In memoriam Cardeal Carlo Caffarra (1938-2017)
«Non toccate il matrimonio di Cristo!»
Um dia, quem quiser historiar o tempo
por que passa a Igreja tropeçará nesta frase proferida pelo Cardeal Carlo
Caffarra, Arcebispo emérito de Bolonha.
O grito de alarme foi dado em 2014,
quando se perfilavam no horizonte as tendências teológicas e doutrinais que,
nos dois sínodos da família, haveriam de pôr em causa, de forma mais ou menos
velada, a indissolubilidade do matrimónio declarada por Jesus e constantemente
ensinada pela Igreja.
Muito haverá a dizer – e será
certamente dito, nestes dias – acerca da vida e do combate deste mestre de fé e
de vida, que morreu hoje aos 79 anos. Da notável carreira académica, dividida
por Milão, onde ensina teologia moral fundamental, e Roma, onde ensina
bioética, ao governo da Arquidiocese de Bolonha, para o qual é nomeado em Dezembro
de 2003, quem com ele conviveu testemunha «a sua figura paterna, consumida no
amor pela Igreja e por Cristo» (Riccardo Cascioli, La nuova Bussola quotidiana).
De todos os episódios que conheço,
escolho sublinhar um, pelo seu conteúdo profético. Merecedor da estima e
confiança do Papa João Paulo II, em 1981 o então Padre Caffarra foi chamado a
fundar e a presidir ao Pontifício Instituto João Paulo II para estudos sobre o
Matrimónio e Família. Por essa altura, escreveu à Irmã Lúcia pedindo as suas
orações para a missão que iniciava. Sem esperar uma resposta, ela chegou, longa
e assinada. Na carta pode ler-se:
«A batalha final entre o Senhor e o reino
de Satanás será sobre o casamento e a família. Não tenha medo, Padre, porque
qualquer pessoa que trabalhe para a santidade do casamento e da família será
combatida e enfrentada, sob todas as formas, já que esta é a questão decisiva. Entretanto,
Nossa Senhora já esmagou a sua [de Satanás] cabeça.»
Caffarra não abandonou o trabalho,
antes o intensificou. Dirigiu o Instituto até 1995, vigiando para que a verdade
sobre o casamento e a família fosse ensinada na sua integridade.
Fosse classificando o aborto de «delito
abominável», fosse defendendo o ensino infalível da encíclica “Humanae Vitae”
(1968) – defesa em que chegara a estar praticamente sozinho –, fosse proclamando,
contra ventos e marés, que a masculinidade e a feminilidade, a dualidade do
modo humano de ser, constituem um pilar da criação, a sua voz foi sendo
autoridade certa e orientação segura para quem o escutou.
Sabia que «uma Igreja com pouca
atenção à doutrina não é mais pastoral, é apenas mais ignorante».
Por isso, na tempestade que atravessa
a Igreja, o Cardeal Caffarra não fez silêncio, nem desertou. Era chegada a hora
do descanso? Para outros, talvez. Para ele, foi a de afirmar, com coragem e
rigor intelectual, a doutrina tradicional sobre a lei natural inscrita no
coração do homem e a universalidade e a permanente validade dos seus preceitos.
Em Setembro de 2016, com três outros
cardeais (Walter Brandmüller, Joachim Meisner e Raymond Burke), dirigiu cinco “dubia” ao Papa Francisco, tendo em vista
o esclarecimento de proposições problemáticas da exortação apostólica “Amoris
Laetitia” (2016). Em Abril de 2017, ante a falta de resposta, voltou a escrever
ao Santo Padre, em nome dos quatro cardeais, pedindo uma audiência que
permitisse dissipar a desorientação acerca dos sacramentos do Matrimónio, da
Confissão e da Eucaristia.
Dias depois, em Maio, participou na quarta
edição do Rome Life Forum, oferecendo uma lição magistral. Disse então:
«São dois os pilares da criação: a
pessoa humana na sua irredutibilidade ao universo material e a união conjugal
entre homem e mulher, o lugar onde Deus cria novos seres humanos “à Sua imagem
e semelhança”. A elevação axiológica do aborto a direito subjectivo é a
demolição do primeiro pilar. O enobrecimento da relação homossexual, com a sua
equiparação ao casamento, configura a destruição do segundo pilar.
Na raiz disto está a obra de Satanás,
que pretende construir uma verdadeira anti-criação. Este é o último e terrível
desafio que Satanás está a lançar a Deus. “Demonstrar-te-ei que sou capaz de
construir uma alternativa à tua criação. E o homem dirá: sou melhor na criação
alternativa do que na tua criação”.
Trata-se de uma terrível estratégia
de mentira, construída em torno de um profundo desprezo pelo homem. O homem não
é capaz de elevar-se ao esplendor da Verdade; não é capaz de viver dentro do
paradoxo de um desejo infinito de felicidade; não é capaz de se encontrar no
dom sincero de si mesmo. E como tal – continua o discurso satânico –
dizemos-lhe banalidades sobre o homem. Convencemo-lo de que a Verdade não
existe e de que sua busca é, assim, uma paixão triste e fútil. Persuadimo-lo a
encurtar a medida do seu desejo de acordo com a medida do instante transitório.
Colocamos no seu coração a suspeita de que o amor é apenas uma máscara de
prazer.»
A vida de Caffarra testemunha o
contrário: a Verdade existe e a sua busca é, não uma paixão triste e fútil, mas
a grande aventura da vida humana.
Alguém terá sublinhado que morreu sem
conhecer a resposta às “dubia”. Um detalhe de pequena importância, se pensarmos
que é bem provável que contemple agora, em todo o Seu esplendor, o Senhor que
amou e serviu com galhardia exemplar.
Luís Froes
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