Há católicos tão bem, tão bem, tão bem, que tratam Deus por tio. De facto, chamá-Lo pai seria ficar automaticamente irmã, ou irmão, dessa gentinha pé-descalça e malcheirosa que vai à Cova da Iria de xaile e garrafão. Tratá-Lo por Senhor seria reconhecer-se de uma condição servil, que está muito bem para as criadas e para os chauffeurs, mas que não é compatível com quem é, há várias gerações, gente de algo.
Os sobrinhos de Deus gostam muito de Jesus, porque Ele é superfantástico: andou sobre o mar e fez montes de coisas giríssimas. Gostam tanto d’Ele que até Lhe perdoam o ter sido carpinteiro, pormenor de gosto duvidoso que têm a caridade de omitir, sempre que, ao chá, falam d’Ele. Também têm muita devoção ao Espírito Santo: à família do banco, claro, pois conhecem-na toda da Quinta da Marinha e de um ror de sítios muito in, que tudo o que é gente frequenta.
Alguns foram a Fátima a pé e acharam o máximo. Levaram uns ténis de marca, roupa desportiva q.b. e um padre da moda. Rezaram imenso, tipo um terço, sei lá. O resto do tempo foi à conversa, sobretudo a cortar na casaca de uns quantos novos-ricos, um bocado beatos, que também se integraram na peregrinação (já agora, aqui para nós, mais por fervor aos sobrinhos de Deus do que a Nossa Senhora, mas note-se que isto não é ser má-língua, mas a pura verdade, à séria).
Têm imenso gosto e casas estupendas. Quando olham para um crucifixo em pau-santo, com imagem de marfim e incrustações de prata, são capazes de reconhecer o estilo, provavelmente indo-europeu, identificar a punção, pela certa de algum antigo joalheiro da Coroa, e a data, até porque, geralmente, é igualzinho a um lá de casa, ou muito parecido ao da capela da quinta. Só não vêem o Cristo, nem a coroa de espinhos, nem as chagas, que são coisas de menos importância.
Detestam essas modernices do abraço da paz ou da Igreja dos pobres, mas não é que tenham nada contra os pobres, apenas receio de doenças contagiosas.
Também não são muito fãs do senhor prior, nem do Papa Francisco, simplórios de mais para os seus gostos sofisticados. Mas derretem-se quando se cruzam, nalgum cocktail, exposição ou concerto na Gulbenkian, ou em São Carlos, com alguém que os fascine pelo seu glamour, pela sua cultura, pela sua inteligência ou poder porque, na realidade, o principal santo da sua devoção é o príncipe deste mundo.
Uma só coisa aflige os sobrinhos de Deus: que o Céu, onde já têm lugar reservado, esteja mesmo, como se diz no sermão das bem-aventuranças, cheio de maltrapilhos.
1) Qualquer relação com a realidade não é coincidência, mas um azar dos diabos. in Público
7 comentários:
Muito bom! Obrigada por me fazer rir.
O Sr. Visconde da Macieira integra-se neste grupo dos sobrinhos de Deus?
E ainda há aqueles sobrinhos que vão buscar o apelido, não ao pai, mas ao tetaravô, para ser mais chique.
"É com certa mágoa que o digo, mas este texto do Padre Gonçalo, sacerdote por quem tenho sincera estima, é inútil, incerto e vulgar.
Não me vou alongar sobre o repisar de caricaturas requentadas, como que rimas pobres das que Herman José já fazia nos anos 80. Humoristicamente, esteticamente, o texto é um fracasso, mas se fosse apenas isso eu ficaria calado.
O aspecto mais fraco do texto é de carácter moral. É certíssimo e louvável mostrar que os ricos, muitos dos quais se dizem católicos, são ofensivos e cruéis na sua afectação, na sua indiferença, na sua correcção, nos seus tiques. Mas a razão disso é a avareza, o desejo de poder, o amor do dinheiro. Sentimentos que encontramos nos tios e nos menos tios, nos novos ricos e nos velhos ricos, nos remediados e nos pobretanas e sobretudo, e pior que tudo, em nós! Situar esse pecado (a raiz de todos os males, como se diz na carta de São Tiago) num espaço confinado à risível Quinta da Marinha, à família Espírito Santo e a dois ou três trejeitos é fazer um favor descomunal à consciência satisfeita de todos os que, como eu, por nascimento e escolha nada têm a ver com a Quinta da Marinha e com essas vidas. Onde se esperava um confronto de consciências, vemos antes um eco demagógico de ressabiamentos.
Não gosto de tias, não estou aqui para defender tias; não é esse o meu ponto. Mas quero ainda dizer que a superficialidade do Padre Gonçalo esconde um monstro ainda pior: o da injustiça. Arrumar todas as pessoas que vão a Fátima com um padre da moda (quem é?) e andam com ténis da moda (quais são?) no mesmo saco (um saco da moda, presumo) é revelador de uma certa cegueira, incapaz de ver que o vento sopra onde quer, que a graça consegue invadir o território do demónio (o nosso).
Por último, creio que o Padre Gonçalo não gostaria que fizessem recair sobre ele o olhar simplista que lança sobre os outros. Um sacerdote do Opus Dei, organização sobre a qual se lançam insidiosos e injustos preconceitos, e sobretudo um homem com um apelido sonante que não o de familiares próximos (mas atribuído de forma quase insólita), seria um alvo fácil da ironia e da tentativa de crueldade que aqui lançou sobre alvos tão fáceis."
Rui Jardim
@Rui Jardim «Arrumar todas as pessoas que vão a Fátima com um padre da moda (quem é?) e andam com ténis da moda (quais são?) no mesmo saco (um saco da moda, presumo) é revelador de uma certa cegueira, incapaz de ver que o vento sopra onde quer, que a graça consegue invadir o território do demónio (o nosso)»,
Em muitas paróquias da linha, ou então pelo menos na minha (Carcavelos). Isso te posso garantir. Se fores para o Estoril, aquilo ainda é pior, porque até os menos ricos(e não são pobres, mas até bem abonados) sentem isso. =D
Podes não ter gostado dessa descrição, mas eu já sofri na pele muita dessa injustiça desses riquinhos, com o seu Padre da moda.
Involve-te em Carcavelos, Estoril, etc. O texto pode ter sido demasiado ficcional/irónico para ti, mas para mim, já foi - e continua a ser por vezes - o meu dia-a-dia...
Rui Jardim: apoiado.
Padre Gonçalo, depois de ler isto só fiquei chocada com uma coisa... acho que esta forma de falar, irónica e claramente a deitar abaixo um grupo...(do qual nao conhece minimamente a Fé)..não tem a marca dum Cristão.
Não tem pena de ter dito estas coisas?..
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