Primeira parte do nosso
estudo comparativo do ritual em forma extraordinária e das práticas modernas.
A reforma litúrgica que se
seguiu ao Concílio Vaticano II revestiu-se duma dupla característica: a de ter
aparecido como uma metamorfose extremamente profunda, o que explica as
oposições imediatas com que se defrontou (por exemplo, as do Cardeal Ratzinger,
desde 1966), e a de ter transformado o conjunto do culto católico
– missa, sacramentos, bênçãos – sem nada deixar intacto (quando
aconteceu que restassem elementos da liturgia tradicional – como por
exemplo, no caso de certas orações –, os reformadores não deixaram de
os fazer passar a todos por uma qualquer transformação, ainda que pequena, como
se se tratasse de uma questão de princípio).
Assim, se bem que a Paix
Liturgique se interesse em particular pelo que foi mudado na e com a missa
nova, uma vez que o seu projecto essencial consiste em fazer conhecer, amar e
defender cada vez mais a missa tradicional, nem por isso deixa de considerar
necessário que se tenha em conta o conjunto global dessa reforma que
quis ser total. Os fiéis ligados à missa tradicional assim o merecem, pois a
sua vida cristã leva-os a ter de participar noutras cerimónias além da missa:
baptismos, crismas, exéquias, ordenações sacerdotais... E também aí, eles se
ressentem de um grande mal-estar. Para que o possam expressar correctamente,
estimámos ser oportuno fornecer-lhes alguns elementos de análise nesta carta e
nas que se seguirão.
Convém além disso notar que
as disposições do motu proprio Summorum Pontificum e do
decreto da Pontifícia Commissão Ecclesia Dei que regulamenta a
sua aplicação, a instrução Universae Ecclesiae, de 30 de Abril de
2011, englobam expressamente, não apenas a missa, mas também todo o resto da
sagrada liturgia. A escolha do missal de 1962 como missal de referência para
o usus antiquior faz com que, para os outros livros além do
missal, nos devamos ater logicamente também à mesma regra, a do “estado de
coisas em 1962” (Summorum Pontificum, art. 9, Universæ Ecclesiæ, art. 24
e 28). Quer isto dizer que podemos utilizar a última edição típica do breviário
tridentino, de 1961, para rezar o Ofício Divino, a do ritual de 1952, para
celebrar os sacramentos, a do cerimonial dos bispos de 1886, e a do pontifical
de 1961 e 1962 para os sacramentos a serem conferidos pelos bispos.
Assim, por
exemplo, segundo o art. 5 § 3 do m.p. Summorum Pontificum: «Para os
fiéis e sacerdotes que o solicitem, o pároco permita as celebrações nesta forma
extraordinária também em circunstâncias particulares como matrimónios, funerais
ou celebrações ocasionais como, por exemplo, peregrinações.» Cumpre, pois, que
cuidemos de ajudar os fiéis requerentes a justificarem de modo eficaz, a bem
deles e de quantos os rodeiam, o pedido que apresentem para a celebração de
sacramentos e cerimónias tradicionais.
Por todas estas razões,
propomo-nos começar agora o exame das outras partes da nova liturgia além da
missa. Tal exame porá a descoberto tanto as suas deficiências de fundo como as
suas fraquezas quanto à forma, cujos efeitos, depois, se vêm também a mostrar
nefastos do ponto de vista pastoral, especialmente em relação à fé dos seus
“utilizadores”. Juízo este, infelizmente confirmado pela desafeição
generalizada dos fiéis relativamente ao culto cristão reformado no âmbito das
igrejas locais europeias (para nos limitarmos a um exemplo: em França, hoje,
apenas 30% das crianças que vêm ao mundo recebem o baptismo). Assim, estas
nossas cartas pretendem ser também um contributo para a explicação dum fracasso
pastoral sem precedentes na história.
A nova cerimónia do baptismo
das crianças: um ritual irénico.
Concentraremos agora o
nosso estudo no baptismo das crianças, a fim de comparar o respectivo ritual
tradicional com aquele na forma nova (1). Nesta, o baptismo traduz-se numa
cerimónia claramente mais longa do que a antiga, na qual o discurso ocupa um
lugar de destaque, incluindo-se na cerimónia uma liturgia da palavra ao que se
junta o que, para todos os efeitos, é uma homilia (2). Ao mesmo tempo, a
mensagem transmitida é claramente mais débil, pelo menos num ponto: o aspecto
do combate contra o demónio, que caracteriza fortemente a cerimónia antiga e
que, na prática, resulta esbatido na nova cerimónia, o que se manifesta
nomeadamente pelo desaparecimento de exorcismos propriamente ditos e de ritos
com valor de exorcismo.
É como se os redactores do
novo ritual do baptismo já não tivessem uma fé muito firme na doutrina do
pecado original. O pecado original mais não seria então do que a contaminação
das almas vindas de novo ao mundo por uma influência totalizada de todas as culpas
passadas, presentes e vindouras. Os novos teólogos preferem falar de “pecado do
mundo”, como é o caso do P. André-Marie Dubarle, OP (3), ou do P. Gustave
Martelet, SJ, em Libre réponse à un scandale. La faute originelle, la souffrance et la mort (4), do P. Jean-Michel Maldamé, OP, etc.
Uma tonalidade menos sagrada
No ritual tradicional de
Paulo V, as fórmulas são fixas, cerimoniais, e acompanhadas por gestos
ritualizados: exsuflação (espírito do mal expulso, Espírito Santo infundido);
repetidos sinais da cruz; gustação do sal (sal exorcizado e exorcizante, sal de
sabedoria, anúncio do alimento eucarístico); dois exorcismos propriamente
ditos; imposição da mão e imposições da estola (tomada de poder em nome de
Cristo sobre a criança que estava retida pelo demónio); rito da Ephpheta
(saliva sobre as narinas do baptizado e sobre as suas orelhas, para abrir os
seus sentidos às coisas de Deus); unções obrigatórias com o óleo dos
catecúmenos (óleo de salvação; o que corresponde, de facto, a um outro tipo de
exorcismo); passagem da estola roxa de penitência, que se usa durante toda a
cerimónia preparatória, à estola branca da alegria, para o baptismo
propriamente dito.
Já o baptismo novo, é
precedido por uma fórmula de acolhimento que evoca uma reunião profana: «O
celebrante saúda os presentes, sobretudo os pais e os padrinhos». Duma análise
de diversas versões nacionais resulta que chega a ser sugerido que se o
sacerdote os conhece, pode chamá-los pelos seus nomes. Aqui, as variantes
possíveis também são numerosas, com aquele efeito a-ritual a que já se fez
referência em cartas anteriores. Por exemplo, as questões preliminares são
estas: «Que nome dais ao vosso filho? - N. Que pedis à Igreja de Deus para os
vossos filhos? - O baptismo.» Mas precisa-se que: «No diálogo, o celebrante
pode usar outras palavras […] Na segunda resposta, os pais também podem usar
outras palavras: por exemplo, A fé, ou A graça de Cristo, ou A entrada na
Igreja, ou A vida eterna» (tratando-se de meros exemplos, tal equivale a dizer
que o sacerdote “pode admitir por parte dos pais respostas espontâneas”).
As
leituras têm várias alternativas à escolha, a oração universal apresenta também
várias alternativas e há monições que o sacerdote pode modificar segundo o seu
critério. São ainda possíveis várias fórmulas de bênção da água, à escolha.
Também à escolha do sacerdote, pode haver ou uma imposição da mão ou uma unção
com o óleo dos catecúmenos. Os exorcismos foram reduzidos a uma oração, com
duas fórmulas à escolha, cujo alcance é menor e de que voltaremos a falar.
O escamotear da batalha
contra o demónio em favor da simples noção de acolhimento na comunidade
Na forma tradicional, o
baptismo é apresentado como uma infusão da vida divina no âmbito de um
dinamismo de explícito combate contra o poder exercido pelo demónio por
causa do pecado original; no rito novo, esta perspectiva aparece muito pouco.
No ritual de Paulo V, o
sacerdote, envergando uma estola roxa, após ter procedido ao interrogatório
sobre o pedido do baptismo e ter recordado o duplo mandamento da caridade
enquanto fundamento da vida cristã, sopra três vezes sobre o rosto da criança e
pronuncia estas palavras: «Retira-te dele, espírito imundo, e dá o lugar ao
Espírito Santo Paráclito.» Depois, faz o sinal da cruz sobre a fronte e o
coração da criança. Mais adiante, durante a cerimónia, após o primeiro
exorcismo e a tríplice renúncia a Satanás, às suas obras e pompas, o sacerdote
fará ainda o sinal da cruz com o óleo dos catecúmenos, o óleo do combate, sobre
o peito e entre os ombros. A imposição da mão – sinal da autoridade que rompe
«todas as correntes com que Satanás o havia prendido» – e o exorcismo sobre o
sal, que se seguem, colocam-se no mesmo sentido do movimento iniciado pelo
primeiro exorcismo.
No novo ritual, as
cerimónias preparatórias são mais curtas, mas mais do que a brevidade das
mesmas, é o significado que lhes é dado que, ao contrastar com o antigo ritual,
nos chama a atenção. Após o interrogatório sobre o pedido do baptismo, o
sacerdote, envergando desde o início uma estola branca (ou «de cor festiva»),
faz um sinal da cruz sobre a fronte da criança e proclama: «é com muita alegria
que a comunidade cristã vos recebe. Em seu nome, eu vos assinalo com o sinal da
cruz, e, depois de mim, os vossos pais (e padrinhos) vão também assinalar-vos
com o mesmo sinal de Cristo Salvador.» Segue-se a entrada e uma procissão
enquanto se entoa um cântico à escolha; dá-se a sugestão do salmo 84 – na
Vulgata, 83, mas mundo fora, também se sugere o salmo 100 (99) Iubilate
Deo, omnis terra/Aclamai o Senhor terra inteira, um salmo de louvor por
excelência, ou outro de tonalidade semelhante.
A impressão que fica é a de
que o futuro baptizado entra já em pleno na Igreja e que, por isso, a alegria
se impõe imediatamente, como se a marca de Satanás sobre a alma do futuro
baptizado e o seu poder sobre ela fossem algo insignificante. O contraste é bem
claro com a tonalidade dramática que caracteriza toda a primeira parte da
celebração segundo o ritual tradicional, que nem por isso desconhece, também
desde o começo, a alegria da nova vida inaugurada pelo baptismo (a oração que
antecede a imposição do sal é disso exemplo: «a fim de que, marcado [o
baptizado] pelo sinal da vossa sabedoria fique livre da infecção de todas as
más paixões e animado pelo perfume dos vossos mandamentos, vos sirva em vossa
Igreja alegremente»).
Por fim, a diferença entre
os dois rituais vem a concentrar-se especialmente nos exorcismos. Aí, ela é
considerável:
· No ritual tradicional, os dois exorcismos propriamente ditos são
particularmente explícitos: «Exorcizo-te, espírito imundo, em nome do Pai † e
do Filho † e do Espírito † Santo, vai-te, retira-te deste servo de Deus: é o
mesmo Deus que te comanda, maldito, o mesmo cujos pés caminharam sobre o mar e
cuja mão direita susteve Pedro que investia. Por isso, demónio maldito, aceita
a tua sentença e dá honra ao Deus vivo e verdadeiro, dá honra a seu Filho Jesus
Cristo e ao Espírito Santo, e deixa este servo de Deus...» O exorcismo
conclui-se então com o traçar do sinal da Cruz: «E este sinal da Santa Cruz †
que nós traçamos sobre a sua fronte, tu, demónio maldito, nunca ouses violar.»
E o segundo exorcismo: «Exorcizo-te, espírito imundo, em nome de Deus † Pai
todo-poderoso, e em nome do seu Filho Jesus † Cristo, Nosso Senhor e Juiz, e
pela virtude do Espírito † Santo; vai-te desta criatura de Deus...»
· No novo ritual, há lugar a uma oração que precede a celebração do
sacramento. Não se trata de um exorcismo propriamente dito, pelo qual o
ministro de Cristo, em seu nome, comanda a Satanás que se vá, mas antes de uma
oração pela qual simplesmente se pede a Deus que se digne genericamente
«expulsar de nós o poder de Satanás», e assim o baptizado venha a ser, em tom
mais velado ou difuso, «arrebatado às trevas».
o 1ª fórmula (na versão portuguesa, já que pode sempre haver variações de
texto e mesmo de sentido segundo as línguas): «Deus todo-poderoso e eterno, que
enviastes ao mundo o vosso filho para expulsar de nós o poder de Satanás,
espírito do mal, e transferir o homem, arrebatado às trevas, para o reino
admirável da vossa luz, humildemente vos pedimos que esta criança, libertada da
mancha original, se torne morada do Espírito Santo e templo da vossa glória.»
o 2ª fórmula: « Deus todo-poderoso, que enviastes o vosso Filho unigénito
para dar ao homem, preso na escravidão do pecado, a liberdade dos vossos
filhos, humildemente imploramos a vossa misericórdia para esta criança: pela
morte e ressurreição de Cristo, libertai-a agora da mancha da culpa original,
e, como há-de experimentar as seduções do mundo e lutar contra as ciladas do
demónio, fortalecei-a com a graça do mesmo Cristo e guardai-a continuamente no
caminho da sua vida.»
É certo que, assim como na
missa, a consagração individualmente considerada contém em si a realidade do
sacrifício que as outras orações, como as do ofertório da missa tradicional,
mais não fazem do que explicitar, também no baptismo, a infusão de água
acompanhada pelas palavras do baptismo contém toda a significação do
sacramento, inclusive a expulsão do demónio, que os exorcismos do rito
tradicional também pretendem explicitar. Isso não tolhe, contudo, que a
supressão desta explicitação tenha forçosamente consequências sobre a fé dos
fiéis.
… E não apenas em relação à
fé. O P. Jean-Régis Fropo, que foi sacerdote da diocese de Fréjus-Toulon entre
2005 e 2014, chamou a atenção das autoridades da Igreja, em França e em Roma,
para as deficiências presentes no ritual do baptismo de 15 de Maio de 1969, no
que toca à luta contra o demónio. Segundo ele, há certos casos de possessão
diabólica de crianças e de pessoas adultas baptizadas cuja explicação se pode
encontrar na indigência deste novo ritual em matéria de exorcismo (5). Em todo
o caso, são razões semelhantes às que levam a preferir a missa tradicional à
missa nova – a saber, insuficiências presentes na nova liturgia quanto à
expressão doutrinal – aquelas que também levam muitos pais, no momento em que
devem baptizar os seus filhos, a optarem pela forma tradicional. Ora, desde
2007, isso é para eles um direito claramente reconhecido.
1. Ordo baptismi
parvulorum – Celebração do Baptismo das Crianças, ritual publicado pela
Conferência Episcopal Portuguesa, de acordo com a 2ª ed. típica, Gráfica de
Coimbra (primeira edição típica, 1969; segunda, 1973).
2. Ordo,
Preliminares, n. 17.
3. Le péché originel dans
l’Écriture, Cerf, 1958.
4. Cerf, 1986.
5. Blog de L’Homme
nouveau,
Paz e Justiça.
ResponderEliminarSou catequista de jovens e adultos há 5 anos, depois de ter sido catequizar em 2012. Sou estudante do 3° ano de Teologia. Amo a Igreja de Cristo e seus ensinamentos milenares. Agradeço a Deus, por continuar a aprender aqui.
Concordo que há urgência em retomar o batismo segundo o rito anterior ao CV II.