Dentro
do caixão segue mais um dos solitários de Lisboa. Um homem, sem
nome, sem idade, sem história. À volta, ninguém. Ninguém para o
chorar, para sentir a sua falta, ninguém para se despedir, naquele
que é o derradeiro momento. No cortejo, além do padre e dos
funcionários da funerária, só uma mulher. Em silêncio. Na mão,
uma flor.
Ana
Campos Reis tem 60 anos e há dez que acompanha os funerais de quem
não tem ninguém. Foi essa a missão que pediu para si quando se
ligou à Irmandade de São Roque. Já terá assistido a perto de mil
funerais. Mil almas que partiram sem deixar saudades. Muitas vezes,
são verdadeiras almas penadas de quem nada se sabe. Nem nome, nem
idade, nem história. Como este homem que agora avança, devagarinho,
até à última morada, no Cemitério de Benfica. Ao caminhar, uns
passos atrás da urna, Ana Campos Reis pensa: «Quem és tu? Quem
foste? De onde vieste? O que terá sido a tua vida para que tenhas
acabado assim, só, sem vivalma que te venha chorar?» Depois, reza.
Quando
são mortos com nome, a enfermeira da Santa Casa da Misericórdia
procura a sua história, tenta saber quem eram, que vida foi a sua,
se alguma vez lhe passaram pelas mãos, no seu trajeto de vida. «O
que mais me dói são as crianças. Os bebés. Os fetos. Normalmente
dou-lhes um nome. Teresa. João. Rita. Onde estão os teus pais? O
que falhou para não estarem aqui, no teu último momento? Porque é
que tiveste uma vida tão curta?»
Todos
estes mortos solitários têm direito a uma oração, sentida, todos
recebem uma rosa vermelha, todos têm a presença, fiel, de uma
mulher que vive e viveu toda a vida com os olhos postos nos outros.
Uma mulher de fé, apesar de toda a miséria e abandono a que já
assistiu em mais de quarenta anos de trabalho na Misericórdia de
Lisboa. Uma mulher de fé, apesar de ter perdido um filho, num
acidente, em plena juventude. «Essa foi a mais aguda de todas as
dores. E talvez seja por isso que é para mim tão importante estar
aqui, nos funerais dos que não têm ninguém. Sinto-me sempre perto
do meu filho, nestes momentos. Rezo por quem partiu mas rezo também
por ele. É, de certo modo, uma forma de estarmos juntos outra vez.» in DN
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