O problema do aborto nunca desaparecerá. Como a pobreza e a desigualdade, a violência ou o crime, acompanhará a humanidade, que terá sempre de lutar contra ele sem nunca o conseguir eliminar. Era bom que todos os envolvidos tivessem consciência desta verdade simples, evitando muitos erros e mal-entendidos.
Vivemos num tempo legalista, que acredita que as questões se resolvem com decretos. O repetido falhanço desta ilusão não impede que muitos coloquem a sua esperança na luta legislativa, descansando nas vitórias parlamentares e esquecendo que a vida só se decide na vida. Por importante que seja a superestrutura legal de um povo, manifesto autodefinitório, o fundo da natureza humana permanece um enigma. As inúmeras violações dos direitos humanos, após décadas de esforços, manifestam dolorosamente a realidade.
Numa época promíscua e lasciva, é na legislação familiar que explode a contradição, como na regulamentação financeira em crises creditícias.
Nos EUA, sociedade mais aberta e dinâmica, o impasse dos embates entre "pró-vida" e "pró-escolha" manifestam-no há muito. Agora, a rejeição do relatório extremista de Edite Estrela pelo Parlamento Europeu a 11 de Dezembro e as discussões à volta da proposta de nova lei espanhola, apresentada a 20 de Dezembro, quebram o mito de solução pacífica deste lado do Atlântico.
Os esforços ideológicos para apresentar estes casos como ridículos e obsoletos não conseguem ocultar o dramatismo da questão. O respeitado semanário Expresso, num dos textos recentes que mais manchou a sua reputação de isenção e dignidade, tratou a questão desta forma: "Regresso ao passado. Rajoy cede à ala clerical e ultradireitista do PP com a revisão da lei do aborto que constitui um retrocesso de 30 anos na regulação de um direito adquirido pelas mulheres espanholas e gera um coro de críticas internacionais" (Expresso 28/12/2013, p. 27).
Qualquer abordagem minimamente séria e equilibrada da questão do aborto revela que ela tem elementos muito complexos e dramáticos. Procurar descartá-la como capricho de clericais e ultradireitistas (o que quer que isso signifique) é truque torpe, que manifesta desespero. Tentar reduzi-la a "direito adquirido" é infame, como é desonesto fingir que no coro internacional só existem críticas.
É indiscutível que está em causa um direito das mulheres. Mas está também presente um outro elemento que, sendo mínimo, não pode nunca ser esquecido: a vida da criança a nascer. A qual, em metade dos casos, é também feminina. Por isso se vêem mais mulheres do que homens a combater contra esse suposto direito adquirido.
O problema central é a vida do embrião abortado. E essa nunca desaparecerá. Pode ser morta, rejeitada, desprezada, esquecida, mas permanece sempre na sua irredutível dignidade. Por muitas ideologias e discursos que a neguem, por muitos decretos e práticas que a espezinhem, a vida daquela criança, que nunca chegou a ver a luz, grita sempre na sua mudez. Como a identidade dos escravos e proletários, como a fé dos mártires e perseguidos, como os direitos dos pobres e espoliados, e tantas outras vítimas de legislações majestosas que ao longo dos séculos as procuraram enterrar, a vida dos fetos abortados permanece no subconsciente das sociedades que os julgam extintos. Por isso, por maiores que sejam os esforços legais, o problema do aborto nunca desaparece.
O fenómeno é especialmente gritante neste nosso tempo, que elaborou e legislou mais do que todos para afirmar direitos e evitar injustiças. Nestes dias, o mundo uniu-se à volta do túmulo de Nelson Mandela para proclamar bem alto como a nossa época luta pela dignidade humana. Entretanto, é precisamente nos países mais sofisticados e avançados nesta dimensão que as violações ocorrem, precisamente neste aspecto mais íntimo e essencial. Esta contradição na superestrutura legal, nosso manifesto autodefinitório, é clamorosa e os nossos descendentes terão dificuldade em entendê-la. O que apenas manifesta que o fundo da natureza humana permanece um enigma. in DN
Sem comentários:
Enviar um comentário