quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A merecida homenagem ao grande Cardeal Caffara

In memoriam Cardeal Carlo Caffarra (1938-2017)

«Non toccate il matrimonio di Cristo!»
Um dia, quem quiser historiar o tempo por que passa a Igreja tropeçará nesta frase proferida pelo Cardeal Carlo Caffarra, Arcebispo emérito de Bolonha.

O grito de alarme foi dado em 2014, quando se perfilavam no horizonte as tendências teológicas e doutrinais que, nos dois sínodos da família, haveriam de pôr em causa, de forma mais ou menos velada, a indissolubilidade do matrimónio declarada por Jesus e constantemente ensinada pela Igreja.

Muito haverá a dizer – e será certamente dito, nestes dias – acerca da vida e do combate deste mestre de fé e de vida, que morreu hoje aos 79 anos. Da notável carreira académica, dividida por Milão, onde ensina teologia moral fundamental, e Roma, onde ensina bioética, ao governo da Arquidiocese de Bolonha, para o qual é nomeado em Dezembro de 2003, quem com ele conviveu testemunha «a sua figura paterna, consumida no amor pela Igreja e por Cristo» (Riccardo Cascioli, La nuova Bussola quotidiana).

De todos os episódios que conheço, escolho sublinhar um, pelo seu conteúdo profético. Merecedor da estima e confiança do Papa João Paulo II, em 1981 o então Padre Caffarra foi chamado a fundar e a presidir ao Pontifício Instituto João Paulo II para estudos sobre o Matrimónio e Família. Por essa altura, escreveu à Irmã Lúcia pedindo as suas orações para a missão que iniciava. Sem esperar uma resposta, ela chegou, longa e assinada. Na carta pode ler-se:

«A batalha final entre o Senhor e o reino de Satanás será sobre o casamento e a família. Não tenha medo, Padre, porque qualquer pessoa que trabalhe para a santidade do casamento e da família será combatida e enfrentada, sob todas as formas, já que esta é a questão decisiva. Entretanto, Nossa Senhora já esmagou a sua [de Satanás] cabeça.»

Caffarra não abandonou o trabalho, antes o intensificou. Dirigiu o Instituto até 1995, vigiando para que a verdade sobre o casamento e a família fosse ensinada na sua integridade.

Fosse classificando o aborto de «delito abominável», fosse defendendo o ensino infalível da encíclica “Humanae Vitae” (1968) – defesa em que chegara a estar praticamente sozinho –, fosse proclamando, contra ventos e marés, que a masculinidade e a feminilidade, a dualidade do modo humano de ser, constituem um pilar da criação, a sua voz foi sendo autoridade certa e orientação segura para quem o escutou.

Sabia que «uma Igreja com pouca atenção à doutrina não é mais pastoral, é apenas mais ignorante».

Por isso, na tempestade que atravessa a Igreja, o Cardeal Caffarra não fez silêncio, nem desertou. Era chegada a hora do descanso? Para outros, talvez. Para ele, foi a de afirmar, com coragem e rigor intelectual, a doutrina tradicional sobre a lei natural inscrita no coração do homem e a universalidade e a permanente validade dos seus preceitos.

Em Setembro de 2016, com três outros cardeais (Walter Brandmüller, Joachim Meisner e Raymond Burke), dirigiu cinco “dubia” ao Papa Francisco, tendo em vista o esclarecimento de proposições problemáticas da exortação apostólica “Amoris Laetitia” (2016). Em Abril de 2017, ante a falta de resposta, voltou a escrever ao Santo Padre, em nome dos quatro cardeais, pedindo uma audiência que permitisse dissipar a desorientação acerca dos sacramentos do Matrimónio, da Confissão e da Eucaristia.

Dias depois, em Maio, participou na quarta edição do Rome Life Forum, oferecendo uma lição magistral. Disse então:

«São dois os pilares da criação: a pessoa humana na sua irredutibilidade ao universo material e a união conjugal entre homem e mulher, o lugar onde Deus cria novos seres humanos “à Sua imagem e semelhança”. A elevação axiológica do aborto a direito subjectivo é a demolição do primeiro pilar. O enobrecimento da relação homossexual, com a sua equiparação ao casamento, configura a destruição do segundo pilar.

Na raiz disto está a obra de Satanás, que pretende construir uma verdadeira anti-criação. Este é o último e terrível desafio que Satanás está a lançar a Deus. “Demonstrar-te-ei que sou capaz de construir uma alternativa à tua criação. E o homem dirá: sou melhor na criação alternativa do que na tua criação”.

Trata-se de uma terrível estratégia de mentira, construída em torno de um profundo desprezo pelo homem. O homem não é capaz de elevar-se ao esplendor da Verdade; não é capaz de viver dentro do paradoxo de um desejo infinito de felicidade; não é capaz de se encontrar no dom sincero de si mesmo. E como tal – continua o discurso satânico – dizemos-lhe banalidades sobre o homem. Convencemo-lo de que a Verdade não existe e de que sua busca é, assim, uma paixão triste e fútil. Persuadimo-lo a encurtar a medida do seu desejo de acordo com a medida do instante transitório. Colocamos no seu coração a suspeita de que o amor é apenas uma máscara de prazer.»

A vida de Caffarra testemunha o contrário: a Verdade existe e a sua busca é, não uma paixão triste e fútil, mas a grande aventura da vida humana.

Alguém terá sublinhado que morreu sem conhecer a resposta às “dubia”. Um detalhe de pequena importância, se pensarmos que é bem provável que contemple agora, em todo o Seu esplendor, o Senhor que amou e serviu com galhardia exemplar.
Luís Froes






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