Segundo o que me parece, esse texto apresenta alguns equívocos e más-interpretações que podem causar (e já causaram) confusão e perplexidade nos fiéis católicos, pelo que se torna necessária uma resposta a alguns dos argumentos apresentados.
Sagrada Escritura
Diz o Pe. Miguel que no Evangelho de Mateus foi introduzida uma excepção que possibilita o divórcio no caso do adultério da mulher:
“Se alguém repudiar a sua mulher – excepto em caso de adultério – e casar com outra, comete adultério” (Mt 19, 9; cf. Mt 5, 32)
Estranhamente o Pe. Miguel começa o seu texto com a seguinte frase: “O casamento cristão é indissolúvel.” Mas logo se apressa a tentar mostrar uma possível excepção à regra. Ficamos sem saber se realmente o casamento é indissolúvel ou se é solúvel em determinados casos, como seria o adultério de um dos cônjuges, justa-causa para o divórcio. As duas coisas não podem co-existir, são mutuamente exclusivas.
Analisando o texto de Mateus, em grego, percebemos que a palavra traduzia por adultério (para se referir à acção da mulher) é πορνείᾳ (porneia). Enquanto na segunda referência a adultério a palavra é μοιχᾶται (do verbo μοιχάομαι, que quer dizer “cometer adultério”; em latim é “mœchatur”).
Que estranho, havia duas palavras para adultério? Bem, na realidade adultério não é a melhor tradução para “porneia”, uma melhor seria “fornicação”(de facto a Vulgata usa “fornicationem”), “prostituição” “imoralidade sexual”, “incesto”, “relação anti-natural”…
Em muitos casos a tradução de "porneia" é feita com “união ilegítima” ou “falso matrimónio”. Isto quer dizer que apenas uma união inválida desde o começo poderia permitir que se repudiasse a mulher. Por exemplo um caso de incesto, em que a primeira união seria nula, apesar de aparentemente ter existido.
Existe também a questão filológica. A frase diz “μὴ ἐπὶ πορνείᾳ”, e a palavra “μὴ” pode ser traduzida por “nem sequer”. Seria então um reforço da indissolubilidade do matrimónio e não uma excepção.
Isto estaria mais concordante com a reacção dos discípulos no versículo seguinte, onde mostrando a sua perplexidade perante esta “dureza” da lei apresentada por Jesus dizem: “Se tal é a condição do homem a respeito da mulher, é melhor não se casar!” (Mt 19, 10)
Remeto mais informações para a nota explicativa da Bíblia de Jerusalém, no fim deste texto (A).
Em relação à “excepção paulina”, não pode comparar-se aos casos dos católicos “divorciados e recasados”. O casamento misto é permitido para um católico que quer casar com uma mulher que não é católica (ou vice-versa). Para evitar que viva em concubinato, a Igreja permite que se case, mas não pode ser um sacramento porque apenas um dos dois é baptizado. O privilégio paulino dissolve o casamento natural (misto) em ordem a um casamento sacramental.
Padres da Igreja
Os Padres da Igreja, mais do que entrar na exegese da gramática do Novo Testamento, interrogaram-se sobre se, por causa dessa passagem, seria possível a separação entre o homem e a mulher. Mas nunca consideram a possibilidade de considerar legítima uma segunda união, sendo a anterior ainda válida, e muito menos o acesso aos Sacramentos. Remeto alguns textos dos Padres da Igreja, incluindo o referido S. Basílio, para o fim do texto (B).
A tradição ininterrupta da Igreja desta matéria não deixa grande margem para dúvidas neste texto do Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé, Cardeal Muller, que tem ainda o bónus de explicar bem os erros da doutrina Ortodoxa ao permitir “recasamentos”:
«Os Padres da Igreja e os Concílios constituem sucessivamente um importante testemunho para o desenvolvimento da posição eclesiástica. Segundo os Padres as instruções bíblicas são vinculadoras. Eles não admitem as leis civis sobre o divórcio considerando-as incompatíveis com o pedido de Jesus. A Igreja dos Padres, em obediência ao Evangelho, rejeitam o divórcio e o segundo matrimónio, em relação a esta questão o testemunho dos Padres é inequívoco.
Na época patrística os crentes separados que se tinham voltado a casar civilmente não eram readmitidos aos sacramentos nem sequer depois de um período de penitência. Alguns textos patrísticos deixam entender que os abusos nem sempre eram rigorosamente rejeitados e que por vezes foram procuradas soluções pastorais para raríssimos casos-limite.
Mais tarde nalgumas zonas, sobretudo por causa da crescente interdependência entre Igreja e Estado, chegou-se a compromissos maiores. No Oriente este desenvolvimento prosseguiu o seu curso e levou, sobretudo depois da separação da Cátedra de Pedro, a uma prática cada vez mais liberal. Hoje nas Igrejas ortodoxas existe uma variedade de causas para o divórcio, que normalmente são justificadas com referência à oikonomia, a clemência pastoral para cada um dos casos difíceis, e abrem o caminho a um segundo ou terceiro matrimónio com carácter penitencial. Esta prática não é coerente com a vontade de Deus, claramente expressa pelas palavras de Jesus acerca da indissolubilidade do matrimónio, e isto representa certamente uma questão ecuménica que não deve ser subestimada.
No Ocidente, a reforma gregoriana contrastou as tendências de liberalização e voltou a propor o conceito originário das Escrituras e dos Padres. A Igreja católica defendeu a absoluta indissolubilidade do matrimónio até à custa de grandes sacrifícios e sofrimentos. O cisma da «Igreja da Inglaterra», que se separou do Sucessor de Pedro, aconteceu não por causa de diferenças doutrinais, mas porque o Papa, em obediência à palavra de Jesus, não podia favorecer o pedido do rei Henrique VIII para a dissolução do seu matrimónio.
O Concílio de Trento confirmou a doutrina da indissolubilidade do matrimónio sacramental e esclareceu que ela corresponde ao ensinamento do Evangelho (cf. DH 1807). Por vezes afirma-se que a Igreja tolerou de facto a prática oriental, mas isto não corresponde à verdade. Os canonistas sempre falaram de uma prática abusiva, e há testemunhos acerca de alguns grupos de cristãos ortodoxos que, tendo-se tornado católicos, tiveram que assinar uma confissão de fé na qual era feita referência explícita à impossibilidade da celebração de segundas ou terceiras núpcias.» in L'Osservatore Romano, 22/X/2013
Concílio de Niceia
Diz o autor do texto que o Concílio de Niceia teria permitido a comunhão dos divorciados recasados, contra a vontade dos “puros”. Cabe esclarecer que os “puros” não são os que defendiam a impossibilidade do “recasamento” quando o anterior vínculo ainda existia, mas sim os novacianos: um grupo de hereges que se recusava a aceitar o pedido de perdão dos ‘lapsi’ (os que tinham realizado sacrifícios aos deuses pagãos durante as perseguições do Império Romano aos cristãos).
Esse célebre cânon 8 de Niceia refere-se ao “recasamento” de pessoas que tinham enviuvado, e não de pessoas cujo cônjuge continuava vivo. Os novacianos, os tais puros, eram contra o casamento de viúvos e essa doutrina foi condenada pelo Concílio.
O Pe. Gilles Pelland é um dos maiores investigadores do mundo nesta matéria, escreveu um livro chamado: “La pratica della Chiesa antica relativa ai fedeli divorziati risposati”.
Ratzinger
Diz o Pe. Miguel Almeida que Ratzinger, nos anos 70, defendeu a tese de Kasper. Este argumento é estranho. Será que o objectivo é ter Joseph Raztinger como fonte de autoridade? Se é esse o caso seria mais útil consultar o que disse o Ratzinger enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e depois Papa em relação a esta matéria.
Aliás, também o S. João Paulo II, Papa, combateu fortemente as propostas de Kasper, e outros, que tentavam mudar a doutrina (ou a praxis) da Igreja no que toca ao casamento.
A “solução” Kasper
Escreve o Pe. Miguel que “Kasper é peremptório” quando diz que a possibilidade de comungar seria apenas “nalguns casos concretos, bem determinados”.
Mas se estamos a falar de casos assim tão exclusivos porquê esta necessidade de tentar transformar um Sínodo sobre a Família, que devia apresentar reflexões sobre o duro ataque que a Família está a sofrer na sociedade secularizada, numa solução para essas excepções concretas?
E se isso fosse aprovado não continuariam milhares e milhares de católicos, que não se encaixam nesses critérios, a ser “excluídos” da comunhão? O discurso sentimentalista da misericórdia (desligada da verdade, da razão e em última análise do amor) não se aplicaria também aos muitos que ficariam de fora dessa benesse? Tanto seriam esses “discriminados” e “excluídos da Igreja” como hoje o são os que ainda não podem comungar.
A resposta a isto é clara: A Igreja não discrimina ninguém. A Igreja não exclui ninguém. Cristo veio para todos, e todos são bem-vindos na Sua Igreja. Aliás é nosso dever ajudar a que isso aconteça, ao crescimento do Reino de Deus já neste mundo. O primeiro dever da Igreja, e portanto de cada um de nós, é a salvação das almas.
Mas a Igreja, como Mãe extremosa, não pode enganar os seus filhos. Não lhe pode dar pedras quando lhe pedem pão (Lc 11, 11.13). A liberdade implica responsabilidade. O que esta tese faz é desligar as duas coisas: já ninguém é responsável pelos seus actos, parece que fazer o bem ou fazer o mal é indiferente.
Por outro lado, esta proposta parece a engenharia social que é produzida no Parlamento, por exemplo para aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo: “Não, é mesmo só o casamento, a adopção nunca! Isso seria impensável!” Aprova-se o casamento e passado pouco tempo estamos a lutar com todas as armas contra a adopção. Neste caso os “alguns casos concretos” rapidamente se tornariam na regra e não na excepção.
Kasper e Burke não “representam facções”, como se as duas teses tivessem a mesma validade. Kasper representa os que se acham mais misericordiosos do que vinte séculos de santos (já para não falar do próprio Senhor), passando a ferro os ensinamentos de Jesus e da Igreja durante 2000 anos. E Burke representa os mesmos ensinamentos sem alterar um iota, como diz o próprio Jesus (Mt 5, 18).
João Silveira
(A) Nota de la Biblia de Jerusalén a Mt 19, 9:
Dada la forma absoluta de los paralelos, Mc 10, 11s; Lc 16, 18 y 1 Co 7, 10s, es poco verosímil que los tres hayan suprimido una cláusula restrictiva de Jesús, y más probable, en cambio, que uno de los últimos redactores del primer evangelio la haya añadido para responder a una determinada problemática rabínica (discusión entre Hiller y Sammai sobre los motivo que legitimizan el divorcio), por lo demás evocada por el contexto, v. 3, que podía preocupar al medio judeo-cristiano para el que escribía.
Tendríamos, pues, aquí una decisión eclesiástica de alcance local y temporal, como lo fue la del decreto de Jerusalén concerniente a la región de Antioquia, Hch 15, 23-29. El sentido de porneia orienta la investigación en la misma dirección. Algunos quieren ver en este término la fornicación en el matrimonio, es decir, el adulterio, y encuentran aquí la dispensa para divorciarse en tal caso.; así las iglesias ortodoxas y protestantes. Pero e este sentido se había esperado otro término, moijeia.
En cambio, porneia, en el contexto, parece tener el sentido técnico de la zenût o “prostitución” de los escritos rabínicos, dicha de toda unión convertida en incestuosa por un grado de parentesco prohibido según la Ley, Lv 18. Uniones de éstas, contraídas legalmente entre paganos o toleradas por los mismos judíos entre los prosélitos, debieron de causar dificultades, cuando estas personas se convertían, en medio judeo-cristianos legalistas como el de Mt; de ahí la consigna de dissolver semejantes uniones irregulares que en definitiva no eran sino matrimonio nulos.
Otra solución considera que la licencia concedida por la cláusula restrictiva no sea la del divorcio, sino la de la «separación» sin nuevo matrimonio. Tal institución era desconocida en el Judaísmo, pero las exigencias de Jesús han dado lugar a más de una solución nueva, y ésta concretamente la supone ya claramente San Pablo en 1 Co 7, 11.
(B) 1. Características de la doctrina sobre la indisolubilidad del matrimonio en los tres primeiros siglos.
En primer lugar se va contra las costumbres y legislaciones paganas, en las cuales estaba anclado el principio del divorcio. En segundo lugar tenemos la unanimidad de todos los padres y autores eclesiásticos, lo mismo que en oriente, que en occidente. San Justino, Atenágoras, Clemente de Alejandría son de todo punto explícitos. En caso de adulterio los conyugues se pueden separar pero no puede haber segundo matrimonio (Hermas y Tertuliano).
2. La indisolubilidad en los padres orientales de los siglos IV y V.
Basilio, en la 1ª carta canónica, afirma que el marido adúltero que es abandonado por su mujer y vive luego con otra es digno de indulgencia; la mujer que vive con este hombre abandonado no es condenada y Basilio se pregunta si se la puede llamar adúltera. La interpretación divorcista legitima por este texto de Basilio el divorcio. Pero una lectura más atenta muestra que lo que se está diciendo es que ni el uno ni la otra pueden ser castigados como adúlteros, por no haber canon penitencial. Tampoco puede probarse que Basilio autorice un segundo matrimonio: no lo castiga como adulterio, lo que es diferente. Basilio, en la 2ª carta canónica, afirma que el marido debe echar de su casa a la mujer infiel, para no mancharse. La lectura divorcista saca de aquí la legitimidad del segundo matrimonio, sin que Basilio haga la menor alusión a ello. Basilio, en Moralia, cuando trata del deber de los casados, trata ex profeso la absoluta indisolubilidad del matrimonio. Indica las causas que permitirían la separación: adulterio e impedimento por causa de
impiedad.
Gregorio Nacianzeno, comentando Mt 19,1-12, señala la diferencia que existe entre la ley civil de su tiempo y la ley de Cristo. Apoyado en la palabra de Cristo, Gregorio permite al marido despachar a su mujer cuando ésta es adultera. La lectura divorcista aprovecha para decir que de ello se sigue las segundas nupcias, cuando Gregorio ni las menciona.
Juan Crisóstomo, en Homilia 19 sobre la carta primera a los Corintios, declara que por adulterio de la mujer queda disuelto el matrimonio y que el marido deja de ser marido. La lectura divorcista se agarra a este texto para legitimizar las segundas nupcias; no obstante, el texto no las menciona. Además ¿de qué disolución se trata? En aquel tiempo los términos (“disuelto”) no están fijados; no podemos aplicar la semántica actual a la de aquel tiempo. En otras partes, el Crisóstomo afirma claramente que la mujer repudiada por la causa que sea no puede casarse de nuevo; ligada a su esposo, sigue siendo, mientras viva, su mujer (cf. In Math., hom 17, 4, PG 57, 259; In Math., hom 62, 1-2, PG 58, 596; in Gen., hom 26, 2, PG 53, 232).
a. ¿qué significado tienen los textos que han sido objeto de una lectura divorcista en el conjunto de la enseñanza de los padres orientales de esta época?
Son un número muy reducido de textos que permiten una lectura divorcista, y además ambiguos, frente a una amplia mayoría de textos claros que la rechazan por completo.
b. ¿en qué se basa la lectura divorcista de esos textos?
Son textos que su ambigüedad permite esta lectura, la cual es abusiva; en un segundo momento esa ambigüedad es completada con las costumbres sociales pagana de la época.
c. ¿en qué se basa la lectura no divorcista de estos textos?
Se basa en que, en ningún momento, ninguno de estos textos alude explícita o implicitamente a las segundas nupcias.
3. La indisolubilidad de los padres occidentales de los siglos IV y V.
Los textos de Hilario y Lactancio no son concluyentes respecto de si el matrimonio queda roto por el adulterio de forma que proporcione al cónyuge inocente facultad de contraer nuevo matrimonio.
El Ambrosiaster concede al marido que se separa de su mujer por causa de adulterio, derecho a casarse de nuevo.
Ambrosio, Jerónimo, Agustín, Inocencio I prohíben absolutamente las segundas nupcias. Ambrosio, sin hablar especialmente del caso del caso de adulterio, desaprueba de forma absoluta todo divorcio. El matrimonio de la mujer repudiada, aunque lo permite la ley imperial, debe ser mirado
como adulterino.
Jerónimo, que trata la cuestión del adulterio en relación con el matrimonio da la siguiente solución: el cónyuge inocente está autorizado a despachar al culpable; pero le está prohibido, so pena de cometer adulterio, contraer nuevo matrimonio. No importa que las leyes civiles permitan el divorcio y el nuevo casamiento de los divorciados: aliae sunt leges Caesarum, aliae Christi.
Agustín, en su De coniugiis adulterinis, que está enteramente dedicado a la relación entre el adulterio con la indisolubilidad del vínculo matrimonial, argumenta la indisolubilidad del matrimonio a partir de la unión de Cristo con la Iglesia, que es unión de todo indisoluble. Permite la separación de los cónyuges en caso de adulterio, solamente.
Inocencio I, en su carta a Exuperio de Tolosa, califica el segundo matrimonio contraído de adulterino. Deben ser separadas de la comunión eclesiástica todas las personas que, en vida de su primer cónyuge, proceden a nuevo matrimonio. El repudium, permitido por las leyes imperiales, no debe por tanto extenderse en los cristianos más allá de la separación de los cuerpos.
a. ¿Qué significado tienen los textos que han sido objeto de una lectura divorcista en el conjunto de la enseñanza de los padres occidentales de esta época?
Apenas tienen significado; son un número muy reducido de textos, además ambiguos; el del Ambrosiaster, que no es ambiguo, es el único texto en la tradición que concede al marido que se separa de su mujer por causa de adulterio el derecho a casarse de nuevo.
Resumo de H. Crouzel, La indisolubilidad del matrimonio en los padres de la Iglesia, en El vínculo matrimonial ¿divorcio o indisolubilidad?