Hoje é Domingo da
Sexagésima, no qual o Evangelho é o semeador que saiu a semear (Lc 8, 4-15). Um
dos sermões mais famosos do Padre António Vieira foi exactamente o sermão da
Sexagésima, pregado na Capela Real em 1655. Deixamos aqui algumas linhas de cada
uma das 10 partes dessa obra-prima:
I
E se quisesse Deus que este
tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação,
como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que
todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.
II
Semen
est verbum Dei. O trigo que semeou o
pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as
pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações
dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas,
com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações
duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria
raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e
tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que
atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a
desentendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os
homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta
fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit
centuplum.
III
Fazer pouco fruto a palavra
de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do
pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se
converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o
pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o
entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando.
IV
Mas como em um pregador há
tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser
culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? -- No pregador podem-se
considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a
voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo
que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho.
V
Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo
tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão
encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo
há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao
semear: Exiit, qui seminat, seminare.
VI
Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje
o modo que chamam de 'apostilar' o Evangelho, em que tomam muitas matérias,
levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é
muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão
há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador
do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão uma só: Exiit,
qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o
sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias.
VII
Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores?
Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não
trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a
quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O
pregador há-de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o
lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e não
o alheio, porque o alheio e, o furtado não é bom para semear, ainda que o furto
seja de ciência.
VIII
Será finalmente a causa,
que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente
pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do
pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa
tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também
esta, mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era
ofício de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos
deu no semeador verdadeiro, que é Cristo.
IX
As palavras que tomei por
tema o dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristãos, a causa
por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras
dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que
ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão
eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos
nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito
que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus?
X
Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que já tenho experimentado,
que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh,
boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora, e façamos
nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles
desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque é mais
proveitosa e a que mais hão mister.
ResponderEliminarPalavras Sábias e sempre atuais-- infelizmente-- do Padre António Vieira.
E viveu ele, há quatro séculos!
Imaginemos, o que nos diria hoje...
Bem haja Pe João por mais este riquíssimo ensinamento do Pe Vieira!...
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