as suas vistas para o alto, hão de olhar para baixo, agora, se quiserem descobrir o Céu. O Olimpo permanecia suspenso no firmamento como uma nuvem branca e quieta de formas suntuosas. A filosofia estava, ainda, encimada mais alto, nos tronos reais, enquanto Cristo nascia numa cova e a cristandade nas catacumbas. A realeza, a majestade hão de ser recuperadas pelo seu verdadeiro possuidor, por alguma coisa que indubitavelmente é uma revolução.

O grande paradoxo da caverna é esse: por um lado, é um buraco, um recanto desprezível onde os sem-pátria se amontoam como escórias; por outro, é como um palácio encantado, algo mui valioso que os tiranos procuram como um tesouro. Os falsos reis mandam para esse recanto os párias, porque não querem recordá-los; mas, também, porque, com pesar seu, querem tê-los sempre presentes. Este paradoxo é a iniciação da vida da Igreja. Era importante ao mesmo tempo que insignificante e impotente. E era importante porque era intolerável, e justo é dizer que era intolerável porque, por sua vez, era intolerante.

Herodes tem o seu papel na comédia milagrosa de Belém, porque significa a ameaça à Igreja militante e no-la apresenta, desde o princípio, perseguida e obrigada a lutar por sua vida. E isto é o que nos propúnhamos neste lugar. Reunir a combinação de ideias que edificam a ideia cristã e católica, e fazer notar que todas elas cristalizaram na bela história da Natividade. Há duas coisas distintas que formam, entretanto, uma só coisa. A primeira é a intenção humana de que um céu há de ser, assim, alguma coisa tão local e tão retraída como um lar. É a ideia que perseguem todos os poetas e todos os mitos pagãos: que uma paragem qualquer pode ser o altar de um deus ou a habitação dum bem-aventurado. Eu não compreendo por que razão o racionalismo se nega a satisfazer esta necessidade. O paganismo é, neste ponto, menos absurdo, pois o caso de Belém e de Jesus está na história de Delos e Delfi, e não está em todo o universo de Lucrécio, nem em todo o universo de Spencer.

O segundo elemento deste estudo é a realização de uma filosofia mais vasta que as outras filosofias: mais vasta que a de Lucrécio e infinitamente mais vasta que a de Spencer. Por ela observamos o mundo através de mil janelas, enquanto que os antigos estóicos e os modernos agnósticos não dispunham senão de uma. Olha a vida com milhares de olhos, correspondentes às mil e mil classes de gente, ali onde os estóicos e os agnósticos não têm mais que um ponto de vista individual. Esta filosofia tem alguma coisa para cada categoria de homem; interpreta os segredos de cada psicologia; é cauta ante as tentações do Demónio; é capaz de distinguir entre as maravilhas autênticas e falsas e resolve os casos mais árduos e mais diversos, tudo com uma multiplicidade e um subjetivismo e uma compreensão de todas as variedades da vida, que nenhuma das filosofias antigas nem modernas foram capazes de alcançar.

O terceiro ponto é que, ao mesmo tempo que reúne a localização da poesia e a maior amplitude da mais ampla filosofia, é, também uma luta e um repto. Porque se deliberadamente está disposta a abraçar qualquer aspecto da verdade, está inflexivelmente disposta a batalhar contra qualquer aspecto do erro. Requer de todo o homem que lute por ela, e toda a classe de armas para essa luta. Proclamava a paz na terra, porém, não esquece nunca porque houve guerra nos Céus. Essa é a trindade de verdades simbolizadas aqui por três personagens da velha história da Natividade: os pastores, os Reis e aquele outro rei que assassinou os meninos.

Não é verdade que as outras religiões sejam, neste aspecto, suas rivais. Não é verdade, tampouco, que qualquer delas reúna essa combinação de caracteres. O budismo jacta-se de ser místico em igual grau, porém, não aspira ser, em grau igual, militante. O islamismo também se jacta de ser em grau igual militante, porém, não quer aspirar a ser em igual grau metafísico e subtil. O confucionismo jacta-se de satisfazer a sede de ordem e de razão dos filósofos, mas não pode satisfazer a sede dos místicos de milagre e de sacramento e de consagração de coisas concretas. São muitas as seguranças da presença de um espírito ao mesmo tempo universal e único.

Resumindo o que é o símbolo e o tema deste capítulo: que não há nenhum motivo na lenda pagã, nem no anedotário filosófico, nem no acontecimento histórico, capaz de impressionar-nos tão profundamente como a palavra Belém; que nenhum nascimento ou infância de um deus ou de um sábio pôde emocionar-nos como a Natividade. Porque aqueles serão, sempre, ou demasiado frios e frívolos, ou demasiado formais e clássicos ou, ainda, demasiadamente simples e selvagens ou ocultos e complicados. Ninguém, quaisquer que sejam as suas ideias, pode ver esses factos como algo íntimo e próprio.

A verdade é esta: que neste episódio da natureza humana, que é o Nascimento, há um caráter individual e peculiarissímo, psicologicamente substancial que não se pode interpretar como uma mera lenda ou a simples história da vida de um grande homem. Porque não incluía as nossas mentes, sistematicamente, para a grandeza, para essa admiração empolada e exagerada dos reis e dos deuses a que, em todas as idades, encontrou propícia a mente humana, senão que é alguma coisa substancial em nós, que nos surpreende de dentro do nosso próprio ser, como se, explorando a nossa habitação espiritual, déramos, de pronto, com um aposento ignorado, até então, do qual saíra uma clara luminosidade. 

Alguma coisa que, ainda aos mais endurecidos corações, atraiçoa, com uma irresistível atração para o bem. Alguma coisa que não está feita com o que o mundo chamaria “matéria forte”. Alguma coisa que é tudo o que existe em nós de ternura eterna. Alguma coisa que é a palavra quebrada e a razão perdida, que se concretizam e se fazem positivas. Alguma coisa, por fim, pela qual os reis exóticos vieram de um país distante, os pastores deixaram as suas correrias na montanha e a noite e a caverna imperaram sós, recebendo algo que era mais humano do que a própria Humanidade.

G.K. Chesterton in 'The Everlasting Man'

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