quinta-feira, 2 de maio de 2013

"Acompanha os funerais de quem não tem ninguém"

Dentro do caixão segue mais um dos solitários de Lisboa. Um homem, sem nome, sem idade, sem história. À volta, ninguém. Ninguém para o chorar, para sentir a sua falta, ninguém para se despedir, naquele que é o derradeiro momento. No cortejo, além do padre e dos funcionários da funerária, só uma mulher. Em silêncio. Na mão, uma flor. 

Ana Campos Reis tem 60 anos e há dez que acompanha os funerais de quem não tem ninguém. Foi essa a missão que pediu para si quando se ligou à Irmandade de São Roque. Já terá assistido a perto de mil funerais. Mil almas que partiram sem deixar saudades. Muitas vezes, são verdadeiras almas penadas de quem nada se sabe. Nem nome, nem idade, nem história. Como este homem que agora avança, devagarinho, até à última morada, no Cemitério de Benfica. Ao caminhar, uns passos atrás da urna, Ana Campos Reis pensa: «Quem és tu? Quem foste? De onde vieste? O que terá sido a tua vida para que tenhas acabado assim, só, sem vivalma que te venha chorar?» Depois, reza. 

Quando são mortos com nome, a enfermeira da Santa Casa da Misericórdia procura a sua história, tenta saber quem eram, que vida foi a sua, se alguma vez lhe passaram pelas mãos, no seu trajeto de vida. «O que mais me dói são as crianças. Os bebés. Os fetos. Normalmente dou-lhes um nome. Teresa. João. Rita. Onde estão os teus pais? O que falhou para não estarem aqui, no teu último momento? Porque é que tiveste uma vida tão curta?» 

Todos estes mortos solitários têm direito a uma oração, sentida, todos recebem uma rosa vermelha, todos têm a presença, fiel, de uma mulher que vive e viveu toda a vida com os olhos postos nos outros. Uma mulher de fé, apesar de toda a miséria e abandono a que já assistiu em mais de quarenta anos de trabalho na Misericórdia de Lisboa. Uma mulher de fé, apesar de ter perdido um filho, num acidente, em plena juventude. «Essa foi a mais aguda de todas as dores. E talvez seja por isso que é para mim tão importante estar aqui, nos funerais dos que não têm ninguém. Sinto-me sempre perto do meu filho, nestes momentos. Rezo por quem partiu mas rezo também por ele. É, de certo modo, uma forma de estarmos juntos outra vez.» in DN

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