Apresento aqui alguns pequenos e grandes pormenores que me chamaram a atenção no último filme de Martin Scorsese: Silêncio. O filme baseia-se no romance ‘Chinmoku’, do autor japonês Shusaku Endō, por isso nem todos os méritos ou deméritos podem ser associados a Scorsese. Seja como for, para simplificar as coisas, vou escrever como se todas as ideias tivessem sido suas.
Tema
É um filme bastante ‘pesado’, durante o qual somos confrontados com um dilema moral que nos deixa exaustos. É bom pôr-se problemas morais. É bom pensar entre o que é certo e o que é errado porque todos os dias somos obrigados a tomar decisões e muitas vezes deparamo-nos com a indecisão entre fazer o bem, que normalmente custa mais, ou o mal, que normalmente é o caminho mais fácil…pelo menos assim parece.
Qualidade técnica
A qualidade técnica é excelente. Estamos (mal) habituados a que muitos dos filmes que retratam estes assuntos relacionados com o cristianismo sejam produções low-budget, com má imagem, mau som e até maus actores. Felizmente não é o caso.
Martírio
O filme começa com uma cena bastante dura sobre o martírio dos cristãos no Japão. Este relato é histórico e muito próximo do que realmente aconteceu durante a perseguição aos cristão. Um bom exemplo é o testemunho de São Paulo Miki e seus companheiros. Ver aqui e aqui.
Fé dos pequeninos
Os sacerdotes, enquanto representantes da Igreja, dispensadores dos sacramentos e responsáveis pela pregação foram os primeiros a ser perseguidos pelas autoridades japonesas. O povo deu por si a ter de esconder a sua fé e, além disso, sem sacerdotes que os ouvissem em confissão e celebrassem a Santa Missa. Quando aqueles dois jovens jesuítas chegam àquela população a alegria daquela gente é contagiante…e comovente. Passaram muito tempo apenas com o sacramento do baptismo, que em caso de necessidade pode ser administrado por um leigo, mas os outros sacramentos não.
É uma verdadeira bofetada de luva branca a cena em que os dois sacerdotes começam avidamente a comer e, passados uns segundos, ouvem-se os aldeões, de mãos postas, a pedir a bênção dos alimentos. Ainda para mais em latim, exactamente como se fazia na Europa de onde eles tinham acabado de chegar. Provenientes da Europa cristã, e ainda para mais sendo sacerdotes, deveriam ser estes os primeiros a rezar, ensinando o povo. Mas a resistência à perseguição e a confiança em Deus tinha tornado a fé daquelas pessoas o aspecto mais importante da sua existência, de tal modo que viviam na Terra mas com os olhos postos no Paraíso.
Um bom exemplo disto é a morte do último dos 3 fiéis crucificados, que usa as poucas forças que lhe restam para cantar o 'Tantum ergo', um hino eucarístico em latim, escrito por S. Tomás de Aquino, que é usado durante a Adoração ao Santíssimo Sacramento desde o séc. XIII.
Santa Missa
Um dos momentos mais fortes do filme é o princípio da Missa. Podemos apenas imaginar o quanto aquelas pessoas tinham ansiado pela Missa; depois de todos aqueles anos sem o Santo Sacrifício do Altar, e sem poderem comungar o Corpo de Cristo. Desta vez a lição é para todos nós que temos a Missa a qualquer hora que nos seja mais cómoda e não pomos lá os pés. Outras vezes pomos os pés mas não o coração.
A Missa foi celebrada no Rito Antigo, correspondente ao rito romano desde os primeiros séculos da era cristã até ao Missa do Papa Paulo VI, em 1970. Neste momento existem esses dois modos de celebrar, sendo que o Rito Antigo é por vezes chamado de Forma Extraordinária ou (erradamente) Missa Tridentina. Os missionários, muitos deles portugueses, levaram para o Mundo Novo o seu próprio rito, que era o romano. É interessante que hoje em dia, nas poucas igrejas em Portugal onde existe o Rito Antigo, a Missa seja igualzinha, sem tirar nem pôr, àquela Missa que se passou há 400 anos, do outro lado do mundo.
No início da Missa o povo está todo de joelhos. Um padre celebra e outro serve (antes de 1970 não existia a concelebração). A Missa, que é em latim (antes de 1970 não existia a Missa em vernáculo), começa com o salmo 42, no qual o sacerdote pede ajuda a Deus pelo enorme acto que está para cumprir. O ajudante à Missa, que neste caso era o outro sacerdote, responde também com o mesmo salmo. Essa intercalação está muito bem conseguida no filme. Scorsese fez bem o trabalho de casa, neste caso.
Confissão
Quando chegam até àquelas pessoas sedentas de Cristo, os dois padres passam noites inteiras a confessar. A emoção dos penitentes é uma boa imagem da necessidade e da beleza deste sacramento, ao qual chegamos culpados e saímos inocentes, graças à morte de Jesus na Cruz. Mas o maior protagonista da confissão chama-se Kichijiro e mostra-se perito em apostatar.
Por um lado a personagem está bem conseguida porque a maior parte de nós também é assim: confessa-se sempre dos mesmos pecados. E isto não quer dizer que não estejamos arrependidos quando nos confessamos, caso não estivéssemos a confissão seria inválida, mas sim que somos fracos e se calhar pomo-nos a jeito para cair outra vez nos mesmos erros. E este é o ponto, pelo qual aqui a confissão é apresentada como uma caricatura. Kichijiro poderia muito bem estar arrependido do pecado gravíssimo que fazia (recorrentemente), mas não estava disposto a fazer propósito de emenda, que inclui sempre evitar ocasiões de pecado. Ele continuava a viver num ambiente em que sabia que ia ser confrontado frequentemente com a escolha entre a vida e o negar a fé. Se realmente ele quisesse deixar de apostatar, e conhecendo a sua fraqueza, teria de sair dali. O seu confessor deveria ter-lhe dito isto, e talvez até imposto como condição para a absolvição daquele pecado muito grave.
Judas e Jesus: Horto das Oliveiras
Naquela época de perseguição, a denúncia de um sacerdote rendia 300 moedas de prata. Isto remete imediatamente para a traição de Judas, que denunciou Jesus por 30 moedas de prata. E esse paralelismo torna-se real. O Padre Rodrigues faz o papel de Jesus, como ele próprio se via, e Kichijiro (quem mais?) o papel de Judas. A cena passa-se à beira de um rio, que o sacerdote usa para matar a sede, enquanto tem mais uma das suas alucinações, vendo o rosto de Jesus Cristo na água em vez do seu. Tal como aconteceu no Horto das Oliveiras, os soldados aparecem de surpresa e rodeiam o Padre. O Judas da ocasião, Kichijiro, recebe ali o preço pela sua traição: as 300 moedas de prata; que caem no chão à semelhança de como Mel Gibson, na ‘Paixão de Cristo’, retratou o momento em que o traidor recebeu o seu prémio.
Exército de dois
Voltando atrás para contextualizar. Os dois jovens jesuítas tinham pedido ao seu superior que os deixasse ir até ao Japão de modo a poderem resgatar o Padre Ferreira, que alguns diziam ter renunciado ao cristianismo. O jesuíta mais velho percebe que a missão seria bastante perigosa e, ao princípio, está reticente mas, perante a insistência dos jovens, envia-os…como um exército de dois. Os dois últimos padres a irem para o Japão. Uma última tentativa de manter aquele território longínquo ainda como terreno de missão.
E foram realmente um exército de dois. Enquanto andavam juntos ambos ajudavam-se mutuamente. Um compensava as falhas e imprecisões do outro. Ajudavam-se nos momentos de menos confiança em Deus e, assim, iam levando avante a sua missão. Mas tudo mudou quando se separaram.
Padre Garupe
Aparentemente era o elo mais fraco. Quando já estavam no Japão, a ajudar as comunidades cristãs, mostrou-se bastante ansioso pelo tempo que demoravam a encontrar o Padre Ferreira. A ponto de pedir desculpa ao seu companheiro de missão, Padre Rodrigues, por isso. Este diz-lhe que ele é um mau jesuíta, pela falta de paciência que mostra. Apesar dessa sua falta de virtude, o Padre Garupe teve a humildade de pedir desculpa, algo que o Padre Rodrigues nunca faz. Quando se separam, o Padre Garupe mostra de que massa é feito e acaba por morrer mártir, enquanto tenta salvar a vida de outros cristãos. Mais uma vez, ao contrário do Padre Rodrigues.
Padre Rodrigues
No tal exército de dois assume o papel de líder. Parece o modelo de jesuíta perfeito, a comparar com o impaciente Padre Garupe. No entanto, quando os dois se separaram vai mudar completamente de atitude. Não aparece mais a celebrar a Missa. Não ouve confissões, tirando as do inevitável Kichijiro. Praticamente não reza. Revela sempre um semblante pesado. Começa a ter alucinações.
Este modus vivendi vai acompanhá-lo também depois de ser feito prisioneiro. Embora se mostre bastante tranquilo e dono de si à frente dos seus captores, quando está na sua cela passa por longas agonias e períodos de desespero.
O Padre Rodrigues é inteligente e remete ao silêncio os seus adversários em todas as discussões. Ele não perde uma. E nem se pode dizer que os seus argumentos fossem arrogantes, são bastante lógicos, simples e muito verdadeiros. Apesar disso, no modo como encara a sua situação como se fosse o próprio Cristo, e é essa ousadia que lhe vai sair cara. Num comentário depois duma conversa com o Padre, o intérprete desabafa, com toda a tranquilidade, que os arrogantes são os primeiros a apostatar.
De Jesus a Pedro: o galo cantou
Chegamos à parte mais dura da narrativa. Finalmente o Padre Rodrigues encontra o desaparecido Padre Ferreira, seu antigo professor. Este demonstra pouco à vontade na conversa, quase como se estivesse ali obrigado ou como se lhe pesasse a consciência pela negação constante da fé que tinha sido a sua vida nos últimos anos. Perante as acusações do jovem jesuíta, Ferreira defende-se fazendo uma apologia do Japão como uma terra onde o cristianismo jamais poderia vingar; e que quando se falava aos cristãos japoneses do Filho de Deus eles apenas imaginavam o sol, porque a sua cultura não conseguia ir além do natural, o sobrenatural era impensável.
O Padre Ferreira faz nesse momento o papel do demónio quando tenta Jesus, tanto no deserto como durante a Paixão. É a tentação que apresenta a decisão mais fácil, com todas as suas vantagens, em contraste com a decisão mais difícil, com todas as suas desvantagens. Os argumentos que apresenta são obviamente falsos. Eram desmentidos pela fé enorme que o Padre Rodrigues tinha visto naquele povo. Mas só o facto de aquela conversa existir é suficiente para lhe deixar uma dúvida, ainda que pequena, sobre se o que lhe é dito não será, afinal, a verdade. Este é o perigo de dialogar com a tentação, especialmente quando vem de um inimigo mais sagaz do que nós. Numa situação destas não se deve alimentar a tentação ou tentar ser razoável com ela, deve-se cortar prontamente com aqueles pensamentos ou com aquela conversa.
O intérprete diz ao Padre Rodrigues: “O Inquisidor diz que hoje à noite vais apostatar.” Parece estranho que o prisioneiro tenha ouvido esta profecia e não se tenha preparado convenientemente para o que estava para vir. E de facto apostatou. E mal o fez o galo cantou…3 vezes. É inevitável que não sejamos transportados imediatamente para a traição de Pedro, que negou Jesus 3 vezes depois da prisão do seu Mestre. Também Pedro se tinha julgado forte, incapaz de negar Jesus, tinha-o garantido a Ele mesmo à frente de todos os outros apóstolos. Finalmente cai a a máscara: o Padre Rodrigues não era Jesus, era Pedro. Tinha-se em boa conta mas na hora da verdade foi cobarde.
Apostasia
Este foi o tema mais discutido em relação a esta história. Será que podemos dizer que tudo se resume a defender a apostasia? Creio que não, seria uma análise demasiado simplista. Será que se pode dizer que não existe uma relativização da apostasia? Também creio que não, a apostasia é apresentada como o mal menor que deve ser escolhido quando se trata de evitar o sofrimento, tanto próprio como alheio.
Esta parte da história mostra falta de visão sobrenatural. É verdade que os sofrimentos infligidos pelos agressores são horrorosos. Mas também é verdade que para quem crê em Deus o sofrimento não tem a última palavra. O símbolo máximo do cristianismo é Deus feito homem morto numa cruz, para nos salvar. O sofrimento aceite voluntariamente e unido à cruz de Jesus pode ser redentor, e é um instrumento (nunca um fim) através do qual se pode amar mais a Deus e os outros. Faltou ali a perspectiva da vida eterna, da felicidade infinita que não acaba, que em teoria todos queremos mas na prática nem sempre. Os cristãos do início do filme falavam do Paraíso, como meta da sua vida. Mas na apostasia do Padre Rodrigues essa ideia já não se encontra presente, tudo o que conta é acabar com aquele sofrimento aqui e agora.
A palavra 'Martírio' vem do grego, e quer dizer ‘testemunho’. Os mártires sempre foram um testemunho para os outros cristãos, um incentivo para serem santos. Daí que as suas relíquias tenham sido veneradas desde o início do cristianismo. Isso vê-se no filme, quando os corpos daqueles cristãos mártires são queimados e as cinzas deitadas ao mar, de modo a impedir que sejam venerados. Os padres que desistiram da sua fé deram um contra-testemunho. A apostasia naquele caso é um anti-martírio. Se um sacerdote, face visível da Igreja, não está disposto a morrer por Cristo porque é que eu estaria? Por isso mesmo os japoneses querem que os padres neguem a fé publicamente, para servirem de exemplo ao povo e cortarem o cristianismo pela raiz.
O Padre Ferreira e o Padre Rodrigues não se limitaram a apostatar num momento de fraqueza, o que poderia ser mais ou menos compreensível, embora continuasse a ser errado. Eles foram apóstatas o resto da vida, com recorrentes actos de apostasia (exigidos pelas autoridades). E enquanto isso serviam de censores aos artefactos encontrados nas casas das pessoas e que se desconfiava poderem ter alguma simbologia cristã oculta. Aqueles dois homens negaram a fé publicamente, viveram até à morte essa negação e colaboraram activamente com um governo iníquo, que perseguia e executava cristãos.
É verdade que até ao último suspiro de vida a pessoa se pode arrepender mas não é possível ser um apóstata publicamente e um cristão devoto privadamente. A vida cristã tem de ser una, não é compatível com dualismos esquizofrénicos. O cristão foi chamado pelo próprio Cristo a ser sal da Terra e luz do Mundo (Mt 5, 13-14). Se o sal não salgar vai para o lixo. A luz não pode não iluminar. É verdade que não somos obrigados a parar as pessoas na rua para anunciar a nossa Fé, embora alguns possam ter esse "carisma". É verdade que em tempos de perseguição podemos até não manifestar publicamente sinais exteriores de fé cristã. Mas nunca podemos negar a Deus publicamente e continuar a viver como se nada fosse. A apostasia é um pecado muito grave (contra o primeiro mandamento: Amar a Deus sobre todas as coisas), que quando cometido publicamente exige também a reparação pública, caso a pessoa se arrependa e queria pedir perdão a Deus.
Japoneses: os maus
Durante o filme dificilmente pensamos nas autoridades japonesas, e respectivos soldados, como maus da fita. Estamos demasiado ocupados a tentar perceber se é lícito apostatar ou não, e nem reparamos nas atrocidades indescritíveis que essa gente infligiu a pessoas inocentes, simplesmente por acreditarem num Deus que morreu numa cruz para os salvar. O mais irónico é que aquela perseguição implacável ao cristianismo partiu de quem promovia abertamente o budismo. Todos eles eram budistas "praticantes".
No mundo Ocidental, desejoso de esoterismo, o budismo é apresentado como um "caminho espiritual” atractivo porque se pode fazer muitas coisas que no catolicismo não são permitidas (especialmente no que concerne ao 6º e 9º mandamentos), e também porque implica a prática da meditação, que traz muita “paz”. Toda a violência que se vê neste filme ajuda a perceber que o budismo não é assim tão pacifista como muitos tentam fazer passar. Mostra também que, ao longo da História, os cristãos foram, e ainda são, brutalmente perseguidos por causa da sua Fé.
Ad maiorem Dei gloriam
João Silveira