Diariamente somos confrontados com questões importantes e que requerem
reflexão. Não raras vezes o que sucede é que estamos a analisar o nome que
damos à coisa que queremos analisar, em lugar de analisarmos a coisa à qual
demos um nome.
Surgiu recentemente - e deu logo azo
a discussão – uma notícia sobre uma peça elaborada pelo artista Élsio Menau,
antigo aluno da Universidade do Algarve, que foi apreendida pela GNR por
alegadamente se tratar de um ultraje à Bandeira Nacional. Trata-se de uma
bandeira de Portugal “enforcada” numa estrutura de madeira que esteve exposta
num terreno particular há cerca de um ano.
Algumas pessoas aplaudiram a acção
da força de segurança ao abrigo do nº 1 do artigo 332 do Código Penal (que
sanciona ultrajes e desrespeitos pelos símbolos nacionais). Outros colocaram
questões jurídicas e processuais sobre o tema. Mas logo surgiram muitos que
vieram defender o artista invocando a liberdade de expressão.
Ora, como não sou jurista,
abstenho-me de avaliar a validade jurídica da questão. No entanto, acho que é
interessante pensar um pouco sobre a questão da suposta liberdade de expressão
do artista.
Permitam-me, antes de mais, fazer
aqui um pequeno parêntesis já que estudei do 5º ao 12º ano no Colégio Militar,
escola que incute nos seus alunos valores como o patriotismo, o amor à Pátria,
o respeito pela hierarquia e outros tantos que, como estes, parecem ter caído
em desuso.
No Colégio ensinam-nos desde
pequenos que, quando passa o Estandarte Nacional ou se canta o hino, nos devemos
colocar-se em “sentido” (um termo militar que designa uma posição de respeito).
No Colégio ensinam também que não se usa uma bandeira como saia, como lenço
para o cabelo ou como capa à moda do super-homem. Aprendemos que há um procedimento
correcto para dobrar a bandeira e todo um conjunto de regras que se devem ao
significado que aquele aparente pedaço de tecido encerra.
São habituais os casos em que os
alunos mais pequenos abordamos seus superiores confusos sobre algum desrespeito que puderam
observar em relação a esta matéria, por ir contra aquilo que aprenderam nas
suas aulas de instrução militar.
Com efeito, poderá provocar
estranheza a alguns, mas verifica-se que os alunos sofrem um grande choque
quando ao fim de alguns anos de formação rígida reparam que o mundo fora dos
muros do Colégio é muito diferente daquilo que lhes ensinaram na sua escola
bicentenária.
As pessoas não fazem estas coisas
“por mal”, nem são más pessoas por causa disso. No entanto, há muito tempo que em
Portugal não existe uma cultura de patriotismo, muito provavelmente devido ao
estigma que ainda muita gente tem ao associar patriotismo ao nacionalismo e o
nacionalismo ao Estado Novo. Não fomos suficientemente razoáveis para entender
que nem todos os traços que caracterizavam o Estado Novo eram negativos e
decidimos abolir tudo aquilo que pudesse, de alguma forma, estar relacionado
com o antigo regime.
Há um outro factor que agrava este
desligar do respeito institucional pelos nossos símbolos: o relativismo em que
nos vimos mergulhados e que associamos erradamente à liberdade. Vive-se, pois,
um tempo onde tudo é permitido e parece que nada é condenável, porque há sempre
um pretexto que legitima aquilo que se quer condenar. Frequentemente esse
pretexto é semântico:
Enforcar uma bandeira é arte; abortar é liberdade da mulher; insultar a crença dos outros é liberdade de expressão; ser malcriado é
ser hiperactivo e assim por diante.
Assim, sempre que algum tema
sensível é discutido, aparece algum opinion
maker que trata de mudar a designação daquilo que estamos a discutir e, a partir
desse ponto, começa-se a discutir essa designação em vez de se escrutinar
aquilo que realmente está em causa.
Vamos levar esta questão ao ridículo
para que, sem perda de generalidade, se compreenda melhor o que quero dizer.
Imagine o leitor que um determinado indivíduo decide pegar numa pedra e atirar
à cabeça de outro indivíduo. Qualquer pessoa no seu perfeito juízo sabe que
aquela atitude não é correcta. Legalmente não é permitido agredir outras
pessoas; moralmente também sabemos que devemos respeitar a integridade física
do outro ser; até culturalmente somos educados a não chatear as outras pessoas.
Imagine-se então que há um opinion maker
na rua a testemunhar o incidente que depois descreve na sua crónica dizendo que,
ao contrário do que os “ultraconservadores” andam a dizer, aquilo não se trata
de uma agressão, mas sim da liberdade do primeiro indivíduo atirar o que bem
entender para onde quiser e que aquele que ficou lesionado não tinha nada que
estar a passar no momento em que foi atirada aquela pedra num exercício
exemplar de liberdade e livre arbítrio.
Inspirado nesta crónica, um grupo de
activistas decide criar uma página de Facebook a defender o lançador de calhaus
e a censurar todos aqueles que o querem privar do seu exercício de liberdade.
Enfim, não vale a pena desenvolver
mais esta história porque todos conseguimos facilmente imaginar um desfecho
curioso.
Este conto não tem sentido nenhum
(ou era esse o meu objectivo), mas ilustra bem aquilo que repetidamente acontece
sem nos apercebermos. Apliquemos este método a uma situação mais próxima da
realidade:
Legalmente não se pode matar um ser
humano; moralmente (acredito) ninguém coloca a questão e culturalmente, pelo
menos em Portugal, matar vai contra qualquer costume ou tradição. Dito isto
seria de esperar que qualquer atentado à
vida de uma criança, para além de ilegal, fosse punível. Mas o que é que se
verifica na realidade?
Verifica-se que alguém decidiu dizer
que a mulher tem o direito a não querer ter filhos e rapidamente, ficou decidido que se podem matar bebés.
É um exemplo de algo conseguido à
custa de um raciocínio falacioso e manipulador de se tão simples quanto dar um
nome diferente a uma determinada realidade. A partir deste ponto analisa-se se
uma mulher tem o direito a querer ou não ter um filho e facilmente se convence
uma percentagem significativa de pessoas a votarem favoravelmente esta matéria
num referendo. Afinal, é de um “direito” que se trata.
A verdadeira questão, essa, ficou
para trás, junto de todo um conjunto de elementos que perante a força da
palavra “liberdade” ou “direito” são esquecidos.
Por simplificação até podemos
considerar a hipótese académica de uma mulher ter o direito de, estando
grávida, não querer ser mãe. Mesmo assumindo isto como verdade, continua a ser
verdade que matar não é correcto nem moral, nem cultural nem legalmente. Além
disto, podem ainda colocar-se questões como “se não está disposta a ser mãe,
por que é que está disposta a ter relações conjugais?”. Ao fazer esta pergunta,
reparamos que já está instituído na sociedade que é lícito ter relações sexuais
com qualquer pessoa, porque alguém decidiu que
isso se trata de “liberdade de escolha”.
Continuando a aprofundar a análise,
chegamos a um ponto em que percebemos que questões fundamentais da nossa
identidade estão camuflados por toda uma engenhosa quantidade de supostas
liberdades e designações um tanto ou quanto genéricas que ao longo do tempo
foram relativizado aquilo que durante vários séculos definiu o nosso ethos como humanos.
Onde é que entra o artista nesta
análise? É que, até podemos concordar que a mulher tem o direito de decidir se
quer ter um filho ou não, tal como podemos considerar que o enforcamento da
bandeira é arte. O que não nos podemos esquecer é do exemplo do sujeito que
decidiu atirar a pedra à cabeça do outro: onde até pode ser verdade que ele tem
a liberdade de arremessar objectos na rua, mas isso não deixa de fazer com que
a sua atitude – além de um exercício de liberdade – seja uma agressão
premeditada, o que todos assumimos que está errado. Logicamente, daqui se segue
que matar uma criança também é errado e ultrajar uma bandeira igualmente,
porque uma bandeira não é exactamente a mesma coisa que um pano de cozinha.
Estamos habituados a discutir a
forma e assim o conteúdo acaba por ser esquecido. Tenhamos pois o cuidado de
procurar entender quando é que numa discussão estamos a analisar o objecto e
quando é que estamos a analisar a sua designação.
Bernardo Serrão Brochado