明けましておめでとうございます (atenção, isto supostamente é japonês)
É preciso ter fé para acreditar que este rabiscos que ali estão em cima querem dizer qualquer coisa como “Feliz ano novo”. Se fosse algo minimamente relevante para a minha felicidade, iria investigar (não sei bem onde, mas ok), já que a fé nunca se liberta da razão, antes só existe verdadeira fé quando se usa e abusa da razão, mas isso são “contas de outro rosário” (esta expressão sempre me irritou ligeiramente).
Tempos houve em que para mim, a noite de fim de ano era a noite das noites, em que se bebia mais do que nas outras, era suposto ser assim. Passar essa noite sóbrio era ser grande loser, e as histórias do fim de ano eram sempre mais do que muitas. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, e desde há uns anos que passo essa noite em acção de graças pelo ano que passou e a pedir pelo que começa, em Fátima, onde a minha vida mudou (várias vezes). A noite baseia-se em Missa às 22h, depois terço na capelinha, no qual entre o 4º e o 5º mistérios, ou seja há meia-noite, se dá o abraço da paz. Depois disso há uma muito apreciada ceia (senza!) na casa de Nossa Senhora das Dores. Normalmente de seguida vou para a festa mais próxima, porque a malta que reza também gosta do regabofe.
E este ano mais uma vez esse era o plano para o fim-de-ano. Estava em Alpalhão, perto de Anadia, que agora tem andado nas notícias por causa das urgências hospitalares. Estava sem o bartolomeu (a minha viatura), pelo que, seguindo conselhos de pessoas muito experientes no assunto (obrigado pi e pipos), resolvi ir de comboio de Coimbra para Fátima. Sendo assim cheguei a essa tal estação chamada Fátima, às 21.11, mais do que a tempo da Missa, pensava eu, inocentemente. Mas mal saí de comboio algo se passava, ou melhor nada se passava! Nunca vi uma estação tão vazia e tão no meio de nenhures. A humanidade poderia bem ter sido aniquilada enquanto estive comboio, tendo sido poupado eu e os meus companheiros de viagem, que tudo estaria igual naquele sítio. Meio desconfiado, fui bater a uma porta, e falei com um cavalheiro que trabalhava na dita estação. Ele confirmou os meus piores receios, estava a 30km´s do santuário, e àquela hora não havia autocarros nem taxis...estava entregue a mim próprio! Fiz as contas rapidamente (qual guterres), e percebi que peregrinando, com malas às costas, demoraria mais ou menos 6 horas a chegar à capelinha. Chegaria então por volta das 3 da matina, muito depois do terço e sem possibilidade de pedir boleia para Lisboa, mais uma dependência que tinha.
Por exclusão de partes fui para a beira da estrada pedir boleia. Descrevendo a situação: era noite, estava no meio do nada, barbudo e cabeludo e com uma mochila (com o inevitável ernesto) e um saco gigante, diga-se que as probabilidades não estavam do meu lado. Lá foram passando os minutos, deviam estar cerca de zero graus negativos (se fossem positivos estava bem melhor), e o frio ia-se encarregando de expulsar o pouco calor que o meu corpo ainda mantinha. Ninguém se dignava sequer a parar, e carro após carro, a minha desilusão ia aumentando. Ali estava eu, às dez da noite na última noite do ano, sozinho, com um frio descomunal, e no meio da estrada a pedir boleia. Só conseguia pensar nos meus amigos, no Alpalhão, Santarém ou em Sintra, todos a comer imenso, com temperatura amena, e a divertirem-se como se não houvesse amanhã. Comecei a maldizer esta minha mania de me meter sempre nestas aventuras. “Mas porque é que não fiquei numa das casas onde poderia estar? Porque é que tinha de vir a Fátima? Nossa Senhora não se ia importar nada que eu estivesse quentinho”. Já me estava a ver a passar ali a noite, e no dia seguinte ter de arranjar maneira de ir para Lisboa...grandes filmes. Mas mais do que com frio ou fome, sentia-me sozinho. Naquela noite em que “toda a gente” está acompanhada, eu estava desacompanhado. Identifiquei-me logo com todos os “desacompanhados” do mundo, todos os que estão sozinhos porque ninguém os ama, ninguém os acha especiais, ninguém os vê como Cristo os vê. Achei bonito e comovente a proximidade momentâneacom com essas pessoas, e que quantas vezes são desprezadas por mim? Arrisco-me a dizer, quase sempre. Depois comecei a revoltar-me com as pessoas que não paravam: “mas esta gente não percebe que eu preciso mesmo de boleia? Não veêm aqui um ser humano necessitado? Passam por aqui como se eu não existisse. Ainda por cima de certeza que há muitos que passam por aqui e vão para Fátima. Pois é, vão para Fátima e não ajudam uma pessoa que precisa de ajuda. Vão lá para a capelinha rezar, mas ajudar quem precisa, tá quieto ó preto”. Naquele tempo, como se diz para começar a leitura do Evangelho, muita parvoice percorreu a minha cabeça. Dividi o mundo entre os que têm frio e os que nâo têm; entre os que têm fome e os que não têm; entre os que estão sozinhos e os que não estão; entre os que estão a pedir ajudar e entre os que não ajudam; entre os que reconhecem Cristo no outro e os que não O reconhecem; entre os que O amam, e os que O não amam.
Como é possível que as pessoas se tenham tornado tão frias em relação ao seu próximo, que passam por ele sem sequer o verem? Isto tem tudo a ver com a parábola do bom samaritano, quem devia ter ajudado aquele homem, passou-lhe ao lado, fingiu que ele não estava lá, e teve de ser um estrangeiro a compadecer-se dele, a ajudá-lo. Será o medo assim tanto, que as pessoas preferem ignorar Cristo, que ali precisa de ajuda, do que “arriscar” parar e falar com um desconhecido? Uma vez S.Tomás de Aquino estava a escrever na sua cela, e cá fora um seu colega monge dominicano gritou: “olha um burro a voar”. S.Tomás veio ver à janela o que se passava, e foi prontamente gozado pelo outro monge, porque tinha acreditado que estava realmente um burro a voar. O santo, responde: “prefiro acreditar que um burro possa voar, do que um dominicano possa estar a mentir”. Também será que não me é pedido para acreditar mais facilmente que uma pessoa que pede ajuda realmente precisa de ajuda, do que é alguém pronto a fazer-me mal? E será que não é preferível tentar ajudar 99 com más-intenções, do que deixar uma pessoa necessitada sem ajuda? Onde acaba a precaução e começa o medo excessivo, e a preguiça de fazer alguma coisa por um desconhecido, própria dos doutores da lei que passam ao lado do homem ferido?
Bem, mil questões surgiram na minha cabeça nessa noite, e agora vou ter de descobrir respostas. Foi sem dúvida uma noite de fim de ano diferente das outras, que não foi nada fácil de aguentar, mas que não trocaria pela lareira mais quente nem pela mesa mais farta...ali estive bem mais perto de Jesus.
O resto da história não é muito relevante, passado hora e meia parou um carro, um bocado longe e uma rapariga perguntou para onde eu ia. Eu disse Fátima, ela disse que não iam para lá, mas que me deixavam a caminho, e antes disso perguntou se eu era de confiança, ao que respondi que sim, senão não ia para Fátima. Não sei se a minha afirmação não foi inocente demais, mas enfim, é um facto que entrei no carro, e lá fui com 4 miúdas até Ourém, onde iam para uma disco-night curtir a passagem de ano. Estando eu em Ourém, já a cerca de 13kms de Fátima, tentei ligar para o número dos taxis, e o cavalheiro respondeu que não tinha carros disponíveis. Sendo assim, lá voltei para o meio da rua, para pedir boleia novamente. Mais mil carros passaram, e as horas também, já eram onze e meia, e estava a imaginar-me passar a meia noite ali ao lado dos bombeiros voluntários, a ouvir as sirenes. Entretanto, parou um jovem que estava sozinho, perguntou para onde eu queria ir, eu respondi, e ele disse-me para entrar. Era um porreiro, chamava-se carlos, era camionista internacional, e estava cá a passar o Natal. Pelos vistos estava em casa sem nada para fazer, e resolveu dar uma volta. Acabou por dar uma volta maior do que estava esperava, já que me levou ao santuário, e consegui chegar à capelinha ao mesmo tempo do que a cruz, faltavam dez minutos para as doze badaladas. Depois disso rezei, agradeci e pedi, ceei e arranjei boleia para Lisboa.
Além de tudo o que aprendi, quero agradecer ao meu Senhor e meu Deus, que apesar da minha pouca fé, nunca me deixou abandonado. Fez sempre aparecer as pessoas certas no lugar certo, à hora certa (apesar de me parecer sempre que já era tarde demais, que já não havia esperança). Pensando bem, acho que tem sido assim toda a minha vida.