quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Silêncio: Fidelidade ou apostasia?

(Atenção: este texto contém spoilers que contam o fim do filme.)

Estreou o Silêncio de Martin Scorsese. O filme tem gerado muita polémica. Muitos têm interpretado a apostasia do Pe. Rodrigues, protagonista, como um acto bom. Outros, escandalizados com esta interpretação, rejeitam o filme por completo.

Mas o filme é muito maior do que o problema da apostasia. Um dos melhores realizadores de cinema, um extraordinário elenco japonês e cenários incríveis das ilhas japonesas fazem-nos viver cada cena do filme. Um martírio filmado assim não deixa ninguém indiferente. E no filme há vários, lembrando as dezenas de milhares de cristãos que foram martirizados no Japão nesta altura.

Uma das ideias favoráveis à apostasia é a de que o Japão é um pântano onde nada ganha raízes. O Pe. Cristóvão Ferreira, o primeiro jesuíta a negar a fé sob tortura, diz que os japoneses convertidos nunca tinham compreendido o Cristianismo a sério. Segundo Ferreira, o culto Cristão dos japoneses não era senão o culto budista ao "deus Sol". Num país assim, não seria mau negar a fé em público e viver as práticas do Japão e do budismo, ajudando os locais de outras maneiras. Mas o filme mostra ao mesmo tempo como esta ideia é falsa. Nenhum japonês seria capaz de passar por torturas tão duras e no fim morrer por um "deus Sol". No início, três mártires japoneses morrem crucificados à beira mar, torturados à fome e afogados pelo encher da maré. Mas estes humildes japoneses morrem por um verdadeiro amor a Deus e pela Sua Mãe, Maria Santíssima. Mais ainda, morrem a cantar o Tantum ergo, um famoso hino eucarístico da tradição da Igreja, esquecido pela maior parte dos Cristãos do século XXI, mas não por aqueles japoneses que deram a vida pela Fé.   

Até ao momento da apostasia, na última parte do filme, os padres jesuítas estão sempre em contacto com estes Cristãos clandestinos do Japão. Primeiro vivem com eles em liberdade e depois nas prisões japonesas. O filme mostra como os Cristãos alimentavam a Fé através de pequenas coisas diárias, sempre iguais. Por exemplo, os Cristãos não só abençoavam sempre as refeições, como o faziam sempre com a mesma oração em latim. A fidelidade com que os japoneses rezavam dava-lhes Paz, mesmo já na prisão. Esta Paz contrastava com a agitação do Pe. Rodrigues, que quase se zanga por ver os Cristãos japoneses tão calmos. A agitação do Pe. Rodrigues leva-o a abandonar essas orações regulares que os outros faziam, e por mais do que uma vez Scorsese mostra-o a esquecer-se de abençoar a refeição antes de comer.
A fé do Pe. Rodrigues torna-se sentimental, baseada em "sinais" como ver o rosto de Cristo na água, que não dão fundamento à Fé. No fim, desesperado por ver tantos Cristãos a serem massacrados, julga ouvir a voz de Jesus a dizer-lhe para apostatar. O filme mostra muito bem o processo que leva um Cristão a negar a Cristo. Não é com leviandade que um sacerdote nega a Cristo. A apostasia é o culminar de um processo longo, que já tinha começado muito antes. O fim do filme é perturbador não só pela apostasia do Pe. Rodrigues, mas porque esta não é diferente do que se passa hoje no Ocidente. Todos conhecemos pessoas que não são Católicas, mas que em tempos o foram. Este processo, que começou com uma transformação interior da Fé, culmina com a própria pessoa a achar que está a fazer bem ao negar a Cristo, tal como acontece com o Pe. Rodrigues.

Silêncio é um filme que não acaba bem. O Pe. Rodrigues fracassa, nega a Fé e vive várias décadas no Japão budista. Estes budistas, surpreendentemente diferentes dos pacifistas que o mundo apresenta, massacraram milhares de Cristãos conterrâneos no século XVII. Obrigaram o Pe. Rodrigues a viver com uma mulher, a escrever livros contra a Igreja, a identificar Cristãos clandestinos e a negar a Fé regularmente. Ainda assim, quando tudo parecia perdido, Deus teve a última palavra. E a Igreja Católica não só ganhou raízes no Japão como sobreviveu até aos dias de hoje.

Nuno CB


blogger

7 comentários:

Jorge disse...

"os japoneses convertidos nunca tinham compreendido o Cristianismo a sério."
E mesmo assim, preferiram morrer como mártires do que apóstatas.

"Num país assim, não seria mau negar a fé em público e viver as práticas do Japão e do budismo, ajudando os locais de outras maneiras."
E o ex-padre Ferreira, ao abjurar a fé cristã, ajudou quem?
Se ele entendia que o seu trabalho de conversão dos Japoneses ao Cristianismo era mau, porque os conversos acabavam perseguidos, torturados e mortos, o que ele podia fazer era deixar de fazer conversões em público e passar à clandestinidade ou, em último caso, se não conseguia conciliar o seu dever com os seus sentimentos, abandonar o Japão.
Ferreira preferiu abjurar a fé e depois identificava Cristãos clandestinos que eram enviados para a prisão, tortura e morte. Neste caso, ele já não achava isso mau? Quer dizer que as conversões eram más mas as denúncias eram boas? Mesmo que fizesse isso coagido pelos budistas, isso não lhe criou nenhum problema de consciência?
O ex-padre Ferreira, ao abjurar a fé cristã, ajudou quem? A ele próprio e a mais ninguém: salvou a própria vida mas não salvou a alma.

Jorge disse...

Desculpem lá mas o Pe. é Cristóvão Ferreira ou é Rodrigues? Ou são 2 apóstatas?

Anónimo disse...

se estreou hoje porque publicam texto que desvenda o fim do filme? Eu não li, uma vez que pretendo ver o filme, mas segundo o aviso inicial...

francisco disse...

Num mundo onde a apostasia é já tão grande este é mais um momento para a banalização do mal. Será utilizado apenas para normalizar a apostasia.

Pinto de Sá disse...

Jorge não entendeu a crónica do blog. O blog não está a justificar o padre Rodrigues, mas a apresentar o filme, os argumentos do filme, não do autor do blog!
Mas quanto à sua sugestão de que o que Rodrigues deveria ter feito era passar à clandestinidade, duas notas pessoais:
1 - Efectivamente enquanto anda com o povo cristão, isso é feito na clandestinidade. Aliás, é por violarem as duras regras da clandestinidade (saírem da cabana para apanhar sol) que os dois jesuítas acabam por ser apanhados.
2 - A Igreja católica nunca teve, que eu saiba, uma orientação clara e elaborada sobre a clandestinidade em tais situações. Tomando para comparação o que faziam outros crentes inimigos do cristianismo mas igualmente perseguidos em ocasiões, os comunistas, as regras de clandestinidade diriam que perante o inimigo se faria tudo o que fosse preciso para preservar os fins superiores da causa, incluindo pisar a cara de Cristo e mentir sobre os verdadeiros sentimentos. Para que, enganado o inimigo, este permitisse que o essencial, a comunhão dos crentes, pudesse prosseguir em segredo. Ah, e os informadores seriam eliminados, e não recorrentemente confessados e tolerados...
O problema é que para os católicos os perseguidores não são assumidos como inimigos contra os quais vale tudo como na guerra...
É por tudo isto que o filme, assim como o romance que lhe subjaz, é verdadeiramente excelente. E para aqueles que culpam facilmente o padre Rodrigues, lembro que também ele culpava facilmente o apóstata anterior, antes de passar pela prova... É o pecado da soberba.

Vasco Ribeiro disse...

Há dois pormenores do filme que mostram bem como a apostasia não é nem exaltada, nem bem vista:

1) Quando o Padre Ferreira finalmente pisa a imagem de Nosso Senhor e desesperado cai por terra, ouve-se o galo a cantar três vezes, tal como nos Evangelhos com S. Pedro. Ninguém vai duvidar que o Martin Scorcese quis fazer esse paralelismo.

2) No final, aparece a seguinte dedicatória "Aos cristãos Japoneses e aos seus pastores - Ad Maiorem Dei Gloriam" (esta frase em latim sendo o lema da Sociedade de Jesus). É por isso óbvio que o filme não procura justificar os apóstatas, mas antes louva aqueles que deram a vida por Jesus Cristo: são eles os verdadeiros heróis do Silêncio.

Um abraço e parabéns pelo artigo!

Vasco AR

NCB disse...

Obrigado Vasco!

É muito importante que tenhas deixado esses dois pontos aqui escritos.

NCB